Esta não foi a primeira vez que conversamos com o diretor Aly Muritiba. Já o havíamos entrevistado uma vez, por e-mail, na ocasião do lançamento do seu primeiro longa como cineasta, Para Minha Amada Morta (2015) – você pode conferir aqui – e também tido encontros informais durante o Olhar de Cinema – Festival Internacional de Cinema de Curitiba, evento que conta com ele como um dos organizadores e que neste ano teve sua sétima edição. Mas durante a passagem de Ferrugem (2018) pela Serra Gaúcha, de onde saiu como o grande vencedor do 46º Festival de Gramado – com os kikitos de Melhor Filme, Roteiro e Som – tivemos a oportunidade não apenas de sentar com o cineasta, mas também de termos uma longa e produtiva conversa sobre esse seu mais recente trabalho, que estreou no início do ano no Festival de Sundance, nos EUA, e que agora está, finalmente, entrando em cartaz nos cinemas brasileiros. Um bate-papo inédito e exclusivo, que você só confere aqui!
Você estreou com o Para Minha Amada Morta (2015), que foi muito bem-sucedido. Como foi sair daquele filme e ir para o Ferrugem?
Cara, no fim das contas, Ferrugem e Para Minha Amada Morta tem vários pontos em comum, se os analisarmos com cuidado. Ambos possuem protagonistas masculinos muito introspectivos e que de alguma maneira são perturbados por questões ligadas ao afeto e à feminilidade. Os dois possuem como ponto de partida, ou como disparador do drama principal, vídeos – no anterior era uma VHS, agora é algo vazado no whatsapp – e em ambas gravações possuem conteúdo sexual que perturbam seriamente a vida do personagem que as descobrem. Na real, estou fazendo o mesmo filme, mas de maneiras diferentes.
Qual foi a inspiração para esse novo longa?
O Ferrugem nasceu de uma vontade que tinha de falar com os jovens. Não sobre eles, mas com eles. À medida em que meus filhos iam crescendo, comecei a sentir necessidade de também colocar nos meus filmes as coisas que discuto com eles. E que me inquietam relativamente a eles e aos seus parceiros e colegas. O primeiro argumento era uma história muito bobinha. Eram meninos que estavam interessados em sair com meninas, e num dado momento falei: “isso é muito banal”. Dizia mais respeito ao adolescente que eu era nos anos 1980, que ficava tentando encontrar estratagemas para sair e transar, e não sobre a realidade de como é a vida do meu filho, por exemplo.
Foi quando percebeu que seria preciso mudar de rumo, então?
Exato. E o que fiz foi chamar a Jessica Candal, que assina como co-roteirista, e começamos a pesquisar sobre as coisas que os adolescentes falam e o que os inquietavam hoje. A primeira coisa que notamos é que existem, sim, pontos em comum entre os garotos que éramos, décadas atrás, e os de agora, que é essa insegurança, essa necessidade de pertencimento, de fazer parte de um grupo, de ser aceito. Essa preocupação em não ser mal falado. Sou de uma cidadezinha muito pequena, no interior da Bahia, onde ser mal falado era quase sinônimo de morte pública. E hoje em dia isso é hiperbolizado por causa da internet. A partir dessas interseções, criamos a história.
Através dessa pesquisa vocês confirmaram que esses estereótipos – a menina ‘galinha’, o garoto ‘garanhão’ – que eram tão comuns anos atrás, perduram até hoje?
Por mais incrível que pareça, sim. São quase arquetípicos dentro do universo adolescente. Essa necessidade de fazer parte de um grupo, e dentro dele pertencer a uma determinada categoria, são coisas que surpreendentemente permanecem. E o medo de ser taxado, de ser julgado como algo que eventualmente você não é, ou não se sente, continua também. As inseguranças são as mesmas. A diferença, acredito, está na exposição que existe hoje em dia, que é muito maior. As possibilidades de você ser exposto, e de ser julgado, são muito maiores, enquanto que as de você se defender são infinitamente menores.
O filme é feliz em mostrar esses jovens o tempo todo conectados com o mundo virtual. Por que, então, não estão em sintonia com discussões tão atuais, como o feminismo e empoderamento feminino? Esse tipo de debate não chega até eles?
Acho que até chega, mas para uma minoria qualificada. Ou estudam em escolas que fomentam esse tipo de discussão, ou fazem parte de famílias das quais esses debates estão em pauta. Lá em casa, por exemplo, o meu filho de 15 anos estuda em uma escola – onde filmamos, inclusive – que é um ambiente super progressista, e estas questões estão sempre sendo discutidas. Portanto, consigo conversar com ele sobre essas coisas. Por isso consigo perguntar a ele: “e aí, tá saindo com algum cara?”, e se ele diz “não”, pergunto “e com alguma menina?”, e ele diz “não” também. Com a maior naturalidade. Se o meu pai me perguntasse, vinte anos atrás, “e aí, tá saindo com algum garoto?”, eu ia ficar escandalizado, do tipo “você está louco? Sou homem, porr*!”. Os padrões da época eram outros. Mas como disse, é uma minoria, ainda, dos jovens e adolescentes que estão discutindo essas questões, se abrindo sobre isso, lendo textos a respeito.
Ferrugem deixa muitas perguntas não respondidas. Fica muita coisa em aberto. Era uma vontade completar a narrativa com o espectador?
Na verdade, sei que tem uma série de questões que podem ser lidas como ‘abertas’, mas prefiro pensar que estas respostas estão lá, porém de uma forma mais sutil. Talvez discretas demais, não sei. As que dizem respeito ao vazamento do vídeo, por exemplo, de por quê o responsável faz isso, de certo modo podem ser respondidas se analisarmos o modo como o pai se relaciona com a ex-mulher, e como o garoto se relaciona com a mãe, que foi embora. Esses dois homens julgam essa mulher, acham que ela é a causadora do sofrimento deles, acham que ela os abandonou e, eventualmente, os traiu. Pensam que ela não deveria ter feito o que fez, que nada mais é do que ter ido cuidar de si própria. Talvez a julguem como uma egoísta.
Está tudo no filme, portanto? É apenas uma questão de estar atento?
A atitude do rapaz, ao ver o vídeo do seu novo crush com um outro cara, a sensação provocada nele é reflexo do que sente relativo à mãe, esse sentimento de traição. É por isso que a relação dele com a mãe é de raiva, a mesma que irá sentir pela menina. As atitudes dele são inconsequentes, e motivadas por isso. Está tudo lá, entende? Principalmente naquela cena do carro, do casal, a gente entende muito bem de onde vem o comportamento do garoto. Ele é filho de um pai que tenta ser um cara legal, mas que no fim das contas está fazendo coisas erradas, está hiperprotegendo o filho. E é um cara fruto da minha geração, é machista, que fica olhando para a barriga da mulher grávida e diz “to vendo que está cuidando de você”, ou seja, fica julgando ela. Esse comportamento misógino do protagonista, na verdade, é geracional. Ele aprendeu com o pai.
Vamos falar da Tati. É uma personagem que poderia levantar a cabeça e enfrentar o que lhe acontece, mas que acaba cedendo. Como foi a construção dela?
Nós nos perguntávamos como faríamos para dar a ver o isolamento e a solidão dessa garota. E como o medo do julgamento a levam a tomar a atitude extrema a que é conduzida. Passo a passo, fomos filmando cenas em que o espaço ao redor dessa garota vai ficando cada vez menor. Vai se sentindo cada vez mais enclausurada naquela situação, mais insegura e ensimesmada. Até o valor de plano vai diminuindo. E as pessoas ao redor vão desaparecendo. Vão sumindo do quadro. Até ouvimos ecos, escutamos essas vozes, ou ela vê as reações nas redes sociais, mas, no fim das contas, ninguém está lá para ampará-la. Inclusive a melhor amiga, que também a deixa por uma questão muito machista, que é o medo do namorado de que ela seja taxada de ‘vagabundinha’ por estar andando com a ‘vagabunda’ da escola.
Qual a preocupação que tiveram, ainda mais sendo a protagonista feminina, ao elaborar a mensagem que ela transmite?
A gente foi construindo situações nas quais a Tati foi ficando cada vez mais solitária, e isolada. Os pais nunca aparecem, e quando se manifestam, é fora de quadro, fazendo perguntas desinteressadas. “E aí, tudo bem?”, mas ninguém quer saber, efetivamente, se ela está bem de verdade. É quase como um cumprimento, apenas. Para nós, era importante que ela fosse esse modelo de menina contemporânea que, muito embora tente parecer feliz, tenha o seu avatar de felicidade, no fim das contas é cheia de fragilidades – como somos a maioria de nós hoje em dia. Nas redes sociais estamos sempre muito felizes, mas ao mesmo tempo temos mil questões internas que não sabemos e não estamos sendo preparados para dar vazão. O fato é que as Tatis que existem por aí são fruto de uma geração que não tem sabido como lidar com as redes sociais.
É uma questão geracional, portanto?
Hoje somos pais, mas fomos criados ouvindo dizer que o “não” era uma palavra que não deveria ser usada com as crianças. Porque o “não” frustraria, traria infelicidade. O que nos ensinaram é que deveríamos ser amigos dos filhos. Quando, na verdade, filhos precisam de figuras de autoridade e de referência. Os amigos eles têm fora de casa. Só que não fomos preparados para isso. Não foi essa a educação que recebemos. Fui professor durante muito tempo no ensino médio, e muito ouvi pais e mães orgulhosos de se dizerem amigos dos seus filhos. Primeiro, estão equivocados, porque não os são de fato. Os filhos não se abrem por completo com essas pessoas. E em segundo não se dão conta de que essas crianças precisam de referências, de limite e frustração.
E o que é diferente com a geração atual?
A Tifanny Dopke, a atriz que faz a Tati, é mais ou menos da idade do meu filho. Os jovens de agora não sabem lidar com a frustração. Não aprenderam a lidar com esse sentimento. E aí, ao primeiro sinal de tristeza, caem em depressões profundas e tomam atitudes extremas. Porque não foram condicionadas a se frustrar. Eu precisava, e queria, era muito importante para mim discutir essa situação. É uma questão que me perturba enquanto pai, enquanto ex-educador. Nós, os mais velhos, também estamos tentando aprender a lidar com as redes sociais. Assim como os jovens, criamos nossos avatares de felicidade, e não estamos preparando a geração seguinte a lidar com o mundo concreto e real, onde a gente se fode dia sim e dia não, e dia sim e dia também. A Tati está em consonância com esse meu pensamento.
O filme é dividido em Parte 1 e Parte 2, mas é quase Lado A e Lado B. Por quê essa divisão?
Era importante não falar apenas da vítima, mas também daquele que vitimiza. De alguma maneira, mostrar o quanto que aquele que é responsável pelo sofrimento também pode sofrer as consequências de suas atitudes impensadas. E pra falar dessas estruturas familiares que queria tanto discutir, era importante ter esse Lado B, que você tão bem coloca. Só assim conseguiria apontar para estes dois tipos de adultos, que são os pais da minha geração, retratados primeiro como os pais da Tati, aqueles que não estão, que provém materialmente os filhos, mas não se fazem presentes – e, no caso do filme, não aparecem em quadro quase nunca – e o outro modelo, que são aqueles superprotetores, que são os que aparecem no lado B. Por isso dividir o filme dessa maneira, para poder embasar essas escolhas.
Muitos tem comparado Ferrugem com o mexicano Depois de Lúcia (2012), mas ao assisti-lo percebi mais conexões com títulos como o dinamarquês A Caça (2012) ou mesmo o nacional Aos Teus Olhos (2017). Quais foram as tuas referências?
Você está certo. Ferrugem tem muito mais a ver com o A Caça do que com o Depois de Lúcia, com certeza. A única semelhança que existe entre o Ferrugem e o Depois de Lúcia é a temática, mas o modo como esse tema é abordado é muito diferente. Esteticamente, também, são absurdamente distantes. No entanto, confesso que não busquei referências estéticas no cinema. Busquei mais na internet. No modo como os jovens se comportam com a internet, como se comunicam através das redes e nos vídeos que estão acostumados a ver nesse ambiente. Nossa, fiquei muito tempo na internet pra poder fazer esse filme. A segunda parte, o Lado B, é muito mais – se é que tenho – o meu estilo, com planos posados, bem compostos, meio Para Minha Amada Morta. Planos-sequência, com várias ações acontecendo em camadas distintas do plano. A minha referência nessa segunda parte foi eu mesmo, posso dizer. O meu gosto pessoal. Mas a primeira metade foi totalmente internet, me senti muito conectado.
Para terminarmos, o que significa ‘ferrugem’ nesse caso? Por quê esse título?
Esse título serve como metáfora para os dois processos de corrosão, de destruição que acontece com os protagonistas. Com a Tati, pelo julgamento que enfrenta. O enferrujar é a ação externa do oxigênio sobre o metal que provoca o seu esfacelamento. No caso da Tati são os julgamentos que fazem com que ela enferruje, que se dilua. E no caso dele, é corroído por uma culpa muito grande que faz com que no fim das contas tome a decisão final. De certo modo, é uma metáfora sobre os processos internos desses personagens.
(Entrevista feita ao vivo durante o Festival de Gramado em agosto de 2018)
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