Entre 16 e 20 de agosto de 2021, o Festival Goiamum Audiovisual organiza sua 10ª edição em formato online e gratuito, com exibições de 40 filmes através das plataformas Embaúba Play e Spcine Play, além de debates no canal do evento no YouTube. O foco do Goiamum se encontra na produção potiguar, destacando tanto os filmes recentes quanto a produção mais premiada do Rio Grande do Norte na última década, presente na Mostra Especial Curta Goiamum.
O Papo de Cinema conversou com a diretora do evento e curadora Keila Sena para descobrir as dificuldades e vantagens do formato online, assim como a evolução da cinematografia do Estado nos últimos anos. As nossas críticas e notícias sobre o festival estão compiladas na matéria especial sobre o Goiamum 2021:
Como percebe a evolução do cinema potiguar desde a primeira edição?
O Goiamum surgiu em 2007. O Rio Grande do Norte não tem uma tradição perene de cinema, e sim uma produção interrompida: teve um movimento nos anos 1960, depois nos anos 1990. Por volta de 2006, vários grupos trabalhavam o audiovisual. Eu integrava a ONG Zoom, dedicada à formação por meio de cursos livres. Na época, não tinha curso de graduação aqui no Estado, apenas Rádio e TV ou Jornalismo com matérias de cinema. Foram se desenvolvendo os cineclubes, a ABD (Associação Brasileira de Documentaristas), o ITEC. A gente acabou chamando a atenção do poder público. Um gestor da cultura nos pediu para reunir todo mundo e fazer um festival, porque ele bancaria. Fiquei super feliz com a oportunidade, e surgimos como primeiro festival de cinema neste perfil, tendo tanto exibições quanto atividades de formação, palestras, encontros, oficinas e debates sobre políticas públicas. As artes plásticas, a dança, o teatro e a música sempre foram mais fortes aqui no Estado, mas o cinema não recebia tanto apoio.
Quando surgiu o festival, a gente ainda não tinha um filme local com uma estética própria, e com técnicos locais ocupando as funções técnicas. Quando a gente começou, havia muitos documentários acadêmicos, bem jornalísticos e tradicionais. Desde então, evoluímos bastante. A Mostra Curta Goiamum já traz esta evolução, por ser a única competitiva do festival. Fizemos um apanhado com os filmes premiados, e percebemos o desenvolvimento dos trabalhos. Falando de forma honesta, mas modesta, o festival caminhou junto com o cinema potiguar. Este sempre foi o nosso foco: o realizador potiguar, e a contribuição à cena local. Já perdemos muitos patrocínios por não trazermos alguma grande estrela midiática. Sofremos bastante pressão por isso. Essa opção tornaria o festival mais popular, mas os recursos sempre foram escassos, e privilegiamos fazer três oficinas com o cachê que a gente gastaria para trazer uma única estrela para cá. Os recursos sempre foram investidos nos nossos realizadores, que são as nossas verdadeiras estrelas. As pessoas do meio compreendem que sempre trouxemos pessoas importantes, embora sejam desconhecidas pela grande imprensa. Não sou contra trazer estrelas, mas diante dos cachês exigidos, precisamos ter prioridades.
As políticas públicas evoluíram no Rio Grande do Norte? Conseguiram formar novos profissionais dentro das oficinas do Goiamum?
A gente escuta depoimentos de pessoas que dizem que sua formação foi no Goiamum. Isso é emocionante. Nós temos cursos de cinema há apenas sete anos aqui na cidade. O primeiro curso de graduação se inseriu numa faculdade particular e perdeu força, mas a universidade federal trouxe um curso mais estabelecido. Depois das nossas oficinas, as pessoas seguiram os seus caminhos, claro. Hoje se faz na região um cinema de qualidade. No passado, o Rio Grande do Norte se sentia o patinho feio: nas notícias e festivais, nunca tinha um filme local, enquanto a Paraíba, logo ao lado, bombava. Eles foram generosos com a gente, fizeram alianças preciosas.
Agora, nossos filmes estão em todos os lugares, inclusive em Cannes este ano. Olha onde o Rio Grande do Norte chegou! Nossos filmes circulam muito, e ganham diversos prêmios. Dentro do mercado, temos projetos em desenvolvimento, e comercializados com players em rodadas de negócios. Algumas produtoras locais já são experientes dentro do mercado nacional. Já faz um tempo que existe um edital loca, mas ele ainda precisa ser melhorado. O investimento em editais públicos para o audiovisual aqui no Estado é modesto. Entendemos que fazer filme é caro. O curta-metragem se vira e consegue se viabilizar na guerrilha, através de esforços coletivos. Mas ainda precisamos de um olhar mais generoso para o longa-metragem, que mexe com a cadeia produtiva como um todo. Alguns artistas tentam desenvolver uma Lei do Audiovisual aqui, para dar um novo passo.
A cena está bem estabelecida para o curta-metragem potiguar, mas ainda falta chegar ao longa. Escuto falar de produtores desenvolvendo projetos, mas não temos uma produção constante, como é o caso do curta. A Mostra Panorama do Audiovisual Potiguar, que faz um recorte entre 2018 e 2021, traz 80 curtas produzidos que circularam. Isso seria inconcebível nos anos anteriores, e olha que esse período inclui a pandemia. Também temos webséries, como o Septo, com três temporadas. O longa-metragem será o próximo passo, porque ele precisa de políticas públicas. É difícil viabilizar apenas com a iniciativa privada, sem incentivos. Uma lei garantiria recursos não só para os filmes, mas para os festivais também.
Na curadoria de 2021, perceberam temas recorrentes?
A seleção está bastante plural. Até pensamos em fazer programas separados para documentário e ficção, por exemplo, mas preferimos a pluralidade, para dar um panorama mais completo da produção. Pensando não especificamente no Goiamum, mas no Estado, percebemos a tendência da produção contemporânea a explorar o filme de gênero. Temos ficções de gênero muito fortes e boas, o que surgiu de um processo natural, prestes a se consolidar. Além disso, nossos filmes LGBTQIA+ são ótimos e circulam bastante. De uns cinco anos para cá, percebemos uma produção forte neste sentido. Na mostra em si, preferimos um recorte misto.
Como definiram a homenagem ao Geraldo Cavalcanti?
Esta homenagem foi emocionante. A conversa deveria durar uma hora, mas ficamos mais de duas horas conversando, e incluindo o público. O Geraldo é educador, e tinha o projeto Nós na Tela, além do Cinema Processo, com o Buca Dantas. O Geraldo é o responsável pela interiorização do cinema no Rio Grande do Norte. O formato de projetos onde se ministra oficinas de produção, roteiro e direção com jovens da região, e no final todo mundo termina fazendo um curta, foi estimulado por ele. Essas iniciativas acabam atingindo pessoas sem qualquer acesso ao cinema, que só veem filmes na televisão. Ele realizou este projeto em 29 cidades do Estado, com o que tinha na mão: com ou sem dinheiro, com câmera boa ou não. O Geraldo nunca deixou de fazer o trabalho por questões técnicas. Às vezes ele viajava e se hospedava na varanda de alguém, de modo mambembe, na guerrilha.
O Cinema Processo já tinha uma ambição mais autoral. Além disso, ele montou uma escola de Cinema do Sertão no Ceará, e criou um festival da diversidade no Quixadá. Ele já chegou polemizando na cidade, e as pessoas têm muito carinho pelas sementes plantadas ali. Quixadá recebe muitas produções cinematográficas, por ser um lugar belíssimo. É onde os Trapalhões filmaram, por exemplo. Antes, a gente apenas via as equipes grandes filmando na região, mas depois que o Geraldo chegou, passamos a fazer nossos próprios filmes. Ele foi muito generoso ao compartilhar seus conhecimentos e dividir a cultura. Geraldo foi um dos idealizadores do Goiamum, enquanto representante dos diretores independentes. Na primeira edição, trouxemos o Frank Padrón, crítico de cinema cubano, por causa das afinidades dele com Cuba. Essa homenagem era o mínimo que a gente poderia fazer, até para apresentar o Geraldo à moçada que ainda não conhece o trabalho dele. É importante revisitar essa história.
Qual é a experiência de realizar um festival voltado ao público local em formato online?
É muito difícil! A gente fica sem fronteiras. Eu queria estar presente, testando a tela, o som, montando o evento presencial. Agora a montagem se encontra apenas no envio de links à Embaúba. Produzir um evento digital é algo doido, porque o festival de cinema significa o encontro dos artistas com o público, as trocas de ideia e de contatos que acaba dando origem a novos projetos. É um espaço de calor, algo vibrante. Eu sofri um pouco com a solidão do processo, mesmo que todo mundo estivesse falando virtualmente. Para mim, que trabalho com eventos desde 1996, chegar em 2021 e estar sozinha na minha casa é difícil.
O lado bom disso é que ficamos num lugar sem fronteiras. Chegamos ao público no mundo inteiro, e isso é bastante positivo. Depois que a pandemia acabar, não vai dar para ignorar o potencial do online. Por exemplo, eu tenho nessa edição uma convidada que vai ministrar uma oficina lá do Chile para o pessoal de Natal. Às vezes, quando não se tem recursos, essas ferramentas ajudam muito. Com um orçamento restrito, podemos ver quem trazemos presencialmente, e quem pode contribuir à distância. É ótimo o público do Brasil inteiro poder descobrir o cinema potiguar. Agora eu estou bem feliz com este formato, que contribui em termos de visibilidade. Acho que vou manter o formato híbrido nas próximas edições para abranger o público e trazer mais pessoas, eventualmente convidando pessoas distantes.