A primeira vez em que conversei com Irandhir Santos foi em agosto de 2012. Na ocasião, ele havia recém sido premiado no Paulínia Film Festival por seu desempenho em Febre do Rato (2011), e estava participando do Festival de Gramado com outro filme de grande impacto: O Som ao Redor (2012) – que lhe rendeu uma das seis (até o momento) indicações que já recebeu ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. No entanto, já havia sido premiado no Festival de Brasília (Melhor Ator Coadjuvante por Baixio das Bestas, 2006), e no ano seguinte ganharia o kikito em Gramado por Tatuagem (2013). Recordista de indicações ao Prêmio Guarani da Crítica Brasileira – são oito até hoje, com quatro vitórias! – ele está de volta às telas agora, em mais um trabalho em parceria com Hilton Lacerda: Fim de Festa, que foi premiado como Melhor Filme no último Festival do Rio. Pra saber um pouco mais sobre esse projeto, conversamos com o ator, que comentou também o atual estado do cinema brasileiro. Confira!
Olá, Irandhir. Quem é o Breno? Qual foi sua primeira impressão sobre ele ao ler o roteiro?
O Breno foi um contraponto direto ao Clécio, por exemplo, o meu personagem em Tatuagem. Fui muito influenciado por ter feito esse outro filme com o Hilton. Quando li o roteiro, vi que era o oposto dele. Tatuagem primava pela exaltação, pela expressão. Aqui é outra pegada, o que dita o comportamento do Breno é a repressão. É um cara pesado, que está sempre com os músculos tensos. É totalmente o contrário do que havia vivido. Ele é o resquício do que um dia havia sido. Alguém que brincava de carnaval, que pregava o amor livre, mas que se tornou a figura que vemos no filme. Fizemos um trabalho muito interessante com a Nash Laila, que atuou também com preparadora do elenco, para poder compor esse passado dele, que volta e meia vem à tona. Na trajetória dele dentro do Fim de Festa, o Breno está conduzindo uma investigação policial que é quase uma autoanálise. Nos interrogatórios, está se perguntando, o tempo todo. No trabalho, com o filho, é quase um espelhamento, como se aquele garoto fosse ele no passado. Isso é como uma afronta para ele, se ver obrigado a ter que lidar com todas aquelas pessoas, com algo que está acontecendo dentro da casa dele. É um personagem muito complexo nesse sentido, pois ele está no presente, mais o tempo todo se vê tendo que lidar com o passado, ainda mais latente naqueles dias pós-carnaval.
Esse não é o seu primeiro filme com Hilton Lacerda. Como é essa parceria entre vocês dois?
Quando você me pergunta isso, vem à minha cabeça de imediato o Baixio das Bestas, que foi o primeiro filme que fizemos juntos e foi escrito pelo Hilton, e também o Febre do Rato, também escrito por ele, e que foi meu primeiro protagonista. Depois veio o Tatuagem, com toda aquela potência, e agora o Fim de Festa. Quando o Hilton me liga, pensando em mim, não tem como dizer não. É dele que vieram as melhores coisas que já fiz no cinema, da cabeça dele surgiram os melhores personagens. Quando me ligou para falar do Fim de Festa, fiquei muito empolgado e curioso. Queria saber por qual caminho iria agora. Me presenteou com um personagem que mostra a versatilidade dele como criador, dessa vez flertando com o gênero policial, que era algo inédito para mim. Um tipo quase clássico, que lida com sua solidão, um cara sensível e que vive num mundo violento. Um presente complexo e completo, como ele vem fazendo ao longo dos anos. Um convite dele é uma aceitação imediata.
Uma coisa interessante em Fim de Festa é a relação do Breno com o filho, Breninho, que por momento chega a ter uma tensão quase incestuosa. Como foi a sua abordagem?
Eu tive uma grande ajuda e parceria que foi o Gustavo Patriota, que interpreta o Breninho. É um grande ator que veio com 100% de entrega com o personagem. Brincamos, nos atrevemos, sempre no limiar na relação entre dois homens, duas gerações, pai e filho. Eu enxergava no Breninho o passado do meu personagem. Partia desse princípio, mas era sempre surpreendido. A atitude dele me fazia perguntar quem era o pai e quem era o filho. Era uma dança de cadeiras. Por ora, tava recebendo os cuidados, como se o Breninho fosse o pai. Quando percebemos, brincamos com isso. E foi lindo. O Hilton também teve muita sensibilidade, pois percebeu esse jogo que fizemos no ensaio, e levou para o filme. Na varanda, estamos sentados em uma poltrona de papai, que é um objeto tão icônico. Foi muito potente, e é uma das cenas que mais gosto de ver no filme. É muito interessante observar as reações das pessoas. Cada um enxerga de uma forma, e era isso que queríamos imprimir.
Fim de Festa tem duas camadas narrativas, certo? A trama policial e os relacionamentos entre os personagens. Em qual desses dois espectros você se sente mais confortável?
O diferente que habita entre essas duas esferas me levou a entender o personagem na sua composição. Quando tem relação com o filho, na casa, com os resquícios do carnaval, me conduzia a uma dramaticidade com a qual estava mais acostumado a realizar. No âmbito profissional, por outro lado, era tudo tão novo para mim, essa postura policial, investigatória… foi um desafio incrível acessar esse mundo. Mas, na minha cabeça, não conseguia dividir de forma tão fácil assim. Pra mim era tudo a mesma coisa, o trabalho era uma fuga para o stress que ele sentia quando estava em casa. Fugir do que estava encontrando no seu lar, daquelas lembranças de um carnaval que um dia havia vivido. Fui entender como esses dois mundos se conectavam quando já estávamos filmando. Era como uma carne que estava congelada, mas ainda pronta para ser usada! Quando se depara com o filho, ela começa a derreter, a querer se movimentar, pulsante.
Há uma cena muito bonita entre você e Hermila Guedes no filme. Vocês já foram Lampião e Maria Bonita, mas agora é relação é mais pontual. Como é trabalhar com ela?
É sempre uma entrega muito segura. Que legal você ter apontado isso, pois é sempre um prazer estar junto de Hermila. Ela é uma colega que possui um entendimento tão grande de cena que tudo o que faço é me deixar guiar. Os ensaios me permitiram isso, deram vazão a essa tranquilidade entre nós dois. Especificamente nessa cena, ela é quem dita o passo a passo da conversa, de como os dois se comportam. O Breno vai em busca de um conforto. Ela é irmã-gêmea da ex-mulher dele. E estão em um apartamento acima de tudo, no alto daquela cidade, e é a primeira vez que os vemos assim, quase como aves, sobrevoando e parados no tempo. É um respiro. É quando ele pode tirar suas armas, o colete à prova de balas, e se permite dividir o quão grande é a falta que aquela mulher faz na vida dele, e as dúvidas que possui quanto ao filho, se ele é um bom pai ou não. É um momento de entrega. E ninguém melhor para fazer isso do que a Hermila, pois sabe conduzir, como dar retorno. Por isso me larguei e deixe que fosse me guiando. Fizemos dois ensaios, e no dia da filmagem simplesmente me deixei guiar. Ela foi pontuando, e fui atrás. A potência dela como atriz que é, e os encontros que já estabelecemos em outras oportunidades, tudo vai somando. A admiração é mútua, e conta a favor da feitura do filme. Simplesmente ativei minha admiração e me deixei ser conduzido.
O que Fim de Festa tem a dizer a esse Brasil de hoje, que ao mesmo tempo em que é reconhecido internacionalmente, tem sofrido cada vez mais ataques dentro do país?
Me dá orgulho falar do Fim de Festa, ainda mais em um momento como esse, porque ele é um paralelo do que hoje acontece no nosso país. Se você percebe a ressaca, o cansaço que emana daquela tela, não tem como não fazer essa relação com o nosso país, que um dia estava em festa, em pleno desenvolvimento, e agora recebe um golpe certeiro no coração, que nos deixa a mercê dessa gente que colocaram lá em Brasília. O Brasil está de ressaca também. Estávamos em festa, e agora com esse governo precisamos recuperar nossas forças e descobrir como seguir em diante.
(Entrevista feita em março de 2020)
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