O drama Fogaréu (2022) voltou do Festival de Berlim com críticas elogiosas, bons debates com o público e um prêmio de terceiro lugar pelo júri popular, dentro de uma mostra com mais de 30 filmes do mundo inteiro. Em especial, o filme dirigido por Flávia Neves e produzido por Vânia Catani, da Bananeira Filmes, debate a formação do Brasil como um resultado de explorações, escravidão e ilegalidades, que reverberam no país até hoje.
Na trama, Fernanda (Bárbara Colen) retorna à cidade de Goiás, onde nasceu, para enterrar as cinzas da mãe de criação, enquanto busca o paradeiro de sua mãe biológica. No entanto, a investigação sobre o passado dessa cidade atrapalha os planos do tio Antônio (Eucir de Souza), um político influente envolvido em negócios ilegais, e bastante preocupado com sua reeleição. Enquanto os dois se confrontam, vem à tona a história real dos “bobos” de Goiás – pessoas com deficiência que eram exploradas pelas famílias ricas como mão de obra escravizada.
Nós tivemos o prazer de conversar com Bárbara Colen e Eucir de Souza em Berlim, antes da primeira exibição oficial de Fogaréu nas telas alemãs:
![Fogaréu :: "Estamos doentes como sociedade. Talvez a maneira de sair disso de fato seja um fogaréu", afirmam Bárbara Colen e Eucir de Souza 2 20220222 barbara colen papo de cinema 1200](http://www.papodecinema.com.br/wp-content/uploads/2022/02/20220222-barbara-colen-papo-de-cinema-1200-750x313.jpg)
Como foi a experiência de criar os personagens sem ter o roteiro prévio?
Eucir de Souza: A Flávia preferia que a gente não soubesse as cenas. Eu fui assim até o final. Eu estava preparado, sabia que teria um encontro com a Fernanda, por exemplo, mas só descobria o texto na hora. Fizemos uma preparação de uma semana, quase duas, em profundidade, na técnica Meisner.
Bárbara Colen: A gente sabia mais ou menos o que teria no dia. Sabia que seria uma cena da revelação de algo importante, por exemplo.
Eucir de Souza: A Flávia estudou essa técnica em Cuba, e trouxe uma preparadora especializada. As relações estavam construídas, a gente já tinha os personagens dentro da gente. A Bárbara me disse, num momento: “Acho que naquela cena, eu estava meio perdida”. E eu respondi que era isso mesmo, ela precisava estar perdida! Foi o caso da cena do escritório.
Bárbara Colen: Sim, é quando a Fernanda está muito diminuída. Eu ficava pensando: “Podia ter feito a cena de outra maneira, podia ter feito assim…”. Ela quer um carinho nessa hora! A preparação é fundamental, especialmente em dramas sobre relações familiares. Senão, fica parecendo café da manhã de novela, onde ninguém se conhece de fato. Mas as famílias exigem uma intimidade. A preparação foi essencial nesse sentido, porque chegamos a lugares profundos. Além disso, são relações complexas.
O projeto nasceu muito antes deste governo, mas parece dizer bastante sobre o atual estado das coisas. Como percebem esse retrato político?
Bárbara Colen: Na parte da Fernanda, tem uma coisa que muito de nós já vivemos: a decepção com a família. Ela sabe que os parentes são políticos conservadores, e quando chega naquela cidade, espera encontrar apenas aquilo: o machismo, os filhos de fazendeiro destruindo o meio ambiente, algum caso de corrupção política. Mas ela nunca poderia imaginar o que acontecia ali de fato. Existe uma diferença entre olhar aquele tio conservador e vê-lo como um assassino, um sujeito que vai matá-la se precisar, vai acobertar o filho traficante se precisar. Existe um salto na história. A Fernanda é muito valente, e segue em frente. Não sei como ela reagiria se soubesse de tudo isso de antemão.
Eucir de Souza: Para mim, não acho que estamos vivendo esta configuração política só agora. Estamos num momento de grande revelação, onde as pessoas resolveram dizer quem elas são. Isso é muito útil para a gente, porque era importante saber quem essas pessoas eram de fato. Todo mundo saiu do armário, botou a cara no sol. Algumas pessoas precisavam dizer também: “Eu sou fascista, sou machista, sou assim mesmo”. Isso era necessário como processo histórico. Não acho que o Antônio seja uma novidade: ele existe no país há 500 anos, só foi se aperfeiçoando. Essas práticas sempre existiram. O que teve de novo para mim, na construção do Antônio, foi conseguir olhar de dentro para fora, e me livrar do preconceito. Eu tinha uma rejeição inicial, mas foi importante para mim, até para entender alguns parentes, umas pessoas próximas. Antônio não é só um vilão. Isso seria muito rasteiro.
Bárbara Colen: O Eucir era super carinhoso! Nas improvisações que a gente fazia, ele era sutil, um tio carinhoso. Isso fazia sentido: quanto mais terno ele fosse nas cenas, mais escroto ficaria.
Goiás tem voltado a representar o Brasil profundo nos cinemas. Que importância teve o local para vocês?
Eucir de Souza: Eu venho de uma cidade pequena do interior de Minas Gerais. Não era uma novidade tão grande para mim – eu já tinha visto aquilo ali acontecer. Goiás é uma cidade muito forte.
Bárbara Colen: A gente fala mais nisso agora, porque essa galera está no centro do poder econômico e político. Nunca antes o agronegócio teve tamanha dimensão política. Os olhos se voltam a essa região por diversos motivos. De toda maneira, como mineiros, nós sabemos que tem esse fluxo de mineiros que saem do Estado e vão a Goiás para trabalhar. A questão é o legado da escravidão, que determina todas as relações sociais naquele local. O que são todos os porões daquelas casas? A discussão colonial do filme desemboca nessas mulheres com deficiência que são usadas e escravizadas, e depois descartadas. Isso diz muito do nosso passado. Goiás velho tem uma energia específica.
Eucir de Souza: Está nas pedras, no chão.
Bárbara Colen: Está na arquitetura e no jeito como as pessoas se relacionam. Tem o fator extra de ser uma cidade fantástica! Você anda por ali, e de repente, olhando para os lampiões, parece que tem espíritos em cada esquina.
Eucir de Souza: E tem mesmo! Tem de verdade, porque eles vieram para a gente. A cena do porão foi assim. Eu ia fazer a cena do porão, e essa sensação forte vinha. Tentei de novo e de novo, mas sempre vinha essa sensação, esse calor, que também afetou outras pessoas ali com a gente.
Bárbara Colen: Tem uma hora que, como ator, você precisa deixar de ser cético e abraçar tudo aquilo. Você precisa aproveitar o material que se oferece ali. Goiás velho estava ali presente, com força. Goiás é uma cidade densa, muito louca. Foi determinante para o filme. Não teríamos feito da mesma maneira em outra cidade, ou em estúdio. Seria outro filme.
Temos feito cada vez mais filmes sobre a descrença na política institucional, onde os caminhos tradicionais não funcionam, e a solução vem da revolução sangrenta, das chamas. Penso em Bacurau, Curral…
Eucir de Souza: Quando eu era adolescente, descobri o anarquismo. Eu acreditava muito, pegava o compasso da escola e desenhava o símbolo no corpo. Mas eu não tinha a dimensão do que seria. Hoje, eu acredito que não existe sistema de governo possível, no sentido de milagroso. Não existe uma única pessoa capaz de ser colocada ali como o grande redentor, que vai salvar a pátria. Também não acho que uma pessoa vai entrar lá e provocar uma destruição definitiva. Eu entendo esse ponto de vista, e vejo como as coisas melhoram e pioram em cada caso, mas acredito hoje que a única revolução seja pessoal. As pessoas precisam melhorar como um todo. O Antônio, sozinho, não é nada, apenas um covarde. Mas ele tem uma rede em torno dele, formada pela família, os funcionários. Todo corrupto é assim, cercado por mil pessoas.
Bárbara Colen: Estamos atravessando uma crise institucional absurda, em todas as instâncias. A questão do Bolsonaro, de trocar o chefe de uma Procuradoria Geral, e depois toda a Procuradoria para de funcionar enquanto tal, é bizarra. Como uma Procuradoria inteira pode estar subordinada a uma pessoa? Toda a função será barrada, ele vai poder escolher qual processo é barrado, por causa de uma pessoa colocada por interesse do presidente? O que é isso? O que é uma instituição?
Eucir de Souza: Ou ainda: o que é uma constituição?
Bárbara Colen: Eu trabalhei no Ministério Público Estadual, e vi o problema que enfrentam. Você sai de um órgão de União, mesmo em nível estadual, e tudo para de funcionar pela decisão de um governante. Até a nossa noção de democracia é colocada em cheque: o que entendemos por democracia? A gente achava que já estava estabelecido agora. Veja a Ancine, um órgão que estava estruturado, com tantas coisas funcionando. Então vem uma pessoa e acaba com tudo? Vamos precisar realmente nos organizar enquanto sociedade civil, conversar e articular.
Eucir de Souza: A gente pensa: se as pessoas tivessem uma ética, uma pessoa sozinha não faria esse estrago todo. O problema é que um cabeça propõe esses atos e todos abaixo dele falam que sim. Depois, saem todos para tomar uma cerveja juntos. Saem abraçados na rua. Cada um precisa olhar para si. É fácil ficar falando, claro. Mas é o que eu vejo como caminho possível. Senão vamos ficar trocando de governante em todas as instâncias, sem uma verdadeira transformação.
Bárbara Colen: Mas também estamos num momento excepcional, por causa da pandemia. Faz mais de dois anos que a gente não pode se encontrar. Não podemos marcar uma manifestação, ir para as ruas. Estamos cansados, estamos doentes mesmo, como sociedade. Talvez agora, a maneira de sair disso de fato seja um fogaréu, para a galera levantar e despertar.
![Fogaréu :: "Estamos doentes como sociedade. Talvez a maneira de sair disso de fato seja um fogaréu", afirmam Bárbara Colen e Eucir de Souza 6 20220221 fogareu papo de cinema 1200](http://www.papodecinema.com.br/wp-content/uploads/2022/02/20220221-fogareu-papo-de-cinema-1200-750x313.jpg)
Fogaréu claramente não é feito para o olhar estrangeiro. Mas qual é a importância de trazer o filme para Berlim?
Bárbara Colen: Em 2016, quando fizemos aquele ato durante a apresentação de Aquarius, aquilo era um grito de socorro. Quando eu olho tudo o que está acontecendo, percebo que ocorrem no Brasil violações sistemáticas de direitos humanos, com coisas absurdas, inclusive durante a pandemia. Veja como a negligência do governo pôde causar esta situação, e ficamos sem ter a quem recorrer. É um momento em que precisamos gritar. Trazer este filme para cá é uma maneira de dizer isso: olhem o que está acontecendo. Com um filme, você consegue trazer empatia. As pessoas se identificam com a subjetividade dos personagens, elas entendem aquele corpo para além da racionalidade. Eles podem se colocar na pele de uma família brasileira. É uma maneira de trazê-los até nós.
Eucir de Souza: Estamos descobrindo que o brasileiro não é bonzinho; não somos esse povo amável, carnavalesco, acolhedor. A situação está bem dura. O racismo no Brasil era algo que a gente pensava que existia em casos isolados, mas não essa horda de gente que tem coragem de sair na rua e dizer: “Sou preconceituoso mesmo!”. Nunca pensei que isso fosse acontecer. Acho triste, de verdade. Qualquer possibilidade que a gente tenha de mostrar isso ao mundo é válida.
Bárbara Colen: Nós somos as duas coisas. Somos esse povo preconceituoso, mas também somos os artistas capazes de fazer esse filme e trazer para um festival desse porte. Estamos construindo uma história, inclusive em Berlim. Este ano, temos seis filmes selecionados. Poucos anos atrás, eram quase vinte.
![Fogaréu :: "Estamos doentes como sociedade. Talvez a maneira de sair disso de fato seja um fogaréu", afirmam Bárbara Colen e Eucir de Souza 7 20220222 fogareu papo de cinema 1200 2](http://www.papodecinema.com.br/wp-content/uploads/2022/02/20220222-fogareu-papo-de-cinema-1200-2-750x313.jpg)
As ferramentas do cinema fantástico têm se mostrado as essenciais para representar a crise política.
Eucir de Souza: Eu nunca refleti sobre isso. Talvez seja um meio para a gente respirar. Eu te ouço falar disso e penso em O Labirinto do Fauno (2006). Se fosse literal, você não aguentaria ver. E Goiás tem isso.
Bárbara Colen: Eu nem sei se nosso filme é tão fantástico assim, pensando em tudo o que aconteceu com a gente em Goiás! São metáforas que não estão tão distantes assim do que aconteceu. Quando você pensa em Bacurau, é isso: um grupo de americanos que chega numa cidadezinha e explora o local sem consequências. Isso acontece de verdade.
Eucir de Souza: A fantasia suaviza o tema. Ela cozinha e tempera o real para a gente conseguir comer. Fico muito chocado quando ligo a televisão e vejo uma propaganda da Vale do Rio Doce. É absurdo! Não vai acontecer nada? Milhares de pessoas foram mortas, e continuam morrendo. A empresa não fechou, ela continua funcionando. Por isso o Antônio não se preocupa: ele sabe que, apesar dos problemas, a empresa não vai fechar, o sistema vai continuar funcionando.
Bárbara Colen: Os burocratas pensam: de fato, morrem pessoas, mas isso está dentro do nosso plano de negócios, podemos arcar com isso. Mas fico pensando na questão da fantasia. Ela é capaz de extrapolar a representação. Temos empobrecido muito as imagens com as redes sociais, o Instagram, o Tik Tok. Vivemos para a exterioridade. A fantasia permite internalizar, se relacionar com o mundo de outra forma. Quando a gente se depara com um mundo que está acabando – veja a pandemia, as crises climáticas -, precisamos nos preparar, em termos de cultura, para o que vem por aí. O cinema cumpre esse papel.
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