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Cavi Borges é um dos mais citados nomes do cinema brasileiro atual. Não é um exagero dizer que sua prolífica carreira de produtor/realizador/distribuidor/cineclubista/agitador é indissociável da paisagem cultural do Rio de Janeiro há pelo menos 24 anos. Sempre com um sorriso no rosto e ostentando um contagiante otimismo – mesmo diante do panorama tão incerto quanto o do audiovisual no Brasil –, Cavi tem seu nome em quase 400 produções. Curtas, médias e longas-metragens; webséries; filmes-live; enfim, o repertório não é apenas vasto, mas diverso. Para comemorar os 24 anos da Cavídeo, estabelecimento que começou como locadora na Cobal do Humaitá, na capital fluminense, e atualmente se transformou num centro cultural situado no bairro das Laranjeiras, também na zona Sul da Cidade Maravilhosa, está no ar o Festival Cavídeo 24 anos. Ao todo são mais de 370 filmes disponíveis, gratuitamente e online, além da exposição (virtual e presencial) com pôsteres dos filmes, troféus, fotografias, matérias, credenciais, diplomas e vídeos. Conversamos com Cavi Borges para saber um pouco mais dessa história de 24 anos e entender como é isto de precisar de reinventar constantemente no cinema brasileiro. Confira!

 

Ao longo de 24 anos, a Cavídeo deixou de ser apenas uma locadora, se tornando produtora e distribuidora, além de um centro de agitação cultural. Você sequer sonhava que isso poderia acontecer quando começou?
Engraçado, pois a minha trajetória no cinema não foi programada, ao contrário da minha carreira de atleta, que teve tudo pensado desde meus 11 anos para que eu chegasse a uma olimpíada. No cinema tudo foi acontecendo. Depois que me machuquei antes das olimpíadas de Atlanta, abri a locadora; me machuquei antes da olimpíada de Sidney, aí criei os cineclubes e iniciei os eventos. Depois, comecei a fazer, a distribuir e a lançar filmes. Agora, administro um espaço cultural. Tudo foi simplesmente acontecendo. Sou um cara empreendedor, por isso sempre estou atento às oportunidades. Acho que essa é uma qualidade minha. Sou aquele cara que diz “sim” para tudo, por isso inclusive me ferro às vezes (risos). Sou alguém que acha que determinado filme vai mudar minha vida, que aquele projeto vai dar certo, que a mostra tal vai chegar às pessoas. Sou um cara muito otimista e trabalhador. Quando comecei a fazer eventos, mirava em algo comercial, pensava na Cavídeo dando dinheiro. Não tinha nenhuma relação com cultura.

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E aos poucos isso foi mudando…
Sim. Eu era judoca, gostava de judô. Minha vida girava basicamente em torno disso. De vez em quando ia aos cinemas para assistir aos blockbusters. A própria Cavídeo seria uma locadora especializada em filmes de luta. Demorei quase um ano para inaugurar o estabelecimento. Não tinha dinheiro para contratar despachante, então resolvi por conta própria tirar o alvará, certidões e afins. Nesse ano em que a locadora estava pronta, mas ainda não poderia abrir, as pessoas iam lá visitar e perguntavam se nela teria filmes do Truffaut, do Godard e do Tarkovsky. Percebi, e acho que isso é um mérito meu, que não iria dar certo permanecer com o nicho dos filmes de luta. Entendi a demanda por filmes artísticos. Migrei, comecei a estudar para caramba, dava uma espiada nas concorrentes (risos). No começo, achava TruffautGodard chatíssimos, não conseguia entender como consideravam aquilo genial. Aí você vai vendo uma, duas, três vezes, vai lendo, estudando, ouvindo o que as pessoas falam, vai entendendo e vai educando seu olhar. Para mim era muito difícil ver um filme preto e branco, no qual as coisas demoravam a acontecer. Geralmente a gente não gosta do que desconhece. Atualmente é o oposto, pois adoro esses filmes e tenho dificuldades de curtir os blockbusters. Até vou assistir, mas não é o tipo de filme que me interessa mais.

 

Podemos dizer que sua trajetória é marcada frequentemente pela palavra “reinvenção”. Mas, há também uma romantização dessa capacidade de reinventar-se constantemente….
Minha mãe até me zoa. Ela diz que abri uma locadora quando ninguém mais alugava filme, faço filme que ninguém quer ver, e distribuo filme que não dá dinheiro. Ela fala que somente escolho o caminho mais difícil (risos). É uma opção artística, de certa forma. Aprendi ao longo dos anos que o mais importante é gostar do que se faz e, mesmo que demore um pouco, com o tempo você vai ganhar dinheiro com aquilo. Mas, demora. Principalmente no Brasil, e ainda mais na área do cinema independente. Preciso fazer 10 filmes por ano para ganhar a mesma coisa do que alguém que produz um filme comercial. Tento sempre olhar o lado positivo das coisas. Neste caso, o positivo é que acabo fazendo mais filmes, conhecendo pessoas, me exercitando, abordando uma variedade grande de assuntos e possibilidades. Em termos financeiros, ganho pouco em cada filme. Por isso mesmo a quantidade gigantesca de filmes da Cavídeo (risos). Acabamos ganhando no volume. Somos contemplados num edital para fazer um curta e com o dinheiro realizamos três. Ganhamos o prêmio para um longa e fazemos dois. Tem seus lados bons e ruins.

 

E qual é o principal lado ruim?
Sempre há perdas por conta da falta de estrutura. Seria bom poder filmar com calma. Faço longas em uma semana. Precisaríamos de ao menos um mês. Para conseguir realizar os filmes com o valor do qual disponho, é preciso estar sempre correndo, sempre na maratona. Falo que é tipo 100 metros rasos. Às vezes quando a produção acaba, estou fisicamente destruído. Não podemos errar, rola uma tensão constante. Por exemplo, Bandeira de Retalhos (2017), do Sérgio Ricardo, orçado em R$ 5 milhões e que fizemos com R$ 100 mil. Não tinha certeza que daria para fazer o filme, mas ao mesmo tempo precisava ser o cara que dizia para todo mundo que daria. E eu não sabia se daria (risos). Mas, obviamente se paga um preço muito alto por isso. Fiquei quase doente depois das filmagens. Reconstruímos uma favela dos anos 1960 dentro da favela atual, alugamos terra e madeira, algo que eu nem sabia que dava para alugar. Filmávamos uma semana, parávamos um mês. E assim foi indo até o fim. Foi difícil, mas no fim das contas conseguimos, inclusive promovendo um retorno do Sérgio Ricardo após quase 40 anos sem filmar.

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Aliás, esse resgate dos mestres é uma constante na história da Cavídeo. Produzir filmes de gente como Luiz Rosemberg Filho, Sérgio Ricardo, entre outros, deve ser um dos teus orgulhos, não é?
O primeiro baque que tive nesse sentido foi quando estava estudando cinema no começo dos anos 2000 e a professora pediu um trabalho sobre Cinema Marginal. Fiquei com preguiça de fazer escrito e decidi apresentar em vídeo (risos). Comecei a procurar os filmes e não conseguia achá-los. Quanto à literatura, encontrei apenas o Cinema de Invenção, do Jairo Ferreirae o Maldito, sobre o José Mojica Marins. Lembro que até comecei a filmar o livro do Jairo Ferreira – na mostra esse curta este disponível, ele se chama A Margem. Foi ali que ouvi pela primeira vez sobre o Rosemberg, o Andrea Tonacci, o Silvio Lana, vários diretores com os quais viria a trabalhar. Pensei ali que a Cavídeo precisava completar essa lacuna. Na Cobal do Humaitá, onde a Cavídeo foi fundada, sempre eu via o Rosemberg meio sozinho, na mesa, um tanto triste, de cabeça baixa, reclamando da vida. Olhava aquele baita cineasta, que há 30 anos não filmava, e ficava pensando que não queria que isso acontecesse comigo. Certamente morreria se ficasse três décadas sem fazer o que amo. Então surgiu uma vontade de reverter essa realidade.

 

E esses grandes nomes não conseguiram acompanhar as mudanças…
Exatamente, eles não conseguiram se atualizar. As coisas mudam. Um cara como Cacá Diegues, por exemplo, está sempre na crista da onda porque acompanha as mudanças, busca novos produtores. Cinema está sempre em trânsito. Não se distribui mais um filme como se fazia há um ano. É tudo dinâmico demais. Se você não acompanhar isso, vai ficando obsoleto. Com o Rosemberg foi muito legal, pois pude orienta-lo nesse sentido de pensar o cinema digital, a lógica dos festivais, entre muitas outras coisas. Como produtor, preciso estar sempre antenado, ligado nas mudanças, constantemente me reinventando. Como em qualquer profissão, na real. Se ficar muito tempo sem estudar, sem ir a palestras e atualizações, um médico também fica obsoleto. No cinema não é diferente.

 

Quando surgiu a pandemia, as realidades do mundo do cinema foram rapidamente reconfiguradas e você estava lá, fazendo experiências, como os filmes-live…
Em 2020 fiz seis longas, mesmo com a quarentena. Vou te falar algo que, às vezes, me constrange falar para as pessoas: nunca trabalhei tanto. Vi a quarentena como oportunidade, pois ela nivelou as coisas. Por exemplo, é mais fácil igualar-se com festivais grandes quando você produz um pequeno e ambos estão online. Democratizou e, acredito, tenha sido benéfico para a galera acostumada a fazer na ralação, sem dinheiro e tudo mais. Há vários produtores acostumados a fazer filmes com mais estrutura e que ficaram meio paralisados durante a quarentena. A galera que depende da Ancine e do Fundo Setorial também está cortando um dobrado. Aliás, a crise da Ancine é um agravante. Cada um está dando um jeito. Faço financiamento coletivo, peço apoio de amigos e coloco dinheiro do meu bolso na esperança de ter retorno depois. A diferença entre o grande e o pequeno produtor diminui na quarentena. Nunca produzi tanto. Não estou ganhando muito dinheiro, mas trabalhando bastante (risos).

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Recentemente você ficou praticamente um mês internado por conta da Covid-19. Nesse sentido, o Festival Cavídeo 24 anos é uma celebração da obra, mas também da vida, certo?
Com certeza. Tem outra coisa muito bacana de estar fazendo essa mostra. Meus filmes estavam espalhados, em formatos e plataformas diferentes. Alguns tinham sido praticamente perdidos. Aproveitei o festival para fazer uma reunião, pois nem eu sabia quantos filmes tinha produzido/dirigido/distribuído em 24 anos. Sempre chutava que eram mais de 200, mas acabei descobrindo que são mais de 300. Na real, quando fechamos o release para a imprensa eram 300, aí foram aparecendo mais filmes e agora já temos 370 disponíveis. Nesta semana apareceram seis filmes dos quais nem me lembrava. O evento está servindo para organizar a obra da Cavídeo e realmente entender o alcance dela. A Cavídeo sou basicamente eu, claro, ajudado por amigos, por pessoas que vêm e vão, mas acaba tudo centralizado em mim. Não tenho uma estrutura de produção gigantesca. Quando comecei a prestar mais atenção à preservação, me alarmou o prognóstico de um especialista sobre o sumiço de 70% da produção digital daqui a 50 anos. Apesar de estar ultrapassada, a película ainda é e melhor forma de preservar esses filmes. O evento está sendo legal também para eu relembrar os tantos parceiros importantes para essa trajetória da Cavídeo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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