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Fernando Bohrer é mais do que um ator: ele é uma pessoa que respira arte no dia a dia, combinando as aulas de arte cênicas com performance, música, poesia, artes plásticas, literatura, gastronomia. Em outras palavras, o homem de 74 anos “resgata o sentido profundo do que é ser artista”, segundo a diretora Júlia Ariani, que comandou Fernando (2017) em parceria com os diretores Paula Vilela e Igor Angelkorte.

O trio decidiu abordar um sujeito multifacetado de modo igualmente múltiplo. O resultado é um filme fascinante, experiência híbrida entre ficção e documentário, entre cinema e as demais artes. A obra foi premiada no festival Olhar de Cinema antes de percorrer o Brasil em exibições informais até chegar enfim ao circuito comercial. O Papo de Cinema conversou com Vilela, Ariani e Angelkorte sobre o filme em cartaz nos cinemas a partir desta quinta-feira, 27 de novembro:

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Equipe de Fernando, com Fernando Bohrer. Foto: Paulo Ruch

Qual foi a trajetória de Fernando desde a primeira exibição, em 2017, até o lançamento nos cinemas?
Paula Vilela: O filme foi exibido no Olhar de Cinema, em Curitiba, onde ganhamos o prêmio do público, prêmio da crítica e menção honrosa de filme brasileiro. Passamos pela Mostra de Tiradentes, Festival de Málaga, Festival de Salvador, o Ela Faz Cinema, a Mostra do Filme Livre, o Fricine em Friburgo…
Igor Angelkorte: Além disso, passei um ano viajando o Brasil para exibir esse filme em diversas ocasiões de maneira bem artesanal, pegando um projetor e usando uma parede vazia. A ideia era mostrar o filme para dez, vinte pessoas, e depois pegar o carro e seguir em frente. Fui desde faculdades na Bahia até acampamentos.
Júlia Ariani: Eu fiz uma parte dessa viagem. Mostramos o filme em barcos, e depois para uma companhia de teatro da Ilha de Marajó.
I.A.: Tivemos sorte de conseguir o lançamento comercial. Muitos projetos de qualidade não conseguem chegar às salas, mas fomos selecionados para um edital público, o que ressalta a importância desse tipo de investimento.
J.A.: Isso foi fruto da parceria com uma distribuidora de cinema, a Olhar Distribuição, vinculada ao festival. Eles foram parceiros desse processo, desde o momento de colocá-lo no edital.

Os próprios personagens debatem a questão do fomento à arte. Mas a situação no Brasil mudou muito desde as filmagens até 2019.
P.V.:
O filme se tornou muito mais atual. Filmamos no final de 2016, e o projeto trata de todas as questões que vemos agora. Tem a situação da Ancine, e depois tivemos a aprovação num edital que foi interrompido, depois voltou… A Ancine é um órgão muito importante, que trilhou um longo caminho até hoje, mas agora percebemos a dificuldade pela qual temos que passar. É muito relevante para a gente conseguir distribuir Fernando neste momento.
J.A.: A trajetória do lançamento entra em afinidade com os personagens, especialmente na cena do bar. Quando a gente fala desses editais, que correspondem a um dinheiro vindo de fora, discutimos também a importância de não depender disso. A trajetória de circulação que o Igor fez, de maneira independente, combinou o caminho tradicional dos editais e das salas com um trabalho diário de pensar no alcance do filme, chegando a pessoas que não poderiam ir a uma sala de cinema. Conseguimos cruzar essas duas forças.
I.A.: Quando a gente defende leis de incentivo, sabemos que elas ainda tinham muito a melhorar, ninguém defende ingenuamente a Ancine. Defendemos o aprimoramento desses instrumentos, como a representatividade de gênero, de cor etc. Muitos projetos ainda ficam concentrados no Sudeste, nas mãos de homens brancos e heterossexuais. Sabemos que teria muito a evoluir, mas o que vivemos agora é um problema maior. Se antes a gente defendia a melhoria, agora temos que dar um passo atrás e defender a própria existência do fomento.
P.V.: Nunca pensamos que a situação pudesse retroceder tanto assim.
J.A.: Este é um desmonte não apenas dos mecanismos de investimento, mas da própria figura do artista e do professor. Não é apenas uma questão do dinheiro que chega às produções. Quando Roberto Alvim chama Fernanda Montenegro de “sórdida”, ataca-se a função do artista dentro da sociedade. O filme acaba falando muito tanto da figura do artista quanto da figura do professor.

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Qual era o espaço para a ficção dentro do molde do documentário? Fiquei surpreso ao descobrir que o marido de Fernando é interpretado por um ator.
P.V.: Tivemos grande liberdade de intervenção. Nós conhecíamos bem a figura do Fernando, e tínhamos muito material com ele. Ele tinha muita disposição a brincar com a realidade, a ser protagonista de si mesmo. Preparamos o roteiro estruturado, pensando na vida e na rotina dele, mas depois, chegando ao set, ele trazia elementos novos. Inclusive, o personagem que faz o parceiro dele agregou outros elementos para essa narrativa. Ficcionalizar Fernando foi muito interessante, e o Fernando se propôs a ficcionalizar a si mesmo. Existia a brincadeira de primeiro escrever, depois ir para a cena e descobrir novos elementos que ressignificavam o nosso roteiro. O documental e o ficcional se cruzavam o tempo inteiro. Era natural que fosse assim.
I.A.: O registro híbrido de linguagem agrada muito a nós três, mas se fosse o filme sobre um médico, por exemplo, talvez esta escolha se limitasse a um mero exercício de linguagem. No nosso caso, estamos tratando da vida de um professor, artista e ator. Convidá-lo a interpretar sua própria vida levava naturalmente a misturar o documental e o ficcional. Dentro deste gênero, trabalhar com um ator carrega naturalmente a este exercício. Tudo é ficção nesse filme, é difícil separar o que seria documentário.
P.V.: Mas tudo é verdade!
J.A.: Podemos dizer que as cenas realmente aconteceram. Como não temos diálogos escritos, apenas provocações para cada cena específica, ela efetivamente acontece naquele momento. Este vira um registro documental sobre o gesto de fazer cinema. Nós viemos do teatro, então existia a energia do improviso muito viva em nós, além da criação feita em conjunto.
P.V.: Na cena da cama, por exemplo, quando estão Fernando e o companheiro, nós estávamos encolhidos ao pé da cama, assistindo à cena para ver o que se daria. Nem é possível chamar de cena. Nós balizávamos aquele instante, mas ao mesmo tempo, deixávamos acontecer naturalmente. Isso gerava outros desdobramentos para nós enquanto roteiristas e diretores.
J.A.: A Júlia lembrou que o Fernando estudou o personagem, embora fosse ele próprio. Ele utilizou todas as ferramentas que tinha do teatro, passando por Stanislavski, Grotowski etc., misturando sabor, cheiro, cor, elementos da terra e muitas outras ferramentas que compõem o universo criativo do Fernando. Ele utilizou isso para se observar enquanto personagem. Existia um vetor de ficcionalização dele para ele mesmo.

Existe uma ficcionalização dos diretores também, uma vez que vocês se colocam em cena?
I.A.: Eu diria que sim. Na cena do filme, quando eu dirijo Fernando numa peça de teatro, esta é uma metalinguagem baseada em algo que realmente aconteceu. Nós fizemos aquela peça de teatro, ficamos quatro anos em cartaz. O Fernando era o protagonista da peça, e eu tinha 25 anos de idade, enquanto ele tinha quase 70 anos. Foi uma experiência maravilhosa para mim devido à generosidade do Fernando em participar, atento ao que um garoto estava falando para ele.
P.V.: O Fernando está há alguns anos escrevendo um livro de fato, assim como vemos no filme. É um livro que fala sobre teatro e sobre a vida dele. Ele tem material demais, e não consegue terminar. Para a gente, parecia natural que ele não conseguisse terminar. Quando eu faço, no filme, a personagem que tenta organizar este projeto com ele, percebia que o Fernando não cabe num livro. Ele é essa figura que tem cor, tem cheiro, que está na arte, está na escola, está na rua. Ele transpira arte, teatro, educação. Era fundamental vê-lo no palco e vê-lo no cinema.
I.A.: Quando a Paula faz a cena, sei que, na vida de fato, ela possui informações e afetos pela figura do Fernando que a personagem dela, a organizadora do livro, não tinha. Então havia um exercício muito difícil para ela de transmitir uma ignorância sobre aquele universo do Fernando, para existir um atrito e gerar a cena. Este é um dado absolutamente ficcional, um exercício de cena. Quando eu vejo a minha cena, fico em dúvida se eu realmente dirijo daquela maneira, se falo daquela forma.
P.V.: Quando fizemos a peça, não me lembro de o Igor ter feito as mesmas solicitações ao personagem que fez no filme, mas esta é a nossa posição enquanto diretores do filme, de dizer ao Fernando: “Não queremos ver um personagem, queremos ver você”. Ficcionalizamos o nosso próprio olhar.

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Em que medida havia um roteiro preconcebido, e o quanto de Fernando nasceu na montagem?
J.A.: Muitas coisas apontadas no roteiro funcionaram, mas tivemos uma perda concreta no filme. Perdemos um HD do filme, logo no início, o equivalente a cinco cenas, ou dois dias de filmagem. Foi um acaso maravilhoso, como se o filme expulsasse aquilo. Era como um processo vivo, cheio de acontecimentos. As cenas que ficaram de fora constavam no roteiro inicial, mas a nova escrita que se dá na etapa da montagem ocorreu de maneira viva. O filme pedia o que deveria ficar ou sair, e essa estrutura foi se encontrando.
P.V.: A estrutura nasce muito do que é o Fernando. A gente tinha a imagem do mosaico da vida do artista, o que corresponde à cena final. Na montagem, fomos entendendo como reordenar essas peças por cor, cheiro, o que precisava vir antes, até criar uma curva. A constelação da vida dele está repleta de coisas importantes, e por isso mesmo muito fortes. É um mosaico da vida.
I.A.: Até por isso a gente não queria, e nem poderia, estar longe da edição. Além de os três assinarem a direção e o roteiro, estivemos na edição junto da Marina Figueiredo. Às vezes a gente filmava uma cena durante uma hora, por causa de proposições preestabelecidas, mas deixávamos o acontecimento se dar por um tempo não estabelecido. Aconteceu de ficarmos uma hora e meia filmando uma aula, para depois olhar o material e entender o que, dentro do nosso roteiro, se encaixava naquele material.
J.A.: Era questão de encontrar no material onde a veia pulsava. A filmagem era extensa, mas a gente sabia o que estava procurando. O olhar estava muito afiado para o que buscávamos transmitir através da vida desse homem. A cena tinha um propósito claro, e o material dizia a que vinha.
P.V.: Esse trabalho corresponde à experiência do teatro, que traz uma relação distinta daquela de quem vem do cinema. A intervenção e o olhar de improviso estão presentes. Escutamos das pessoas que elas se sentem dentro do filme, ao lado dos personagens. Conseguimos estabelecer o momento de concretude da intimidade, de estar juntos. É um filme que precisa dilatar o cotidiano, andar com o personagem. O cuidado de estar desde o roteiro até a filmagem e a edição faz parte desse processo.
I.A.: Isso me leva à necessidade de ver este filme no cinema. Hoje, cada vez mais, existe o apelo do celular, da tela pequena, mas a gente pensou na montagem e na fotografia que convidam a uma observação imersiva daquela vida. A sala escura, o silêncio, a não intervenção de outros acontecimentos, a comunhão que o cinema proporciona, a amplitude da tela para alargar a visão, são fundamentais ao filme. Fernando caminha na contramão da estética vigente de cortes rápidos, para chamar a sua atenção a cada três minutos, com novas informações o tempo inteiro. O nosso filme, junto de uma linha brasileira atual, segue uma linguagem da observação. Estar no cinema é importante para enxergar essas miudezas.

Fernando combina cinema, teatro, música, literatura, performance, e fala em cheiros, cores. É um filme sinestésico.
P.V.: O Fernando é pura sinestesia!
J.A.: Existe uma questão da feitura, muito antes do resultado. Na hora de escrever, tivemos uma dinâmica muito aberta, ora puxando um poema, ora utilizando uma canção. Em alguns dias, a gente dançava para escrever. Essa intersecção de artes foi importante para criar o filme. O Fernando brinca ao dizer que é casado com o teatro, mas a amante é a música. Ele monta um prato cheio de sabores e estímulos. Não dava para pensar no filme sem parar e refletir sobre a música da cena final, porque neste caso, a música é a cena. É claro que existe a imagem, com um tempo específico, mas a escolha de ouvir um Mozart inteiro também propõe a imersão numa instância que faz parte da dinâmica do Fernando. O vocabulário dele tangencia artes distintas, aproximando a gente de experiências novas. Ele fala tanto de Lorca quanto de Mozart.
P.V.: O Fernando é assim na vida. Um dia ele diz: “Hoje eu preciso comer vermelho”, e faz uma gelatina vermelha. Depois diz: “Hoje eu preciso de azul”. A casa dele é pura sinestesia. Ele pinta as coisas ao redor, e enquanto toca piano, ele faz uma cena, aponta um desenho do Miró. A gente brincava muito com isso, contaminados pelo olhar do Fernando. O nosso mural sobre o filme tinha mil elementos de várias cores, com nossos papéis, nossos poemas, as receitas que ele ensinava.
J.A.: O Fernando borra completamente a fronteira entre as artes. Ele resgata o sentido profundo do que é ser um artista. Ele mexe com o que precisa mexer: se precisar dar uma aula de geografia e precisar fazer um prato de comida, ou se for falar sobre a Índia e precisar de uma canção, ele resgata a função do artista. Pouco importa a ferramenta que vai usar, contanto que mexa na sensibilidade, no imaginário e no senso crítico. A gente incorporou isso na maneira de olhar para o Fernando.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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