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Fogaréu :: “Tive que sair de Goiás para fugir desse mundo onde é difícil para mulheres se colocarem”, explica a diretora Flávia Neves

Publicado por
Bruno Carmelo

No último Festival de Berlim, o cinema brasileiro foi representado por seis filmes, dentre os quais, três receberam prêmios. Fogaréu (2022), dirigido por Flávia Neves, levou o terceiro lugar no prêmio do público, que elegeu seus preferidos entre mais de 30 longas-metragens do mundo inteiro. O drama se passa na cidade de Goiás, onde Fernanda (Bárbara Colen) retorna para confrontar a família conservadora. A princípio, ela pretende dispersar as cinzas de sua mãe de criação, falecida recentemente. No fundo, a jovem busca descobrir a identidade de sua mãe biológica.
Durante a investigação, conhece a realidade dos “bobos” de Goiás: pessoas nascidas com algum grau de deficiência cognitiva ou física, mantidos como escravos modernos das famílias ricas. As revelações de Fernanda afetam os interesses políticos do tio Antônio (Eucir de Souza), que busca a reeleição, e causam retaliações cada vez mais violentas à jovem progressista. Aos poucos, Fogaréu mergulha no cinema fantástico. Nós conversamos com a diretora Flávia Neves em Berlim, antes da primeira exibição oficial do projeto e do prêmio que viria a ganhar:

A diretora Flávia Neves com a atriz Bárbara Colen e o programador da Mostra Panorama, Michael Stütz, ao fundo, durante o Festival de Berlim. Foto: @Berlinale

Qual era a importância de situar em Goiás este retrato de um Brasil conservador?
Eu tinha a necessidade de falar sobre este lugar onde eu nasci e cresci. Na verdade, eu sou de Goiânia, e essa história é concentrada na cidade de Goiás, antiga capital do Estado. Esta é a nossa referência de cultura, porque Goiânia ainda é uma cidade muito nova. Quando eu soube dessa história, contada por um professor da UFF, fiquei perturbada. Eu não imaginava que isso acontecia. Chegando ao momento em que surgiu a vontade de fazer um filme, queria algo sobre a esfera doméstica, sobre as lutas de classe. Fui à cidade e descobri que a história é real. Descobri uma tese de doutorado, esmiuçando isso com depoimentos, depois de anos de pesquisa. Foi a única grande investigação sobre o tema. Além disso, minha mãe também foi adotada, a exemplo dos “bobos” de Goiás. Entendi que esta era uma memória recalcada. Eu me aproximei dessa história, a princípio, sem saber o porquê. Acabou sendo um processo mais profundo do que eu imaginava. Aconteceu a mesma coisa com a psicanalista que escreveu a tese, foi difícil para ela. Entrando nas questões pessoais, busquei entender o que aconteceu com a minha mãe, mas ela nunca tinha me contado. Isso fez muito sentido para eu entender quem sou, a vida que tive, a vida que ela pôde dar aos filhos. O processo foi tão difícil quanto libertador.

Fernanda é um personagem bem forte, baseado na afronta. Ela nunca recua, apesar das violências sofridas.
A mãe adotiva da Fernanda foi embora dali porque não era aceita, e precisava ser ela mesma. A Cecília já tinha essa personalidade, então criou a Fernanda para ser capaz de enfrentar esse mundo hostil contra as mulheres. Tem uma referência pessoal: também tive que sair de Goiás para fugir desse mundo onde é difícil para as mulheres se colocarem. Foi a sensação que tive quando voltei do Rio de Janeiro. Tive um momento inicial de rejeição, mas depois quis retomar o sotaque que perdi. Precisava entender aquele lugar, já que saí jovem. Mesmo assim, minha presença sempre causou desconforto, pelo meu jeito, pelo conflito. Eu sou essa pessoa que bate de frente, questiona e não acata. Por isso, teve o esforço de colocar uma mulher nesse lugar, transbordando, fazendo exatamente o que todo mundo espera que ela não faça.

Como enxerga a abertura à fantasia no filme?
Goiás é um lugar que gira em torno da superstição, do sobrenatural. Tem uma narrativa oral muito pesada, com histórias trágicas. Basta escutar as modas de viola, a música do Chico Mineiro. Inclusive, filmamos nessa estrada citada na música. Tem um aspecto sombrio, depressivo, melancólico. Quando você passa um tempo nessa cidade, percebe que acontecem coisas estranhas. A atmosfera do horror e do fantástico está presente na cultura local. Tivemos a série do João de Deus, com um catolicismo arcaico, uma espécie de caldeirão cultural. João de Deus foi um caso inexplicável. Este local é assim, cheio de contradições.

Diria que é um filme sobre a descrença na política institucional como possibilidade de renovação? É preciso colocar fogo em tudo para criar novas bases?
Tem uma metáfora de purificação, de renovação ali. O próprio Cerrado tem isso: uma vez por ano, ele pega fogo, as flores nascem das cinzas. Isso é necessário para que este espaço continue vivo e pulsando. É lógico que o fogo faz parte do imaginário comum da rebeldia. Mas no caso, tem mais a ver com a metáfora deste lugar, onde as chamas são necessárias à renovação. Sobre a descrença com a política, sinto que não mudamos muita coisa. As oligarquias, o coronelismo, as capitanias hereditárias mudaram superficialmente de embalagem, mas continuamos tendo um pensamento e uma cultura daqueles tempos. Eu não diria que o filme mostra uma descrença com a política: ele quer falar de algo latente, de um aspecto cultural enraizado, para entender que isso ainda não mudou. Se a gente quiser mudar alguma coisa, precisamos partir destas estruturas inalteradas.

Por que não deu o roteiro completo, com os cenários escritos, aos atores?
Eu não dei o roteiro para eles. Alguns não leram nada do roteiro antes, outros quiserem ler o roteiro para se sentirem seguros a princípio. A ideia era não se apegar ao texto, trabalhar primeiro as emoções. Usamos a técnica de Meisner, onde o texto entra depois. Primeiro, trabalhamos as emoções de cada cena, quando cada ator vive verdadeiramente circunstâncias imaginárias. Ele cria uma situação na cabeça dele, com pessoas reais, e vive aquela cena, criando junto. Nesse momento, o personagem e o ator se encontram. Mas enquanto isso, o ator não “faz de conta”. É uma técnica anti-atuação: ele está vivendo aquelas situações de fato. Depois, o texto entra de maneira orgânica. Se você parte do texto, acaba engessando o trabalho. Por exemplo, os atores não tinham o texto um do outro, apenas as próprias linhas. Por isso, ele precisa estar sempre à escuta do outro. Ele não sabe o que o outro vai falar, e precisa estar tonificado. É um esforço de não automatizar, não viciar. O processo começa com o texto sem intenções, e depois, os elementos são acrescentados. 

Neste momento de dificuldades para o cinema brasileiro, qual é a importância de exibir Fogaréu em Berlim?
Agora estou começando a entender nosso papel aqui. Antes, não conhecia bem o perfil de cada festival, e agora começo a conhecer melhor o festival de Berlim. Sempre me disseram que seria o lugar perfeito para o filme, e agora eu entendo que isso é verdade. Nunca tinha vindo a festivais na Europa, e agora, conhecendo os alemães, entendi que essa cidade tem uma memória muito forte. Violências muito difíceis aconteceram aqui no século XX. Embora os alemães pareçam muito felizes, existe uma proximidade na intenção de ir fundo nas nossas feridas históricas.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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