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Em 2021, o Festival Varilux de Cinema Francês apresenta sua 12ª edição de modo presencial, chegando a 50 cidades brasileiras com sessões até o dia 8 de dezembro. Os diretores e curadores, Emmanuelle Boudier e Christian Boudier, selecionaram 17 longas-metragens recentes da produção francesa, incluindo destaques do Festival de Cannes 2021, como Titane (vencedor da Palma de Ouro), Estamos Vivos, Tralala, Está Tudo Bem e Paris, 13º Distrito. Além disso, dois clássicos estarão disponíveis nas telas do cinema: O Magnífico, com Jean-Paul Belmondo, e As Coisas da Vida, com Romy Schneider.
O Papo de Cinema está acompanhando toda a programação, publicando críticas e entrevistas em nossa matéria especial dedicada ao evento. Nós conversamos com Emmanuelle Boudier sobre os filmes deste ano, a importância das premiações, os desafios de organização e do retorno às salas de cinema:

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Emmanuelle Boudier, codiretora e curadora do Festival Varilux de Cinema Francês

Quantos filmes viram para determinar a seleção este ano, e como guiaram as escolhas de curadoria?
Sempre assistimos a muitos filmes, não só visando a seleção, mas também pelo prazer de descobrir as produções francesas do ano. Não é porque assistimos a tantos filmes que a escolha se torna mais difícil – já estamos acostumados a assistir ao máximo possível. Acho que assistimos a cerca de 60 longas-metragens. Por incrível que pareça, muitos projetos foram filmados na França durante a pandemia. Entre cada confinamento, as filmagens aconteciam. Além disso, havia as produções do ano anterior, que ainda não tinham estreado, por isso, o leque de filmes para escolher era impressionante. Os critérios são sempre os mesmos. Fazemos questão de mostrar a diversidade da nossa cinematografia em termos de gênero: sempre temos um filme noir, um suspense, uma comédia, um filme de aventura, um documentário, uma animação (que é um gênero muito criativo na França). Queremos apresentar a diversidade, enquanto misturamos diretores consagrados e diretores novos. Este ano exibimos Um Conto de Amor e Desejo, da Leyla Bouzid. Ela é uma jovem diretora, e achamos o filme muito sensível e delicado. Ele discute a intimidade com um pano de fundo da realidade social francesa, e da coexistência entre as culturas francesa e árabe. Temos o filme da Ève Deboise, Pequena Lição de Amor, outra nova cineasta. Além disso, temos os consagrados: Jacques Audiard, François Ozon, Emmanuelle Bercot, que são muito conhecidos pelos espectadores do festival.

Pela experiência ao longo dos anos com o Varilux, diria que os espectadores se pautam mais pelos grandes diretores, ou pelas estrelas mais conhecidas da cinematografia francesa?
Fica misturado. É verdade que, quando trazemos um filme com diretor conhecido e ator conhecido, este título tem mais entradas. Isso é normal. Mas tivemos muitas exceções. Eu me lembro de um filme que trouxemos, com uma dupla de diretores pouco conhecidos: era Perdidos em Paris (2016). Os atores eram desconhecidos, e ele fez um grande sucesso. O boca a boca funcionou muito bem, e as pessoas adoraram. Além disso, ele se passa em Paris, e o público gosta de histórias na capital! Esse também foi o caso de Edifício Gagarine (2020), no ano passado. O boca a boca sustentou este belo filme de diretores totalmente novos, com atores desconhecidos. Sempre temos exceções, e por isso é tão importante apostar na diversidade.

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Um Conto de Amor e Desejo

Tem filmes que destacaria na seleção deste ano?
Não faço uma distinção no sentido que acredito que todos os filmes mereçam ser assistidos. Mas é claro que alguns filmes foram mais premiados, e são mais extraordinários do que outros. É o caso de Adeus, Idiotas, do Albert Dupontel. Ele recebeu sete prêmios César, merecidos. Para quem gosta do universo do Dupontel, é um filme muito bom – sensível, íntimo, com ação e uma linguagem cinematográfica divertida e particular. Não sei como o Dupontel consegue essa mistura: você ri sem parar, mas é um filme totalmente dramático. Eu diria mesmo que é uma tragédia. Penso também no Ilusões Perdidas, inspirado em Honoré de Balzac. Ele escreveu uma trilogia, e “Illusions Perdues” faz parte da trilogia. É um filme de época, mas ao mesmo tempo, super atual. Ele discute o poder da imprensa, das fake news. O diretor Xavier Giannoli conseguiu representar a arte e a literatura de Balzac, com uma voz off muito respeitosa a Balzac. Ao mesmo tempo, ele tornou o filme atual pelo jeito como dirige os atores. É muito fácil se identificar com Lucien de Rubempré, que poderia ser um jovem como qualquer garoto atual. No entanto, a história se passa há muitos anos. Já Um Conto de Amor e Desejo aborda um tema comum: a descoberta de sexualidade na adolescência. Mas nunca vi um filme que aborda esta questão desta maneira, com profundo respeito pela adolescência. Inclusive, conversei com minha filha, que tem 20 anos. Ela disse que se sentiu respeitada vendo o filme, que não faz uma caricatura dos adolescentes, e é muito profundo.

Qual é a importância dos prêmios César na França? 
Normalmente, existem dois grandes critérios para chamar a atenção do espectador francês: a seleção no festival de Cannes e algum prêmio César. Para diretores e atores premiados, este é uma distinção importante, sem dúvida. Talvez o César tenha perdido um pouco do seu glamour por causa de várias polêmicas recentes, mas não vou entrar em detalhes. De qualquer modo, esta recompensa continua sendo de grande importância no reconhecimento dos filmes. Nós nunca vamos selecionar um filme apenas porque foi selecionado no César. Selecionamos Adeus, Idiotas porque gostamos demais do filme. Por acaso, ele tem sete prêmios César. Dupontel consegue fazer algo único. Algumas pessoas ficam perturbadas com o conteúdo dos filmes dele, sem saber se deveriam rir ou chorar, e rejeitam o resultado porque gostam de direcionamentos mais seguros. Acontece.

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Adeus, Idiotas

Como escolheram o filme da homenagem a Jean-Paul Belmondo, e o que o ator representa na cinematografia francesa?
A gente escolheu O Magnífico (1973) porque é o filme que representa a quintessência do Belmondo. É onde ele mostra todos os seus aspectos. Nesse filme, ele interpreta o escritor, e também o personagem criado por ele. É um personagem da ficção e da realidade. Esta dupla face do Belmondo é bem inteligente e bem-sucedida. Poderíamos escolhido O Homem do Rio (1964), mas já trouxemos o filme ao festival alguns anos atrás. Também fizemos uma homenagem a Acossado (1960) no ano passado. Já apresentamos vários filmes estrelados por ele no festival, e agora O Magnífico nos pareceu o resumo do ator Jean-Paul Belmondo. Eu cresci assistindo a ele. Ele parece um irmão, um tio, alguém que acompanhou os espectadores da minha geração durante toda a vida. Ele faz parte do nosso patrimônio cultural. Ele é o francês insolente, rabugento, mas ao mesmo tempo engraçado e malandro. Belmondo simboliza o “francês médio”, sem qualidades excepcionais, mas que aprende a se virar. Ele é o rei da malandragem: ele poderia ser brasileiro, inclusive! O Magnífico é uma paródia dos filmes de James Bond, mas foi feito antes. Fico até pensando se ele não teria inspirado o James Bond de verdade! Seria o caso raro em que a paródia veio antes do original.

Como se adaptaram para uma edição presencial? Cogitaram o formato híbrido?
Demoramos bastante para tomar essa decisão. Nós queríamos ter certeza de que a vacinação estaria em fase avançada. Por isso, empurramos a data da edição até o mais tarde possível, já próximo do Natal, para dar o tempo de as pessoas serem vacinadas, em sua grande maioria, nas cidades onde o festival até presente. Outra consideração foi o fato que queremos ajudar os cinemas. Nós militamos para que as salas de cinema fiquem abertas. Muitas delas desapareceram durante a pandemia, e não sabemos se vão conseguir voltar. Era importante falar às pessoas: não se deixe tomar pela cultura do sofá. As pessoas começaram a se acostumar a ficar em casa. No começo, reclamaram, mas depois começaram a pedir comida por aplicativo, assistir a séries em streaming, e pronto. Não sei se as pessoas sentem falta de voltar à vida, a socializar, e frequentar as salas de cinema. Acredito que som.
Nós queremos fazer parte dessa retomada e incentivar as pessoas a redescobrirem o prazer das salas de cinema – o prazer de rir juntos, de chorar juntos, de se reencontrar. Eu compreendo que não seja fácil: mesmo que a vacina tenha facilitado bastante a situação, e que os cinemas adotem medidas sanitárias, vamos precisar mudar novamente de comportamento. Isso não vai ocorrer de um dia para o outro, mas vale a pena voltar ao cinema. Queremos que tudo volte ao normal – o que chamamos de normal, ou seja, sair de casa e compartilhar experiências. Inclusive, no Rio de Janeiro, conservamos a estrutura que montamos para o festival Ópera na Tela, no Parque Lage, para oferecer o festival ao ar livre. Até o dia 8 de dezembro temos no parque um telão, com espreguiçadeiras e o clima de verão, perto da floresta e do palacete. Para quem tem receio de voltar à sala escura, pode ser uma boa transição. Ficar ao ar livre pode ajudar.

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Titane

Inclusive, muitos filmes só têm uma experiência completa de som e imagem nos cinemas.
Concordo. Para mim, qualquer filme merece ser visto no telão. Isso vale para qualquer tipo de filme. Mas alguns em particular crescem ainda mais no cinema, como Titane. Infelizmente, ele passa apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro. O filme vai diretamente para uma plataforma de streaming, não passou pelo circuito comercial, mas conseguimos resgatar três sessões, o que foi precioso. Se quiserem ver Titane no cinema, tem que ser agora, senão depois não vai ter mais chances. E um filme desses tem que ser visto no telão! Penso em Ilusões Perdidas, e nas imagens maravilhosas, coloridas e pintadas da animação A Travessia. Estes filmes merecem ser vistos no telão. Todos merecem, na verdade!

Qual é a importância de levar estes filmes para além do eixo Rio-São Paulo?
Esse ano, chegamos a 50 cidades, e 95 cinemas. Isso é menos do que já conseguimos fazer antes: em 2019, chegamos a 86 cidades, e mais de 120 cinemas. Esse ano foi complicado, por causa da pandemia. Mas esse é o nosso grande diferencial: chegar a cidades menores, onde as pessoas não têm oportunidade de assistir a filmes franceses. Quando algum grande filme francês estreia no circuito comercial, no melhor dos casos ele chega a umas 20 cidades – as grandes metrópoles. Essas cidades onde o festival chega, nenhum lançamento francês em circuito alcança. Para nós, é importante oferecer a todos os brasileiros uma cinematografia diferente da cinematografia norte-americana – que eu respeito muito, é claro. Mas ele pode ter acesso a outras culturas também. Brasil e França têm uma relação muito forte de amizade histórica. Acredito que os brasileiros curtem bastante os filmes franceses: eles ecoam em muitos brasileiros. Por isso, a capilaridade é fundamental.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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