Apesar de lançar nesta quinta-feira, 26, o seu primeiro longa-metragem, pela Embaúba Filmes, Ricardo Mehedff não é um novato na Sétima Arte, aliás, bem pelo contrário. Pós-graduado em cinema pela George Washington University, ele possui ampla experiência como montador, tendo destacado trabalho (por muitos considerado inovador) na edição de trailers para grandes estúdios norte-americanos, tais como Warner Bros. e Fox. Depois de experimentar-se como diretor de curtas como Um Branco Súbito (2002), Noite Aberta (2004) e Capital Circulante (2004), ele lança no circuito comercial sua primeira ficção de longa-metragem. Foro Íntimo (2019), inspirado em circunstâncias reais, mostra um juiz preso à rotina vigiada no fórum onde trabalha, tendo cerceada a sua liberdade por conta da atuação jurídica no combate ao influente senador ligado ao narcotráfico. Conversamos por telefone com Ricardo para saber um pouco mais sobre a construção narrativa do filme e também para entender as ligações diretas com episódios famosos do nosso noticiário político e criminal. Confira o nosso Papo de Cinema exclusivo com Ricardo Mehedff.
Você tem uma destacada atuação como montador, inclusive de trailers para empresas de Hollywood. O quanto essa experiência pesou para a direção econômica e direta de Foro Íntimo?
Foi fundamental. Diria que sou um diretor montador. Quando estou dirigindo, já monto o filme na minha cabeça. Até por conta de ser uma produção de baixo orçamento, com tempo reduzido – três semanas, o que é pouco para um longa-metragem – isso ajudou bastante. Obviamente a montagem não fica exatamente como idealizei no instante da filmagem, mas esse processo me guia muito. Já trabalhei editando longa, curta, documentário e sei o que é montar a performance do ator, especificamente. Por exemplo, às vezes você constrói a performance do ator na montagem. Nem foi o caso nesse filme, mas a bagagem como montador também me orienta na hora de dirigir os atores.
Desde o princípio chama a atenção o esmero na construção da imagem. Como se deu o trabalho conjunto com o Dudu Miranda, o diretor de fotografia?
Dudu é único carioca de uma equipe, no mais, completamente mineira. Ele foi o fotógrafo de todos meus curtas de ficção. Temos um dialogo consistente. Crescemos na profissão juntos, paralelamente. Para mim era natural ele estar no longa. Eu sabia apenas que queria a fotografia em preto e branco e que a imagem fosse no formato quadrado. Mas ela não é o padrão 1:33, é o Academy, o primeiro do cinema, o dos filmes mudos, com aspecto 1:3:75. Mas se você reparar bem, esse aspecto é dinâmico. Começa no 16:9, aí o título traz para o formato Academy. Daí em diante a tela varia, está sempre se fechando no juiz. É mais uma camada dessa claustrofobia, da clausura que ele experimenta. Mandei algumas referências previamente para o Dudu, mas ele construiu esse preto e branco tão rico, de contraste forte. Teve de fazer isso com um orçamento enxuto, assumindo fotografia e câmera. Dudu foi fundamental.
O fórum Lafayette acaba se tornando um personagem pulsante pela forma como você valoriza os espaços internos e as linhas externas. Desde o começo a ideia era filmar lá?
Quando cheguei àquele local fiquei fascinado. Milhares de pessoas passam diariamente na frente dele e sequer percebem as linhas incríveis que o prédio tem. Conseguimos construir a linguagem inclusive partindo dessas linhas duras. É um modernismo antigo, já que o prédio foi inaugurado na década de 1980. Entramos nas varas de justiça e ali existiam pilhas de documentos, uma disposição meio labiríntica. Adorei o contraste. Quando comecei a pensar o roteiro, não tínhamos o lugar. Nem sabíamos se íamos conseguir rodar em fórum de verdade. Confesso que me dava até certo desespero em pensar na opção de filmar num galpão e encher o lugar de processos (risos). Decidimos que o filme inteiro aconteceria ali. O lugar ajudou na construção da narrativa, foi essencial à linguagem adotada no filme.
O desenho do som é outro aspecto essencial no filme. Como se deu essa concepção que me lembrou muito a equivalente do cinema do David Lynch ?
Você mencionou um cara que é uma das maiores referências. Assisti à Eraserhead (1977) não sei quantas vezes. David Lynch foi realmente um norte na construção do elemento sonoro. Se você reparar bem, a trilha não tem música, é formada apenas por ruídos e climas. Não queria uma melodia, mas climas, pois isso jogaria a gente nesse estado psicológico do juiz. O áudio hoje em dia é um elemento extraordinário. As formigas, por exemplo, são outra alusão direta ao David Lynch, especificamente ao Veludo Azul (1986), com aquilo das equivalentes na orelha encontrada pelo protagonista. O som foi uma feliz junção da captação direta com a construção em estúdio.
E como se deu a preparação com o elenco? A câmera muitas vezes captura não ditos tão ou mais expressivos do que qualquer coisa verbalizada em cena…
Ensaiamos bastante. O Gustavo (o protagonista) foi incrível. Ele mergulhou de cabeça na pesquisa, frequentou o fórum comigo. Um dos juízes com os quais conversamos permitiu a ele participar do cotidiano da vara. Para mim era importante que ele soubesse como era a rotina do juiz, antes mesmo de construir a sua versão atípica. No caso do Jefferson, ele teve outra oficina. Conversamos com agentes das polícias militar e federal que fazem proteção de dignatários e realizamos uma oficina para entender as regras. O juiz não manda no agente, tem até de assinar um contrato para se comprometer a obedecer ao protetor. Mas isso nem sempre acontece. Essa relação é dinâmica. Adiante, juntei os dois para ensaios intensos, inclusive dentro do fórum. Fomos muito felizes em termos de elenco. Todo mundo mergulhou profundamente no projeto. Não tive preparador de elenco, acabei fazendo tudo.
O caso que o protagonista investiga é muito parecido com a famigerada apreensão de 450 quilos de pasta base de cocaína num helicóptero de propriedade do então senador Zezé Perella. Qualquer semelhança não é mera coincidência?
Cada um faz a associação que lhe parece mais correta (risos). Mas, como você captou, existem semelhanças com esse caso verídico, claro. O antagonista é um personagem que vemos apenas por meio de suas ações, nunca diretamente. Ele representa esse perigo constante. Há semelhanças e diferenças com o caso Perella. No dele há um helicóptero, no nosso filme é um ônibus (risos). Tem gente que dá um passo adiante e relaciona com outro senador mineiro…
Será que se o Aécio Neves assistir ao filme ele vai se identificar?
Talvez ele negue veementemente qualquer semelhança (risos).
Em meio ao lançamento no Brasil do seu primeiro longa, como percebe as singularidades do nosso mercado, bem como o atual cenário incerto quanto ao futuro do nosso audiovisual?
Vejo tudo isso com muita preocupação. Estamos batalhando. Vou lançar o filme agora junto com outros cinco brasileiros. O gargalo é pequeno. O que mais me encanta em nosso cinema é a diversidade. Mas me preocupo com o que vai acontecer daqui para frente. Será que desaceleraremos até parar? O Brasil está ganhando espaço no mundo por conta dos festivais, lançando em outros mercados. O governo federal está acabando com essas pontes. Outra coisa que me preocupa é a falta de diálogo. Não vejo qualquer sinalização do governo no sentido de conversar e tentar entender. Tenho um projeto futuro que se chama Foro Privilegiado. No Foro Íntimo falamos do poder judiciário. No novo, falaremos do poder legislativo. O protagonista é um senador corrupto prestes a perder o foro privilegiado. Você acha que consigo viabilizar esse projeto via edital no Brasil? Não sei. Isso é uma incógnita.
(Entrevista feita por telefone em setembro de 2019)
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