Léo Garcia é sócio da produtora Coelho Voador e roteirista de longas como Em 97 Era Assim (2018) e A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro (2018) – no qual assim também a co-direção. Além disso, escreveu títulos como os inéditos Legalidade (2020) e Depois de Ser Cinza (2020), além da série A Bênção, prevista para estrear neste ano no Canal Brasil. Mariana ‘Mêmis’ Müller é sócia da Epifania Filmes e produtora de longas como Filme Sobre um Bom Fim (2015) e Pra Ficar na História (2018), além do inédito Disforia (2020). Os dois, juntos, assinam o FRAPA – Festival de Roteiro Audiovisual de Porto Alegre, que chega a sua sétima edição entre os dias 2 e 5 de julho. Para saber um pouco mais sobre o evento e quais as novidades prometidas para este ano, fomos nos encontrar com os dois, que falaram sobre como esse projeto nasceu, o que esperar da programação de 2019 e quais os planos para o futuro. Confira!
Bom, para começarmos… por quê um festival de roteiros?
Léo Garcia: Olha, muita gente nos pergunta isso. Só que é uma questão básica. Estava faltando prestar atenção ao roteiro. Afinal, é a parte mais importante de toda a cadeia, e não estava recebendo a atenção devida. O roteirista é quem recebe pior de toda a equipe. Trabalha por anos a fio, sem saber se vai ganhar alguma coisa. É o que mais sofre com todas as mudanças. Ele precisa ser reconhecido.
Mariana Mêmis Müller: Sem falar que, se o roteiro for ruim, não há boa equipe que consiga salvá-lo. Tudo começa a partir dele.
LG: É muito importante. Poxa, o roteirista não é convidado nem para a feijoada dos festivais (risos). Ele tá sempre num segundo plano. Havia chegado a hora de olhar e reconhecer que, sem ele, nada mais funciona.
MM: Quando o Léo me trouxe essa ideia, a primeira coisa que pensei foi como é alto o nível técnico no cinema brasileiro – ótimos diretores de fotografia, diretores de arte, pessoal da câmera etc – mas como se dá pouca atenção aos roteiristas. Sentimos falta de maior cuidado com o roteiro.
O FRAPA se anuncia como o maior festival do gênero na América Latina. Vocês fizeram um levantamento? Quantos festivais similares existem no Brasil e no resto do mundo?
LG: Pois então, quando começamos, nos anunciávamos como ‘o primeiro festival de roteiros do Brasil’. Agora, o cenário está diferente, mas é pouca coisa. Pipocam alguns na Europa, e o maior em todo o mundo fica em Austin, nos Estados Unidos. Ele acontece junto com o Festival de Cinema de Austin. Não é o SXSW, é um outro evento, à parte. Em Londres tem um muito bacana, também. Quando estive lá, era recém a terceira edição, e já era gigante. Foi impressionante. Na maioria dos eventos de cinema, até existem rodadas de negócios, showrunners são convidados, mas dificilmente se organizam mesas só para diretores e roteiristas, um de frente para o outro, trocando ideias. Começamos a nos dar conta que era um caminho, uma possibilidade real. E o mercado respondeu à altura. Só neste ano, para se ter uma ideia, todos os pacotes de ingressos foram vendidos três meses antes. A fila de espera tem mais de 100 pessoas aguardando. Agora, quem quiser participar, pode assistir aos filmes e estar junto nos eventos noturnos, mas nas demais programações não tem mais vagas.
Vocês concordam, portanto, que o calcanhar de Aquiles do cinema brasileiro é o roteiro?
LG: Não sei se é exatamente o calcanhar de Aquiles, pois a distribuição também é um ponto bastante complicado. Mas falta apoio, com certeza.
MM: A maioria dos editais que existem no Brasil são voltados à produção, exclusivamente. Só que pra se inscrever, o roteiro tem que estar pronto. E quem escreve isso? Ganhando o que, se não há nada aprovado nessa etapa? Mesmo se passe no edital, não há como pagar o roteirista, pois só irá contemplar as etapas seguintes, e não o que já foi feito. Roteirista ganha muito mal no Brasil, é o que se sai pior em todas as etapas de produção. Não é quem nem o Diretor de Fotografia, por exemplo, que entra quando está tudo acertado, inclusive o cachê dele. O roteirista é na aposta!
LG: E nem o melhor diretor de fotografia do mundo consegue salvar um roteiro ruim.
O FRAPA 2019 está sendo anunciado como a maior edição de todas. O que irá apresentar de novo?
MM: Nos três primeiros anos, éramos um ‘Frapinha’. Tudo muito pequeno. Mas era um embrião de que algo maior estava por vir.
LG: Éramos um subevento da Feira do Livro de Porto Alegre. Acontecia em paralelo. E com outro diferencial: naquela época, era tudo gratuito.
MM: Foi quando perdemos um apoio, no terceiro ano, que decidimos cobrar pelo acesso. E o que aconteceu foi que passaram a valorizar o evento. Ninguém dá bola se é de graça. Agora, quando pagam para estar lá, ninguém quer perder. É muito louco isso. Antes, era uma coisa do tipo: “ah, tem o FRAPA? Talvez dê uma passada lá semana que vem”. Depois, a partir do momento que pagava para participar de mesas nos quatro dias de programação, não vai perder, vai estar presente em todas as oportunidades.
LG: Lembro da primeira vez que o Bráulio Mantovani veio – puxa, é o único roteirista brasileiro indicado ao Oscar – e metade da sala estava vazia. No ano seguinte, cobrando, o público simplesmente dobrou.
MM: A participação foi aumentando gradualmente. No ano passado, pela primeira vez, tivemos que abrir um outro espaço, dessa vez na ARI – Associação Riograndense de Imprensa – com atividades paralelas. A Cinemateca Capitólio não era mais suficiente. E agora demos um passo maior: além desses dois, também no Auditório do Senac. Teremos três sedes, e está pouco. Estamos com 93 convidados confirmados – é o maior número de que já tivemos. Em 2018 foram pouco mais de 60 convidados. Contando outras participações, devemos ter em torno de 450, 500 pessoas.
E quem tem participado desse festival? Somente roteiristas, ou qualquer pessoa interessada?
LG: No início, achava que só roteiristas iriam se interessar. Seria somente um encontro de roteiristas. Só que percebemos que esse não é um festival de roteiristas, é de roteiro. E há uma diferença nisso. A produtora tem que saber ler roteiro. O diretor também. O diretor de fotografia, de arte, todo mundo acaba envolvido e tem que saber como funciona.
MM: Os roteiristas ainda são nosso público-alvo, mas é mais amplo. No entanto, reconhecemos que é um evento de nicho, de mercado. Não é para o grande público.
LG: A gente chama de festival porque ‘congresso’ é uma palavra muito feia (risos). E tem uma mostra internacional de curtas também, mais atividades noturnas, festas e encontros. Mas, acima de tudo, é um evento de qualificação e formação de mercado.
MM: Nosso carro-chefe, querendo ou não, são as rodadas de negócios. Só neste ano teremos mais de 30 players do mercado reunidos. Mais de 300 agendas. E aqui, por não ser tão grande, se possibilita um contato próximo, as pessoas ficam juntas. Aqui é o único lugar onde os roteiristas têm contato direto com quem realmente faz cinema e televisão no país. E não queremos perder essa característica familiar. Temos que crescer moderadamente, com planejamento e cuidado.
LG: Detesto festivais que, após as exibições, vai cada um para um lado e ninguém se conversa. Conosco é diferente. Roteirista é um cara mais tímido, a gente sabe disso. Só que no FRAPA, vai todo mundo para o mesmo bar depois, e ele pode conversar com quem tava dando palestra pouco tempo antes. Todo mundo fica mais próximo. Não é só possibilitar esse contato dos participantes com os convidados, mas também entre os inscritos. Para ter uma ideia, duas pessoas que se conheceram no ano passado, agora estão inscritas com um projeto que fizeram em conjunto. Ou seja, foi o FRAPA que permitiu, que facilitou essa união.
MM: As pessoas, hoje em dia, se inscrevem mesmo antes de saber qual vai ser a programação. Não interessa mais o que vai acontecer, e, sim, quem vai estar presente.
Vem muita gente bacana. Mas qual seria aquele convidado dos sonhos, que vocês querem muito trazer, mas ainda não conseguiram?
LG: Pra mim, seria o Charlie Kaufman. Só não veio ainda por problema de agenda (risos). Mas um dia ainda vamos tê-lo no FRAPA. Estamos tentando contato com ele, já fizemos algumas ligações, mas tá complicado. Quem sabe em 2020?
E quais são os destaques desse ano?
LG: Nesse ano temos grandes nomes confirmados. De quem vem do exterior, talvez seja bom destacar a Xenia Rivery, que é de Cuba, uma consultora super conceituada. Mas do Brasil, nomes fortes como George Moura, que está por trás de algumas das melhores séries da Globo, o Bráulio Mantovani estará de volta, vem junto da esposa, a Carolina Kotscho, que é a atual presidente da ABRA – Associação Brasileira de Autores Roteiristas, e o Antonio Prata, que além de roteirista é, também, colunista da Folha de S.P. Vem ainda o Felipe Braga, que escreveu o aguardado Marighella (2019), e vai fazer um estudo de caso da série dele, Samantha (2018-2019), que está na Netflix. A Elena Soarez, que foi indicada ao Emmy pela série Filhos do Carnaval (2006-2009) e é autora de O Mecanismo (2018-2019), pode render uma boa polêmica.
Como foram escolhidos os filmes de abertura e de encerramento?
LG: É sempre complicado, pois só exibimos esses dois longas. O resto do festival é composto pela mostra de curtas e, claro, pelas mesas, painéis e debates. Então, é preciso escolher bem. E tem quem fique com receio de exibir com a gente, pois não querem perder o ineditismo e, com isso, a chance de exibir em um outro festival com mostra competitiva. Por exemplo, tínhamos negociado com um filme uruguaio, mas como vai passar na Mostra de São Paulo, acharam melhor retirar. Vamos atrás do possível, portanto. Na sessão de abertura, será exibido Ilha (2018), que ganhou o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Brasília do ano passado. Ele nos foi recomendado. Como esse será um FRAPA de resistência, ter um filme com um protagonista negro era importante para nós. E pra fechar, tínhamos cogitado o Democracia em Vertigem (2019), da Petra Costa, que acabou entrando antes na Netflix. Se o festival fosse um mês atrás, seria ele. Outro que estava no nosso radar era o Marcelo Gomes. Queríamos trazê-lo, e tínhamos cogitado o Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), que está completando dez anos, e tem toda a sua estrutura calcada no roteiro. Só que quando pedimos para a distribuidora, ela nos respondeu: “ok, mas vocês não preferem passar o novo dele?”. Foi assim que conseguimos fechar com o Estou me guardando para quando o carnaval chegar (2019), que teve sua estreia no Festival de Berlim desse ano. Ou seja, a curadoria pode ser meio torta (risos), mas sabemos bem que tipo de filme queremos.
Você disse agora que esse é um festival de resistência. E para 2020, já estão com planos?
LG: Se a ANCINE deixar e não ocorrer nenhum apocalipse nesse governo – que é algo que pode acontecer a qualquer instante – o FRAPA 2020 vai acontecer, com certeza.
MM: Falando sério, independente do apocalipse ou não, em momentos de crise a gente se agarra e se abraça mais do que o normal. É quando está todo mundo com medo, se perguntando se vai ter trabalho ou não, é a hora de você se qualificar e fazer novos contatos. E é isso que o FRAPA é, um lugar de qualificação e de contatos. É por isso que estamos mais fortes do que nunca. Estamos nos unindo, para resistir e reagir. Não importa o que for preciso fazer, preços promocionais, vamos dormir nas casas dos amigos, mas um jeito vamos encontrar para continuar. Se a indústria seguir, por mais problemática que esteja, a tendência é aumentar ainda mais. Vamos repensar o lugar, a quantidade de pessoas, os próprios convidados. Mas vai acontecer, e vai ser maior. É o caminho natural.
LG: Tenho um sonho antigo, não sei se um dia vai acontecer. Mas o que gostaria é que o FRAPA durasse não menos de uma semana, mas nove dias, passando filmes diariamente, e mantendo esses momentos de troca. Pro roteiro não ficar só no mercado, mas abrindo para todo mundo, cinéfilos e curiosos. Para que o público venha ver filmes que sejam focados no roteiro e possam entender melhor o trabalho do roteirista.
Sobre a mostra competitiva de curtas, como é feita a curadoria? E a premiação é bem diferenciada, não?
LG: É muito raro no Brasil encontrar festivais que cobrem pela inscrição. Lá fora é mais comum, mas aqui, não. Então, essa é uma peculiaridade nossa, é até uma maneira de filtrar, pois não temos uma estrutura grande. E cobramos apenas R$ 20, cerca de US$ 6, o que é muito pouco. Mas muita gente deixa de inscrever por causa disso. Mesmo assim, recebemos cerca de 200 inscritos de todo o mundo. Antes, a maioria vinha do exterior, mas nesse ano deu uma virada. Tanto que, dos doze que acabaram selecionados, 10 são brasileiros e apenas 2 vieram de fora – curiosamente, ambos são iranianos.
MM: Até acontece em longas, mas em curtas é mais frequente que o autor do roteiro seja também o diretor. Então, quando temos um curta em que o diretor e o roteirista são pessoas diferentes, esse é completamente esquecido. No FRAPA é o contrário, e todos os prêmios são para o roteirista. O principal é o de Melhor Roteiro, mas há também o de Melhor Personagem, Melhor Diálogo, Melhor Cena, Melhor Título e Melhor Final, além do Júri Popular. Não tem prêmio de Melhor Filme, por exemplo.
LG: A ideia é que não interessa a qualidade técnica do filme, e sim o que se pode deduzir a partir do roteiro. A curadoria é externa, não somos nós que fazemos. Mas estamos sempre muito próximos. É difícil debater o roteiro vendo apenas o filme. Claro que, se o roteiro for bom, mas o filme ficou meio tosco, não vai entrar. Tem que ter essa harmonia. Antes, na inscrição se enviava o roteiro junto. Agora, não, é mais simples. O que importa é o roteiro que está na tela.
Pra terminarmos, esse ano tem uma novidade, que é o FRAPA Lab. O que podem adiantar sobre isso?
LG: Vamos começar devagar. É só o primeiro passo nesse sentido. Os dez finalistas de cada categoria – que inclui roteiros de longa, curta e série de televisão – apresentam um pitching pra todo mundo que está participando. No mesmo dia, ficamos sabendo quais são os melhores. Os vencedores deste concurso, os três primeiros colocados, portanto, irão fazer um LAB com a Xenia Rivery e com o Aleksei Abib. Eles vão receber uma consultoria especial. No futuro, torcemos para que se torce algo maior. De repente, um evento à parte. Vamos ver. Quem sabe com todos os participantes. Com mais aporte, tudo pode ser possível. É o nosso objetivo.
(Entrevista feita ao vivo em Porto Alegre em junho de 2019)
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