No dia 25 de março, chegou ao Canal Brasil uma nova série documental brasileira: Favela Gay: Periferia LGBTQI+ (2020), dirigida por Rodrigo Felha. Ao longo de dez episódios, o diretor busca histórias de indivíduos gays, lésbicas, travestis, transexuais e intersexuais em diversas cidades do país, confrontados ao preconceito familiar e às dificuldades de inserção no mercado de trabalho, mas também vivendo belas histórias de amor e amizade.
O projeto nasceu depois do longa-metragem Favela Gay (2014), também de autoria de Felha, e concentrado exclusivamente nas periferias do Rio de Janeiro. O Papo de Cinema conversou com o diretor sobre a série:
Considera este projeto como uma extensão do seu longa-metragem?
Sim, totalmente. É uma extensão do documentário. Naquele momento, graças à repercussão e ao impacto positivo durante o lançamento, começamos a ter várias discussões sobre o alcance do filme. Vimos que era necessário ter um produto daquele que abrangesse o Brasil inteiro. A gente pensava: “Seria bom ter o Favela Gay 2”. Havia ideias de expandir o conceito para o que seria o Favela Gay 2, 3, 4, 5… A partir disso, conseguimos viabilizar a série com dez episódios, na intenção de abordar o país inteiro.
Os dois primeiros episódios se passam em Belém, no Pará. Como definiu a distribuição geográfica dessas periferias na série?
A gente abordou cinco Estados: São Paulo, Brasília, Rio Grande do Sul, Pará e Bahia. Foram dois programas por Estado, com dois casos diferentes, porém entrelaçados, representados no mesmo episódio. Assim eles falam sobre diferentes questionamentos, ao invés de uma só experiência. No caso da Leona Vingativa, ela tem o melhor amigo, o Paulo, que também é muito importante no episódio. A gente trabalha sempre com duas histórias.
Como encontrou estas pessoas? Elas aceitaram a proposta da série imediatamente?
Este foi um longo trabalho de pesquisa feito por uma equipe muito empenhada, com muito afeto envolvido. Eles conseguiram se conectar com todos esses Estados, pré-selecionando pessoas que a gente poderia entrevistar. Existia uma questão ligada à minha curiosidade enquanto estratégia. A equipe me apresentava diversos possíveis entrevistados, e eu aprovava para entrevistas aquele ou aquela que me despertasse maior curiosidade. De fato, eu trato todas essas pessoas com entrevistados, e não como personagens. Eles se entregaram, se doaram do jeito que são, porque entenderam a importância do projeto, e de trazer discussão e reflexão a partir dele. Quando compreenderam esta proposta e tiveram a certeza da nossa ética de trabalho, ficaram mais seguros. Criamos um elo, uma conexão positiva entre eles e toda a equipe. Tivemos reuniões prévias com toda a equipe em relação a entendimento, a comportamento, a como tratar um entrevistado. Mesmo assim, as reuniões eram rápidas, porque todos compreendiam que se tratava de descobrir os afetos daquelas pessoas. Vale dizer que as equipes, em geral, eram locais. Apenas o diretor de fotografia e o produtor me seguiam.
Havia alguma restrição dos entrevistados sobre temas a mostrar ou esconder? O primeiro episódio mostra uma bela história de amor, mas quando você fala na Leona Vingativa, não se aborda nenhum interesse afetivo dela.
É verdade. A Leona é exatamente assim: ela se coloca no mundo apenas enquanto travesti e artista. A resposta positiva dos entrevistados veio pela nossa postura de deixá-los mostrar apenas o que eles são de fato. Leona é uma artista, que busca sempre mostrar sua trajetória na arte. O episódio com o Charles, em São Paulo, é absolutamente politizado e didático em relação ao assunto do intersex. Nós levantamos a bola da experiência de ser intersex. Quem são essas pessoas? Toco num tema que eu considero importante, e necessário de ser discutido. Cada personagem possui sua singularidade, sua vertente particular. Você vai ver, por exemplo, a Thifanny Odara, uma mãe de santo trans. A religiosidade está muito mais presente no caso dela do que para qualquer outro entrevistado. As pessoas estavam livres para mostrar quem são. Existem os segredos de cada um, existem as batalhas de todas as pessoas LGBTQI+. Mas a série mostra as vitórias e o dia a dia delas, algo que merece ser destacado dentro de uma sociedade comum a todos. É um caso de mão e contramão: só existe afeto em relação a essas pessoas por parte do movimento LGBTQI+. Já a contramão do resto da sociedade não existe. Existe o sofrimento e a dor, que são inevitáveis.
Justamente. Você aborda temas pesados, mas parece existir espaço para a leveza e o humor.
É lógico! As pessoas, quando vão assistir a um produto como esse, se deparam com um título imediatamente midiático. Os espectadores sabem que vão ver pessoas faveladas, e por serem LGBTQI+, pensam que vão encontrar casos de coitados, de vítimas. Mas eu sei que as pessoas nestas condições não são assim. Durante o lançamento do filme, eu escutei comentários muito positivos, e alguns retornos eram do tipo “Caramba, eu não vi nada demais nessa história pelo fato de ela se passar na favela”. A ideia é essa: quero mostrar estes entrevistados como pessoas comuns, com as quais a gente pode se identificar, às vezes encontrando apoio dentro da família, que é o setor que deveria ajudá-las, já que as ruas não ajudam.
Acredita que o documentário seja mais potente para abordar essas vivências do que a ficção?
Acredito que tanto a ficção quanto o documentário possuam sua potência para trazer a discussão, a similaridade, a reflexão a respeito do tema. Quem dirige tanto ficção quanto documentário, e quem vai aparecer em frente à câmera, em especial os entrevistados, têm que estar preparados para receber críticas. Muitas delas serão críticas não construtivas. Diante dos avanços da comunidade LGBTQI+, muitas pessoas criticam apenas por criticar, sem acrescentar nada. São pensamentos que não buscam a discussão, eles partem da negação absoluta, da rejeição prévia.
É interessante que a série estreie agora, na mesma época em que diversas séries de temática LGBTQI+ sofreram tentativas de censura por parte do governo.
Eu fico muito feliz de estrear essa série no atual governo, pelo simples fato de mostrar que devemos continuar falando do que achamos importante e necessário para melhorar a sociedade. Ele representa uma resposta de que o cinema, e o audiovisual em geral, vai enfrentar todas as barreiras colocadas pelo governo, que busca impedir a produção ou visualização desse tipo de produto. Neste momento, o governo vem com um discurso, acreditando que não vai ter resposta nossa. A gente vai usar as redes sociais, e vamos tentar entrar o máximo possível na televisão, apoiando sempre essa discussão. A gente precisa entender a necessidade de lutar apenas pelo nosso posicionamento em relação aos movimentos de gênero, religiosidade etc., mas sem atacar. Eu não preciso falar mal do governo Bolsonaro, porque é mais valioso colocar no meu produto audiovisual as demandas e a realidade das pessoas. Eu acho perda de tempo só ficar falando mal do governo. Precisamos mostrar, e nos mostrar, para provocar reflexão. No Festival do Rio, durante a apresentação do Favela Gay, eu ficava lá atrás na sala para acompanhar a reação as pessoas. Vi que algumas delas tinham vindo na sessão da véspera, e depois vinham de novo com um familiar, por exemplo. Ou seja, o filme gerava um debate. Eu, enquanto pai, posso falar para o meu filho o caminho a ser seguido. Isso entra por um ouvido e sai pelo outro, lamentavelmente. Mas quando isso chega através da música e o audiovisual, a absorção é diferente. Por isso precisamos usar a ferramenta audiovisual para passar as nossas mensagens transformadoras. Temos que acreditar sempre na capacidade de transformação. Se não acreditarmos mais que podemos mudar, é melhor pararmos por aqui e não fazer mais cinema.
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