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Feliz Aniversário :: “É uma mistura de mentiras e verdades, de amor e manipulação”, explica Cédric Kahn

Publicado por
Bruno Carmelo

Quando o diretor Cédric Kahn decidiu fazer um filme inspirado em sua família, ele não suavizou a representação dos parentes, pelo contrário: Feliz Aniversário (2019) apresenta uma rede de conflitos entre a matriarca (Catherine Deneuve), os três filhos (Emmanuelle Bercot, Vincent Macaigne e o próprio Cédric Kahn) e os netos.

No centro desta trama se encontra o casarão decadente da família, motivo de disputas financeiras entre os herdeiros. A problemática Claire chega dos Estados Unidos querendo cobrar uma dívida do passado. Mas o que teria acontecido com ela do outro lado do Atlântico? Romain, artista fracassado, está fazendo um documentário sobre a família, embora jamais explique ao certo o que pretende fazer com as imagens. Aos poucos, descobrimos os motivos secretos de cada um durante uma turbulenta festa de aniversário.

De passagem no Brasil para o lançamento do filme e a comemoração dos 30 anos da distribuidora Imovision, Kahn conversou em exclusividade com o Papo de Cinema sobre o projeto, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, dia 5:

Você escreveu o roteiro pensando em atores específicos? Sempre quis atuar em seu próprio filme?
Não exatamente. Vou mentir se disser que não cogitei a escalação de Catherine Deneuve desde o começo, mas não era nada certo. Eu mesmo jamais pensei que atuaria no filme. Aliás, nunca quis ser ator em toda a minha vida. Sou ator por acaso. Tenho dirigido filmes há cerca de 30 anos, e há cinco anos um diretor muito jovem, que foi meu aluno na universidade, me pediu para atuar no filme dele. Eu recusei diversas vezes, mas ele insistiu durante dois, três anos, enquanto reunia o dinheiro para fazer o filme. Depois de tanto tempo, acabei aceitando. Ele me convenceu, e agora eu atuo às vezes, por prazer, mas não me considero um ator de verdade.

Você tem um elenco impressionante, que atua em registros totalmente diferentes. Como encontrou um equilíbrio entre eles?
Eu não buscava um equilíbrio, porque as famílias são assim: cada um possui um temperamento diferente do outro. Por isso eu queria personagens muito contrastados: Catherine Deneuve, a mãe, guarda todos os conflitos para ela e finge que tudo está bem. A irmã, Emmanuelle Bercot, possui um registro muito mais exteriorizado. Na verdade, escolhi atores cujo temperamento já condizia com os personagens. Não quis mudar o estilo de cada um, oferecer um desafio de composição, pelo contrário, quis utilizar o que já tinham a oferecer de si próprios.

Sempre pensou em criar um filme coral, ao invés de adotar um ponto de vista único?
Sempre. Adoro filmes sem protagonista. Na verdade, a irmã possui uma posição central, ela costura a história, mas não é possível considerá-la heroína, porque não observamos a história pelo ponto de vista dela. O olhar muda: em alguns momentos, podemos nos identificar com algum personagem, mas depois acreditar que ele teve uma atitude condenável, e então preferir outro. O espectador pode passear entre diversas maneiras de pensar.

Qual é a importância de ter um filme dentro do filme?
É fundamental. Este recurso questiona vários elementos: a posição do artista dentro desta família, a importância da arte como motor para esta loucura familiar. Essas pessoas precisam se expressar, e o fazem através da arte. Além disso, todos tentam manipular uns os outros. O filme feito pelo irmão também constitui uma forma de manipulação. Feliz Aniversário é construído através de várias referências metalinguísticas: mesmo a peça de teatro interpretada pela garota conta sua experiência e reflete a maneira como ela enxerga esta família complicada. É uma mistura de mentiras e verdades, de amor e manipulação. Era preciso que a família contivesse todas essas contradições, porque essa é a minha visão da família, infelizmente – ou felizmente!

A câmera faz coreografias muito precisas para acompanhar os atores, mas a interação com o texto parece descontraída, natural. Como trabalhou com o elenco em cena?
É difícil para mim falar deste filme como eu falaria sobre os outros, pelo fato de atuar nele. Isso mudou a minha forma de trabalhar: eu tinha menos controle. Neste caso, a confiança foi fundamental. Entreguei a cada ator seu papel, e cada um era responsável por construir seu personagem. O mesmo valia para a parte técnica: cada um precisava ser responsável por sua função. Deixo bastante liberdade ao elenco, contanto que permaneçam dentro do texto. Eles podem propor muitas intenções a partir do roteiro, mas é preciso se ater ao texto. Não vejo espaço para improviso. Quanto ao meu controle, era diferente: não via as coisas de fora, de um ponto de vista externo, mas compensava isso com o olhar interior. Conseguia sentir a energia de cada ator, e o funcionamento da cena estando no interior dela. Eu conseguia dizer se as atuações estavam em alto nível por estar literalmente junto dos atores.

Vincent Macaigne, Emmanuelle Bercot, Catherine Deneuve e Cédric Kahn. Foto: Coadic Guirec / Bestimage

Como acabou atuando no papel de Vincent? Ele pode ser um personagem difícil.
Era mais fácil pegar para mim o papel mais antipático! Não teria coragem de pegar o papel mais agradável. Não consigo me imaginar dizendo isso ao resto do elenco, uma vez que eles já tiveram que aceitar atuar comigo, não tiveram escolha. Além disso, existia uma relação interessante entre o meu personagem e a posição de diretor. Vincent também dirige as ações dos familiares, ele quer decidir e representar a ordem em alguns momentos. Então havia uma relação frutífera entre as duas funções. Mesmo assim, foi a produtora que me convenceu a atuar no filme. Ela me disse: “Como este filme é tão pessoal, inspirado na sua própria família, vá até o fim e se inclua na história”. Este foi um gesto artístico da parte da produtora.

Você considera esta família um retrato da burguesia francesa de hoje?
Para mim, não é a família burguesa típica, porque eles são burgueses apenas na aparência. Na verdade, olhando de perto, nada funciona ali dentro. A casa está caindo aos pedaços, eles não têm mais dinheiro, todos querem ser artistas, mas não conseguem. É uma família decadente, mais representativa de algumas gerações atrás. Eles estão meio perdidos. Queria mostrar que eles vivem fechados sobre si mesmos, e têm problemas em lidar com a modernidade e o mundo exterior. Existe a personagem argentina, o garoto negro, a esposa de Vincent, que é tratada de maneira desrespeitosa. Tudo o que vem de fora se torna problemático para essa família doente e incapaz de olhar para os outros.

A propósito de doenças, o papel de Claire é interessante, por ser o mais misterioso. Nunca sabemos exatamente o que aconteceu com ela nos Estados Unidos, antes de ir à festa.
Sim, somos levados a fazer uma espécie de investigação sobre ela. O roteiro inteiro, aliás, se constrói como uma investigação. Somos levados a pensar, no início, que ela é muito gentil, mas depois há indícios que talvez ela seja louca, e depois descobrimos que talvez nem seja tão louca assim. Ela é manipuladora, mas depois parece uma vítima. Queria que tivéssemos diversas hipóteses sobre os personagens. Emmanuelle Bercot fez um trabalho fantástico com essa personagem, por atribuir inúmeros aspectos a Claire. Ela fazia questão de não ser simpática o tempo todo, de alternar entre a violência e a doçura. A loucura está presente, sem dúvida, através desses estados diferentes.

A trilha sonora desempenha um papel importante para comentar o estado de espírito dos personagens.
Como a casa e a família, a trilha sonora está voltada ao passado. São canções francesas clássicas, nostálgicas. Afinal, este é um grupo de pessoas baseadas na melancolia. Eles são incapazes de olhar para a frente e o futuro – mesmo o jardim é fechado. Por isso, escolhi velhas canções que ligam os personagens, todas muito conhecidas, com letras capazes de expressar o que eles não conseguem dizer, tanto dentro do carro quanto na cena do cemitério, por exemplo. Apenas o personagem mais jovem é apresentado com uma trilha de rap, porque ele representa o futuro.

Acredita que este filme seja universal, capaz de ser compreendido da mesma maneira na França e fora dela – no Brasil, por exemplo?
Evidentemente, sei que fiz um filme muito particular. Trata-se de uma família muito parecida com a minha, um pouco louca. Mas depois viajei muito com o filme pela França e por outros países, e escutava diversos espectadores dizendo que este era um retrato bastante parecido com a família deles. Então eu comecei a pensar que talvez a minha família não fosse tão estranha assim! Já os meus familiares, quando assistiram ao filme claramente inspirado neles, não se reconheceram em tela. Todo mundo foi capaz de se identificar com estes personagens, menos eles. É extraordinário, não?

 

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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