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Festival do Rio 2019 :: “O crowdfunding nos deu um gás extra para poder continuar”, diz Ilda Santiago

Publicado por
Francisco Russo

O Festival do Rio quase não aconteceu. Quem acompanha a trajetória do evento já ouviu esta frase algumas vezes, mas nunca a crise foi tão séria quanto a enfrentada em 2019. Em meio ao estrangulamento à cultura promovido pelas três instâncias de Governo, os investimentos no setor despencaram ao ponto dos organizadores quase jogarem a toalha. O que salvou o Festival do Rio 2019 foi seu público, formado por cinéfilos e profissionais do meio, que apostou na força do crowdfunding para seguir em frente. Deu certo.

À frente de tal empreitada sempre esteve Ilda Santiago, diretora-geral do Festival do Rio desde sua primeira edição, em 1999. Nesta entrevista exclusiva concedida ao Papo de Cinema ela fala sobre as dificuldades enfrentadas, o que foi feito para que a edição 2019 acontecesse e ainda confirma o contato para a exibição de Marighella (2019), inviabilizada devido ao adiamento de sua estreia em circuito comercial. Confira!

 

Muito se tem falado sobre os problemas do Festival do Rio neste ano, mas é preciso também lembrar que o festival está completando 20 anos em 2019. Como você analisa esta trajetória e as mudanças ocorridas ao longo deste percurso?
Antes de tudo, completa-se 20 anos em um momento de crise, que não é apenas do audiovisual. É um momento de repensar tudo que a gente está fazendo, inclusive na cidade e no estado do Rio de Janeiro. O bom também é que a crise, ao menos para mim, tenha me feito parar para pensar em qual é a importância do festival, para o público e os profissionais. Quando você faz um festival todos os anos, não se pensa muito sobre sua importância e sim em fazer. Até hoje o importante é que, após se viabilizar, o festival seja colocado de pé e entregar à cidade algo que todos queiram.

Há um entendimento que, durante estes 20 anos, a gente teve muitas sortes. A gente teve a sorte de serem os 20 anos que fizeram de fato o cinema brasileiro crescer, isso é inegável. O cinema brasileiro mudou muito neste período, se tornou um setor com solidez, e por outro lado a própria indústria como um todo mudou. O festival viveu a transformação digital, as mudanças de gosto do público, as modificações do mercado, 3D, que fazem com que hoje o consumo do cinema e do próprio festival tenham um patamar diferente.

 

Este legado junto ao público, especialmente, se materializou muito neste apoio que o Festival do Rio recebeu na campanha de crowdfunding. Como nasceu esta ideia e como vocês receberam este retorno, com mais de R$ 600 mil arrecadados?
Há 20 anos o Festival do Rio teve uma estrutura de financiamento e de recursos, muito variável mas ao mesmo tempo com seus patrocinadores e apoiadores muito regulares. Começamos a pensar no que poderia ser o festival deste ano em um cenário muito mais difícil de aporte junto às empresas, especialmente as que regularmente entravam no festival. Tínhamos definido um prazo limite sobre o que fazer caso o festival não fosse viável, do ponto de vista econômico. Seria no final de maio, passou para o final de julho… a gente demorou um tempo para chegar nesta conclusão porque tentamos até o final garantir que o festival existisse pelo formato regular de levantamento de recursos.

Quando a gente se deu conta que isto não iria acontecer, o movimento foi de comunicar ao público. Quando divulgamos aquela nota não era uma jogada de marketing nem nada, era quase que jogar a toalha mesmo, avisar que não iria acontecer porque não existiam condições. O que veio a partir daí absolutamente surpreendente! Óbvio que a gente sabia que haveria mobilização, mas foi muito mais que imaginávamos. As ofertas eram tão grandes… Ali a gente se deu conta que a única forma que tínhamos era congregar esta força através de um crowdfunding. Foi uma prova para nós, pois foi o momento de recebermos não só do público mas também de empresas e todo tipo de instituição, muita gente que já era amigo do festival, diretores, artistas… Foi este crowdfunding que nos deu um gás extra para poder continuar, inclusive procurando os demais apoios necessários. Foi ele que criou o canal de mobilização e de solidariedade junto ao Festival do Rio.

O Festival do Rio no Odeon, mais uma vez sede do evento

Por mais que o valor arrecadado tenha sido bastante significativo, esta quantia não é suficiente para fazer o Festival do Rio acontecer, mesmo em uma versão reduzida, como é a deste ano. Qual é o custo total deste Festival do Rio e que outros aportes foram conseguidos até agora?
Tivemos momentos maravilhosos, com orçamentos altos, nos quais pudemos trazer muita gente famosa e diretores vindos de fora. Nos últimos quatro anos a gente já vinha reestruturando o festival, fazendo cortes, inclusive quando reduzimos o número de dias, para o que era possível gastar. Ano passado tínhamos o orçamento mínimo de R$ 4 milhões, para colocar o Festival do Rio de pé, minimamente funcionando. Hoje, o que posso dizer é que não temos qualquer patrocinador master mas a grade de apoios do festival é enorme, a partir de contribuições muito menores que as do master mas que, para nós, passaram a ser as grandes contribuições. Isso fez uma grande diferença.

Estamos trabalhando com um festival que a gente sabe o quanto ele pode custar, mas ainda recebendo contatos de produtoras e instituições dispostas a participar. Estamos lutando para chegar ao valor do festival do ano passado. A ideia era não mexer na Première Brasil e, se tivéssemos que cortar, mexer no que acaba sendo mais caro, que é o entorno: convidados, passagens, hotel…

 

Desde a posse do Marcelo Crivella, a Prefeitura retirou o apoio ao Festival do Rio e, neste ano, houve uma série de cortes em relação à cultura, em especial no âmbito federal. Que tipo de apoio do poder público foi possível conseguir para o Festival do Rio?
Todos os governos estarão na abertura do festival porque todos permitiram que fizéssemos algum levantamento através de leis de incentivo. Claramente não conseguimos, a partir destas leis, levantar todos os recursos necessários. Do ponto de vista da Prefeitura, não existiu um aporte direto, apenas o acesso às leis de incentivo.

“A Febre”, vencedor do Festival de Brasília, está entre os selecionados da Première Brasil

A joia da coroa do Festival do Rio sempre foi a Première Brasil e foi até uma surpresa a notícia de que ela viria completa, com 90 filmes. A expectativa era que viesse bem mais enxuta. Como foi o contato com os realizadores em relação à exibição dos filmes, já que vários deles perderam o ineditismo por terem sido exibidos em outros festivais, em virtude do adiamento do Festival do Rio?
O Festival do Rio tem um relacionamento muito próximo, de família mesmo, com os produtores e realizadores. Muitos deles nos procuraram dizendo que, se o Festival do Rio acontecesse, para eles era muito importante estar presente e queriam saber se haveria problema em exibir seus filmes em outros eventos. Sempre disse que não, primeiro porque seria injusto, em virtude da incerteza da realização do Festival do Rio, e, especialmente hoje, os filmes precisam ser vistos. A gente está em um país de proporções enormes, não faz o menor sentido que um filme seja penalizado por ter passado em um festival e não em outro. São cidades diferentes e o nível de exposição que hoje o cinema brasileiro precisa é muito grande! A gente nunca teve por regra ter todos os filmes inéditos no Festival do Rio, nem os brasileiros nem os estrangeiros. Claro que sempre buscamos ter alguns filmes que sejam zero quilômetro, totalmente inédito.

Com isso, reduzimos a parte estrangeira, temos cerca de 60 filmes a menos que no ano passado, quando já tínhamos reduzido cerca de 50 filmes. São 110 filmes, muito bem pensados de forma a manter a sintonia com o público mais diverso. A Première Brasil foi mantida completa, com 65 longas e 90 filmes no total, com uma janela absolutamente diversa e plural sobre o que é o cinema brasileiro. Na Première Brasil tem desde filmes com perspectiva de grande público até outros de diretores começando, com novas linguagens.

Seu Jorge e Adriana Esteves no ainda inédito no Brasil “Marighella”

Após a confirmação do Festival do Rio, houve muita expectativa de que Marighella (2019) fosse exibido, talvez até como filme de abertura, o que não aconteceu. Houve algum contato para que o filme fosse exibido no festival?
Quando o Festival do Rio estava em novembro, Marighella tinha uma data de lançamento em 22 do mesmo mês e era exatamente depois do festival. Naquele momento se considerou sim, conversamos com os produtores sobre isso, mas a estreia foi adiada. Quando ele perdeu esta data, houve então o entendimento em esperar para ver como seria o lançamento do filme.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista e crítico de cinema. Fundador e editor-chefe do AdoroCinema por 19 anos, integrante da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro), autor de textos nos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros", "Documentário Brasileiro - 100 Filmes Essenciais", "Animação Brasileira - 100 Filmes Essenciais" e "Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais". Situado em Lisboa, é editor em Portugal do Papo de Cinema.

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