Em 12 de maio, é dada a largada à primeira edição do 1º Festival de Cinema Fantástico Brasileiro, que vai até 18 de maio de 2021. Otávio Lima, Fabrício Basílio e Pedro Alves, três amigos da Universidade Federal Fluminense, expandiram a proposta de um cineclube dos tempos de graduação para um festival online e gratuito, apresentando 41 longas e curtas-metragens nacionais das últimas duas décadas.
Em entrevista ao Papo de Cinema, o trio explica o processo de seleção, a preocupação com a diversidade (racial, de gênero, regional etc.), enquanto justifica o crescimento da produção brasileira de horror, fantasia e ficção científica nas últimas décadas. Além disso, os curadores explicam os conceitos de afrofuturismo e distopia, tão pertinentes à produção brasileira quanto à sociedade em que vivemos:
Como criaram um novo festival durante um momento de crise para o cinema brasileiro, e para os festivais em geral?
Otávio Lima: Esse festival está em nós há muito tempo. Nós três, além de outros estudantes de cinema da Universidade Federal Fluminense, fizemos uma Mostra de Horror Nacional em 2014 por conta própria, com a UFF cedendo espaço e a Sala de Cultura Leila Diniz apoiando com material gráfico. Nunca mais fizemos esta mostra, mas passamos a organizar um cineclube mensal, o Rã Vermelha. Exibimos terror nacional, prioritariamente, e depois passamos a exibir filmes internacionais com visibilidade baixa aqui em Niterói. Então esse festival existia em nós, esperando para acontecer. A gente não tinha a oportunidade financeira de realizar o festival, até aparecer a Lei Aldir Blanc para resgatar os produtores culturais do poço. Essa mão estendida nos permitiu aprovar o projeto, que o Fabrício já tinha mandado para a Caixa Cultural e para o CCBB. Precisamos adequar o formato, por causa da realidade do online. Teria sido impossível propor algo presencial durante essa montanha-russa – não seria seguro, nem por questões de saúde, nem financeiramente. Caso a gente precisasse alterar o festival em cima da hora, acabaríamos destruindo a proposta.
Fabrício Basílio: O festival chega num momento interessante, ao final de duas décadas, especialmente nesta fase pós-Encarnação do Demônio (2008), quando o cinema brasileiro fantástico ganha muita força no cenário nacional, em longa-metragem e bastante no curta-metragem. A nossa ideia era refletir sobre essas duas décadas de cinema fantástico produzido nesse século. O festival é bem-vindo neste sentido porque traz uma mostra retrospectiva, e aponta formas de produção ou tendências que o cinema pode abrigar no futuro. Este é um período difícil para o audiovisual brasileiro por causa do governo federal, que destruiria a nossa produção se pudesse. Quisemos refletir sobre este século muito rico de produção. Talvez agora seja o momento mais fértil da nossa produção fantástica.
Vocês percebem uma evolução nos filmes fantásticos? Novas tendências?
Fabrício Basílio: Ainda existe uma tendência muito forte do que a Laura Cánepa costuma chamar de “horror militante”, que reverencia os códigos mais famosos e o próprio gênero, algo que percebemos com força nas obras do Dennison Ramalho. Mas existe outra gama de realizadores que empregam elementos de horror nas narrativas de forma menos programática. Eles trazem questões sociais de maneira ainda mais forte. Marco Dutra, Juliana Rojas e Kleber Mendonça Filho partem para esse caminho. Talvez esta seja certa novidade dentro do cenário da produção brasileira: o encontro do cinema de autor com elementos muito fortes do cinema de gênero. Outro recorte interessante diz respeito aos realizadores que não se ligam aos códigos do gênero de maneira tão programática, mas constroem narrativas atravessadas por elementos sobrenaturais de alguma forma. Nesse festival, por exemplo, a gente tem Histórias que Só Existem Quando Lembradas (2011), da Julia Murat, que é atravessado por silêncios nessa vila de idosos. A Alegria (2010), do Felipe Bragança e da Marina Meliande, tem um monstro marinho numa cidade soterrada. Alguns realizadores se ligam ao sobrenatural sem adotarem tão claramente os códigos de gênero. Uma terceira vertente que ganhou muita força nos últimos anos diz respeito à distopia. Recebemos quase 450 filmes, e havia uma quantidade enorme de distopias, pensando na Covid, no Brasil dos últimos cinco anos. Isso gerou vários filmes no cinema brasileiro contemporâneo que não adotam uma distopia dura, nos moldes de 1984 e Admirável Mundo Novo, mas lidando com o pensamento de um Brasil futuro e distópico. Divino Amor (2017), Sol Alegria (2018) e outros seguem este caminho. Tentamos mapear os três eixos neste festival.
Pedro Alves: Tanto na retrospectiva quanto nos filmes recentes, percebemos este fantástico distanciado do horror. Recebemos muitas narrativas de cunho regional e territorial. Realizadores de todo o Brasil encontraram o sobrenatural no cotidiano particular da região onde moram. Existem histórias baseadas em contos de povos originários, folclore de algumas regiões do Brasil, e até a mudança de alguns símbolos brasileiros que a gente não enxergava até então como fantásticos.
O afrofuturismo ainda é pouco conhecido popularmente. Como ele se insere no festival?
Fabrício Basílio: Ainda temos uma produção pequena do afrofuturismo no cinema brasileiro, mas ela tem se destacado bastante. No festival, exibimos Chico (2016), um representante importante desta produção. Este subgênero revela questões do mercado audiovisual, por serem obras realizadas por pessoas negras, enfrentando dificuldade de distribuição em mercados e festivais. São produções muito representativas do atual momento do Brasil. Pensando no conceito clássico de afrofuturismo, tendemos a associá-lo à distopia. Para os povos negros, a distopia é hoje, quando vemos o massacre do Jacarezinho e o genocídio da juventude negra. O presente é distópico, e o afrofuturismo pode reagir com um olhar pessimista ou otimista a este aspecto. Dois filmes da mostra dialogam com isso: um deles é muito pessimista, apesar do final poético. Falo de Chico, onde a mãe prende o filho a uma pipa e o solta. Chico evoca o futuro em que o governo deseja prender todos os jovens negros por pressupor que vão cometer crimes. Por outro lado, Inabitável talvez fuja ao afrofuturismo, porque muitos teóricos concebem esta produção feita apenas por realizadores negros, o que não é o caso deste curta. Mesmo assim, existe uma jovem transexual que desaparece. A mãe a procura, e existe uma ideia de abdução. O afrofuturismo se coloca na projeção de um futuro que pode ser pior ou melhor do que o presente. Este segmento tende a crescer muito, e ele é muito bem-vindo, enquanto também ocupa um espaço forte dentro da literatura brasileira. Espero que estas produções cresçam cada vez mais na próxima década.
Otávio Lima: O Fabrício tem bastante bagagem teórica, seria bom se ele definisse o conceito de afrofuturismo.
Fabrício Basílio: O gênero ganha forma nos Estados Unidos a partir da década de 1990. Tem um filme do John Akomfrah, chamado O Último Anjo da História (1995), espécie de ficção científica que discute os principais autores do afrofuturismo, relacionados à música americana, literatura etc. O afrofuturismo parte da ideia de que os povos negros foram abduzidos de seus espaços na África e trazidos para espaços na América, onde foram escravizados e expatriados de sua língua e cultura. O afrofuturismo é um movimento diaspórico, iniciado por negros nas Américas construindo narrativas que pensam o passado e o presente para articular um futuro melhor. É uma produção capaz de pensar o futuro a partir da “criatura especulativa”, da fantasia, do fantástico e da ficção científica, elaborados por pessoas negras em referência à história e cultura negras. Para o Brasil, Quintal (2015), de André Novais Oliveira, seria um filme afrofuturista.
De que maneira vocês pensaram a diversidade na seleção, tanto entre horror e ficção científica quanto entre gêneros, etnias e regiões do Brasil?
Pedro Alves: Este foi um consenso entre nós três, que sempre quisemos dar representatividade a todas essas vertentes do fantástico, e também de localização dos curtas, de realizadores homens e mulheres etc. A seleção oferece um panorama bem diversificado em termo de apropriações do fantástico. Temos filmes de terror infantojuvenis, ficções científicas focadas na tecnologia e assim por diante. Tentamos estabelecer a maior diversidade possível de criações e criadores.
Otávio Lima: É difícil prever o que vai chegar para a gente. A inscrição estava aberta a todo o território nacional, num período curto e sem mídia prévia. Felizmente, não recebemos somente filmes de pessoas já bem estabelecidas, com obras restritas ao eixo Rio-São Paulo. Não faço aqui um juízo de valor, apenas digo que existem muitas formas de produção, no Brasil todo. Mas recebemos produções do país inteiro, bastante diversas e de ótima qualidade. O processo de escolha foi difícil pela quantidade de filmes inscritos para um prazo curto de análise. Dentro dos inscritos, a gente tinha filmes bons de todos os tipos, o que mostra a força da produção fantástica brasileira fora do eixo Rio-São Paulo. O princípio da diversidade nunca provocou uma restrição da qualidade: enquanto curadores, ficamos felizes de receber filmes diversos e de alta qualidade, de todas as localizações do Brasil. Descobrimos boas obras de Manaus e de Brasília, por exemplo.
Qual é a ambição principal de comunicação a partir deste projeto?
Otávio Lima: Acima de tudo, queremos mostrar que este cinema existe, e que é muito importante. Para mim, esta é uma tendência há pelo menos duas décadas. Novos realizadores independentes fazendo curtas-metragens com esta temática criaram uma tendência. Obviamente, falamos tanto de distopia porque ela existe em oposição à utopia, o mundo ideal. São filmes que falam de totalitarismo, autoritarismo, mundos cerceados. Estamos vivendo a distopia. Naturalmente, surge um cinema para representar a sociedade que vivemos. Este cinema acaba passando pelo fantástico. Esse gênero existe no cinema brasileiro há muito tempo, porém se consolida e se torna mais forte agora.
Fabrício Basílio: O festival é mais uma voz de difusão do cinema fantástico brasileiro, que ganhou muito fôlego na última década. Talvez ele ainda não tenha conquistado tanto respaldo de público, mas sim um respaldo crítico e dentro do meio audiovisual. Estamos ressaltando esta produção em voga, colocando vertentes do cinema fantástico – não por acaso, os maiores festivais de cinema fantástico no Brasil despontam na última década. Também quisemos trazer filmes que não circulam tanto em outros festivais do gênero já disponíveis.
Pedro Alves: Espero que a gente consiga unir todos os cinéfilos que gostam de partes do cinema fantástico – aquele que gosta só de terror, o que gosta só de ficção científica -, dentro desta grande mostra onde tantas leituras do fantástico fogem aos rótulos e ao senso comum. Nesta seleção, conseguimos apresentar várias vertentes, propícias ao debate.
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