Armando Praça é um dos grandes nomes do cinema cearense contemporâneo. Após ter participado das equipes de sucessos nacionais, como o premiado Praia do Futuro (2014) e a série Me Chama de Bruna (2016), estreou no formato longa com o aclamado Greta (2019), selecionado para o Festival de Berlim e exibido em eventos na Itália, Israel, México, República Tcheca e muitos outros. Dois anos depois, ele está de volta com um novo drama, o drama Fortaleza Hotel, exibido na sessão de abertura do 31º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema. O Papo de Cinema está presente no festival desse ano acompanhando tudo de perto, e conversou com o cineasta após a projeção do filme. Confira!
Armando, quais foram as tuas inspirações ao dirigir Fortaleza Hotel?
No roteiro original, estava previsto que as duas protagonistas teriam uma troca, durante uma música. Aquele momento com a Pilar tentando fazer uma aproximação, perguntando se a outra gostava de música brasileira. A ideia era que apresentasse uma música que tivesse a ver com o seu universo, seria um forró. Em resposta, a Shin mostraria uma música típica da Coréia do Sul. No começo, havia imaginado um k-pop, embora não tivesse a ver com uma mulher como aquela. Mas até gosto desses contrastes. Pesquisei a respeito, principalmente durante os dias em que estive na Coreia por causa do filme. Foi quando descobrimos o tango. Ele trazia uma personalidade. Não é uma mulher que gosta de uma música coreana qualquer. Ela gosta de tango. Isso não entrou por causa do Felizes Juntos (1997), foi a atriz que trouxe essa preferência particular. Mas quando se apresentou, é claro que o Wong Kar-Wai se tornou nossa principal referência. Não tinha como fugir.
Essa alusão ao Kar-Wai estava restrita à escolha do tango para essa cena?
Não, ia além. Acabou não ficando no filme, mas a direção de arte havia colocado um pôster das Cataratas do Iguaçu, compondo um cenário. Era pra assumir mais ainda. Tinha um plano da Shin sentada no sofá e o quadro atrás, para reforçar essa homenagem. É evidente que tem essa inspiração. Foi muito orgânico, como parte natural do nosso processo.
Você já era fã do Felizes Juntos?
Eu amo tudo que o Wong Kar-Wai faz. Muito profundamente, adoro mesmo. Por isso que, quando me vi diante da possibilidade de fazer essa brincadeira, uma verdadeira homenagem, vi que não podia desperdiçar a oportunidade. E daí se alguém achar cafona, eu estava adorando. Aquele filme é lindo, e cena é muito delicada. Por mais que seja curta. Na minha memória, achava que eles ficavam cinco minutos dançando na cozinha, mas não chega a 30 segundos. Mesmo assim, é algo que marca.
Havia outras referências?
Tinha muito dos filmes coreanos. Era importante criar essa sensação de estar fazendo um longa coreano dentro de Fortaleza. Pelo menos na maneira como estava dirigindo, era o jeito que encontrei de mesclar os dois universos. Tem uma paisagem que é evidentemente fortalezense, por mais que não seja a dos cartões-postais, mas também tinham características do cinema coreano: uma certa frontalidade, planos longos, muitos diálogos. Tinha uma série de elementos do cinema contemporâneo de lá. As grandes referências, por outro lado, nem eram tanto cinematográficas, e mais fotográficas. É com o que trabalho mais, vindo da fotografia, e não tanto do cinema. Usei como referências fotografias de vários lugares.
O teu cinema é muito de personagem. O quanto dele é construído com os atores?
É 100% compartilhado. Um curta anterior, o A Mulher Biônica (2008), é todo improvisado. Mas nos longas foram experiências diferentes, ainda que não tenham sido propostas necessariamente por mim. Aconteceram de trabalharmos com o que estava previsto no roteiro, com poucas improvisações. No caso do Greta (2019), foi uma exigência do próprio Marco Nanini, que tem o costume de trabalhar muito no texto. É como ele faz. O roteiro dele era todo rabiscado, as falas cheias de marcações. Tinha indicação até de onde deveria respirar. É o material de estudo dele. É um costume que vem do teatro, imagino. É evidente que uma palavra ou outra era adaptada, mas no geral era como estava no roteiro. Já no caso do Fortaleza Hotel, tinha a questão da língua. A Clébia não era fluente no mandarim, e a Lee Young-Lan não falava português. Elas se comunicam a maior parte do tempo em inglês, que não é natural para nenhuma das duas. Precisavam se pegar ao texto que estava escrito, pois não havia facilidade para improvisar numa outra língua. Só nas cenas em português é que a Clébia tinha mais espaço. Mas, ainda assim, não era uma imposição minha.
E antes das filmagens, como é o teu processo?
Fizemos mesas de leitura, ensaios, tudo que foi possível. Sala de ensaio mesmo, cena sem o texto, depois com o texto, de uma maneira, depois de outra. E vai agregando. Os atores, de uma maneira geral, adoram contribuir. E sou muito aberto a essas sugestões. Afinal, são eles que estão ali. Não posso dizer “tem que falar desse jeito”, se pro cara é mais confortável de outro modo. E quando digo isso, não falo no sentido de relaxar, mas na busca pelo que lhe é mais adequado.
Você comentou que Greta era um filme masculino, e agora Fortaleza Hotel seria uma narrativa feminina. Em qual desses discursos você se sente mais à vontade?
Eu sou um homem gay. No caso do Greta, estava falando de um personagem gay. Então havia essa identificação. Era tranquilo. Mas o feminino é natural para mim. A minha vida inteira estive mais próximo de mulheres do que de homens. Não sinto nenhum tipo de estranhamento ou desconforto. É um tipo de universo que até me interessa mais. Claro que existem exceções, homens interessantes e mulheres desinteressantes. Mas estou falando do padrão. Sou muito interessado pelas mulheres, como elas enfrentam os problemas, como se ajudam. Existe na relação entre mulheres uma parceria, uma solidariedade. Elas são de fato mais oprimidas. Estão numa condição mais difícil dentro do contexto da sociedade. Isso é muito comovente. Como material cinematográfico, é muito mais potente do que entre dois homens.
Chegou a se vislumbrar a possibilidade de um envolvimento romântico entre as duas protagonistas de Fortaleza Hotel?
Nunca. Há lampejos, claro. Mas em momento algum se pensou que tivessem uma relação afetiva ou mesmo sexual. Mas a carência entre elas é latente, e por isso essa necessidade de afeto, de proximidade. É mais ou menos por aí.
Esse é um projeto que não nasceu contigo, diferente do Greta. Isso influencia na tua forma de dirigir?
Foi o que mais me preocupou e me assustou. Com o Greta, tinha uma familiaridade com aquele roteiro gigantesca. Eu me interessei pela peça, escrevi o roteiro, fiz todas as alterações ao longo dos dez anos que levei até conseguir financiar o filme. Tinha uma intimidade enorme. Fiz tudo sozinho. Nesse, por outro lado, o texto chegou até mim já pronto. Então, precisava transformar aquilo em algo meu também. Tenho uma desconfiança de que se fosse um assunto que não me emocionasse, nem iria querer fazer. Pois não faria bem. As minhas intervenções era para dar a ele a minha voz. Mas não assino o roteiro, não reescrevi do começo ao fim. Por outro lado, tínhamos reuniões periódicas, e sempre vinha com sugestões. Havia um diálogo com os roteiristas. Foram muito bacanas. Sabiam de que outro formato não funcionaria. Precisava me sentir comovido com aquela história. Isso é difícil quando se pega o roteiro pronto, e por isso foi um desafio interessante.
Depois da consagração do Greta no Cine Ceará de dois anos atrás, como é voltar ao festival, e ainda por cima na sessão de abertura?
Voltar abrindo é uma responsabilidade grande. Não é uma abertura qualquer, pois tem também essa volta ao cinema. Tem tudo isso. Filmamos em maio de 2019, ainda pré-pandemia. Tinha essa responsabilidade. Se pudesse escolher, os festivais não seriam competitivos. Claro que gosto de ser reconhecido, ganhar prêmios. Quero ganhar, não vou ser hipócrita. Mas adoraria que esse formato não fosse tão recorrente. É muito difícil para o júri, como você compara um filme com o outro. Os critérios são subjetivos. Esse clima de competição eu não entro. Me recuso a participar dessa energia. Se ganhar, ótimo. Se não ganhar, tá tudo certo também.
E estar sendo exibido em casa, faz diferença?
Acho que sim. Afinal, tem a equipe inteira presente. A expectativa é grande. Aqui foi a nossa primeira exibição. Todo mundo tá esperando pelo melhor. Se estou em um outro lugar, que estou sozinho, pode até ter tensão, mas mais relaxado. Quando tá todo mundo junto, me sinto acolhido, mas também pressionado. Quero agradar todo mundo que participou. Não me sinto na obrigação, mas quero que fiquem felizes por terem participado do filme.
(Entrevista feita ao vivo em Fortaleza em novembro de 2021 durante o 31º Cine Ceará)
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