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O documentário que parte da vivência/conjuntura/reflexão familiar para lançar luz sobre determinados períodos da História não é necessariamente uma novidade. Mas, isso não quer dizer que essa abordagem esteja fadada ao “mais do mesmo”. Prova disso é justamente Fico Te Devendo uma Carta sobre o Brasil (2020), longa-metragem em que a cineasta Carol Benjamin medita sobre a perseguição sofrida pelo pai e por seu tio durante a ditadura que governou o Brasil por 21 anos, mas, principalmente, a respeito da força enorme da avó que lutou contra tudo e todos para proteger os filhos, mas não apenas eles. Tendo seu núcleo familiar como ponto de partida e objeto, ela revela questões que dizem respeito a um período histórico repleto de torturas, mortes e desaparecimentos, no qual o obscurantismo chegou ao poder, fardado e com dividas no uniforme. Conversamos por telefone com Carol Benjamin para saber um pouco mais sobre Fico Te Devendo uma Carta sobre o Brasil, que chegou nesta quinta-feira, 05, aos cinemas pela Bretz Filmes, isso após ter feito sua première na mostra competitiva do É Tudo Verdade 2020.

 

Quais são as dores e as delícias de se fazer um filme que parte de questões tão íntimas?
Rapaz, tem muito mais dor do que delícia (risos). A meu ver, um filme pessoal é aquele que somente pode ser feito assim, porque se tivesse outra forma de ser, ninguém o faria tão pessoal (risos). É realmente muito difícil que esse tipo de produção não acarrete uma transformação do diretor, por conta da jornada implicada. Realmente, você se modifica ao longo de tudo. Depois, com o filme pronto, vêm outras camadas de exposição. Sempre utilizo a metáfora da família como um jogo de xadrez. Se uma peça for reposicionada, todo o entorno se reposiciona também. Então, se eu, como realizadora, experimento mudanças, certamente isso gera uma reorganização no que está ao meu redor.

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O que mais te marcou, durante o processo, quanto ao conhecimento adquirido sobre sua avó? O quanto ela se distanciou do imaginário que você tinha até o começo do filme?
Foi verdadeiramente uma redescoberta. Encontrei outra avó. Em determinado momento do filme eu digo isso, é como seu tivesse conhecendo-a do avesso. Tem a constelação familiar vinda da investigação. Mas, certamente, a descoberta radical foi a relativa ao meu avô. Sabia pouco dele, apenas que era pernambucano, ex-coronel do exército e que enfrentou o problema do alcoolismo no fim da vida. Confesso que ainda estou elaborando as coisas desse processo profundo que engatilhou novas descobertas familiares. Tão logo o filme tenha sido exibido, fui procurada por amigos e familiares que trouxeram novas peças. Então, essa relação do longa com a vida vem se prolongando.

 

Como foi o processo de organização do material de arquivo que você foi garimpando?
Esse é um filme de premissa. Sempre pensei que não tinha como entregar o material a alguém, porque o cerne não está no material. Foi uma experiencial nova para mim. O documentário partiu de uma ideia, de um sentimento, de coisas que buscamos no material, este que era escasso, é bom dizer. Em princípio, há dois protagonistas ausentes: meu pai, que não queria falar, e minha avó, que já tinha morrido. Partimos de rastros e vestígios. Sempre lidamos com a falta, nunca com o excesso, a despeito da vastíssima pesquisa. Era uma loucura, pois trabalhamos e retrabalhamos o material na montagem, em dois momentos distintos, com duas profissionais diferentes. Se trata de um dominó. Qualquer peça fora do lugar dava um significado novo. Existiam vários filmes ali dentro possíveis.

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E com vários atravessamentos…
O primeiro atravessamento, o do âmbito familiar, foi a negativa do meu pai, algo inesperado. Tive de parar e me questionar como seguiria. A pergunta “porque meu pai não fala?” me perseguia. Entendi que isso precisava ser central. O silêncio o trouxe ao protagonismo. Depois, vivi outro atravessamento, o da esfera política, quando percebi que o legado da ditadura estava sendo ressignificado. O contexto era diferente. Nunca tinha visto alguém defender a ditadura num ambiente midiático. Isso foi assustador. Até ali, o filme era uma carta a meu pai. A partir do novo agora, eu precisava entrar no filme como sujeito, pois também estava sendo afetada. Nesse ponto decidimos ir em busca dos discursos oficiais. Antes, usaria apenas recordações familiares, com fontes sendo os arquivos pessoais.

 

Tem uma questão formal que me interessa muito no teu filme. Você não se restringe a costurar, a ilustrar e a revelar, mas também evoca sensações, ressalta texturas…
Desde o inicio, sabia que enfrentaria um desafio quanto à construção de imagens, pois nem tudo estaria no material de arquivo. Comecei filmando meio de qualquer jeito, com o celular, e fiquei fixada nas frestas, nos buracos e muros descascados. Como tantos, esse filme é construído pela banda de áudio e depois existiu a composição imagética. Mais tarde, entendi que precisava filmar uma prisão. Encontrei uma abandonada que tinha uma cela parecida com aquela em que meu pai ficou. Aí, eu comecei a buscar o elemento para representar minha avó. Ela tinha uma ligação forte com o mar, andava na praia diariamente, sabia o quanto aquilo era importante à sua saúde mental. Reativei minha câmera super 8 nesse processo. Usei imagens da minha gravidez e do meu primeiro filho pequeno, estas que eu nunca tinha revelado. Comecei a filmar os arquivos físicos eu mesma. Algumas coisas funcionaram, outras não.

 

No fim tem aquilo de você “deixar” de ser neta e filha, passando a ser mãe. Te parecia essencial pensar a história pregressa, mas encerrar com uma postura do presente rumo ao futuro?
Me dei conta disso ao longo do processo. Até um corte avançado, o filme era estruturado de um jeito diferente. Num determinado momento, ficou  claro que eu estava me reportando aos meus filhos…Meu pai não queria falar. Não era por ele que eu estava fazendo aquilo. Quando compreendi isso, o final veio muito fácil…quer dizer, mais ou menos. Mas, entendi que eu não era mais essencialmente a filha, não estava esperando o retorno do meu pai. Estava me dirigindo aos meus filhos, inclusive porque há demanda deles por explicações, como as minhas da infância. Conheci a Marielle Franco na faculdade, no movimento estudantil, e foi difícil explicar a meus filhos o meu estado de desestabilização quando ela foi assassinada. Sou uma pessoa que gosta de elaborar. A carta que leio no filme, uma versão maior, claro, foi escrita no dia em que Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. Foi um vômito.

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Mesmo a despeito da natureza íntima da história que se está contando, para você era essencial injetar doses consideráveis de afetuosidade nesse resgate tão importante?
Olha, não sei. Tenho muito afeto, de fato, por essas pessoas e essa história. Não é uma busca, nem um esforço, é realmente o lugar de onde parto. Mas, claro, houve um cuidado com relação ao meu pai, pois me vi numa encruzilhada. Como documentarista, sei que não posso fazer um filme sobre algo que não me move. Se vou botar o dedo na ferida, ainda mais sendo ela tão profunda, preciso fazer isso de uma forma delicada e afetuosa, até porque minha busca tem alguma dimensão de cura, de cicatrização. Meu pai está vivo, lúcido e próximo. Não tenho nenhuma intenção de coloca-lo numa saia justa. A medida desse equilíbrio me perseguiu bastante. Mas, não foi algo difícil, foi simplesmente ter atenção. Tenho enorme empatia por meu pai, muita compaixão, desde criança, quando tentava ensaiar o que ele viveu. Eu ficava sozinha, imaginando, pensando, me projetando nele. Era um exercício bem comum, embora saiba que nunca vou chegar perto de saber, de fato, o que ele passou naqueles dias aprisionado.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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