Na década de 1960, na França, a cidade de Ivry-sur-Seine ergueu a Cité Gagarine, um conjunto habitacional no subúrbio de Paris. Os prédios, batizados em referência ao cosmonauta soviético, foram inspirados nos ideais comunistas de inclusão e acesso igualitário à modernidade. Aos poucos, a pauperização da periferia fez com que o lugar fosse habitado principalmente por pessoas negras, árabes e descendentes de imigrantes, incapazes de pagar os altos custos parisienses. Embora o lugar transbordasse de culturas, os prédios foram progressivamente abandonados pelo Estado, até atingirem uma situação precária, culminando na demolição.
Fascinados por esta história, os diretores Fanny Liatard e Jérémy Trouilh criaram um curta-metragem com a mesma premissa em 2015. Depois, seguiram para o formato do longa-metragem, evocando novamente a história real através de um misto de fatos e fantasia. Em Gagarine (2020), o adolescente Yuri (Alséni Bathily), abandonado pelos pais, cresce nos prédios populares enquanto sonha em se tornar astronauta. À medida que percebe o fim iminente da Cité, começa a construir uma cápsula espacial capaz de levá-lo para longe.
O resultado chamou a atenção do maior festival do mundo, Cannes 2020, que o selecionou para a mostra competitiva embora não tenha realizado um evento presencial. Agora, o público brasileiro pode assistir à bela combinação entre drama, romance e ficção científica através do Festival Varilux de Cinema Francês, disponível nos cinemas em dezenas de cidades brasileiras. Confira a nossa conversa com os cineastas:
Por que decidiram adaptar o curta-metragem em longa-metragem?
Jérémy Trouilh: A ideia veio bem rapidamente. Quando fizemos o curta-metragem, em 2015, estávamos restritos ao formato de 15 minutos, mas a história deste jovem que não pretende abandonar seu conjunto habitacional mereceria mais tempo. Havia muito a explorar dentro dos motivos que o impediam de partir, além da descrição dos habitantes daquele lugar, que no fundo constituíam a sua família. Queríamos ter tempo para mergulhar no contexto do personagem e do local. Desde aquela época, pensávamos na possibilidade de um formato mais longo, e começamos aos poucos a amadurecer a ideia do longa-metragem baseado neste personagem principal, também na Cité Gagarine. Tivemos a sorte de receber uma ligação dos produtores pouco tempo depois da exibição do curta-metragem, quando nos perguntaram se existia a intenção de expandi-lo para o longa. Nós concordamos rapidamente em partir para esta aventura que demorou cerca de quatro anos entre concepção, produção, filmagem e finalização.
A derrubada da Cité Gagarine representa uma queda do ideal comunista na França?
Fanny Liatard: Na verdade, Ivry-sur-Seine é uma cidade comunista até hoje, então não sei se eles ficariam contentes de escutar isso! Mas de fato, os anos 1960 foram o período da utopia comunista, quando havia um cinturão vermelho ao redor de Paris. Os subúrbios apresentavam uma força política, especialmente comunista, muito forte. Este tipo de arquitetura é bastante representativo deste pensamento, e a demolição dos espaços pode ser lida como a queda das utopias. Aquele foi o momento da esperança de inclusão, modernidade e acesso ao progresso por todos os segmentos da sociedade. Realmente demos alguns passos atrás neste aspecto, e precisamos reinventar os modelos de vida em comunidade.
O conjunto habitacional repleto de imigrantes sintetiza as periferias da França contemporânea?
Jérémy Trouilh: Os bairros populares na França são conhecidos pela mistura de origens, e acreditamos que essa seja uma força impressionante. Não queremos fechar os olhos às dificuldades inerentes a estes lugares, onde durante décadas foram colocadas as pessoas mais vulneráveis, tampouco ignoramos a diversidade social. No interior de Paris a pluralidade se reduzia aos poucos porque esses moradores eram afastados aos subúrbios, infelizmente. No entanto, percebemos a diversidade cultural enquanto uma força inestimável, e queríamos valorizá-la no filme. Dentro da Cité Gagarine, praticamente todas as pessoas têm uma cultura dupla; elas se combinam e ajudam umas às outras.
Como determinaram o tom entre o realismo social e os aspectos fantásticos?
Fanny Liatard: Este foi o maior desafio do projeto: encontrar o tom correto. Muito rapidamente, decidimos nos concentrar neste lugar, e sabíamos que existiriam incursões de magia, fantasia e mesmo de ficção científica misturadas ao realismo social. Durante a escritura, filmagem e a montagem, nós nos perguntamos o tempo inteiro como estabelecer um equilíbrio entre estes dois campos. Algo que nos ajudou foi pensar que toda a visão espacial provém dos olhos de Yuri, nosso protagonista. É ele que, no início do filme, manifesta uma forte paixão pelo espaço. Este imaginário ocupa uma parte cada vez mais significativa da trama, até transbordar e invadir o conjunto habitacional inteiro. Esta foi a premissa que guiou o nosso trabalho.
Por que decidiram combinar atores experientes com jovens que nunca tinham interpretado antes?
Jérémy Trouilh: Sempre fizemos isso nos nossos curtas-metragens. Gostamos muito da ideia de combinar pessoas que nunca atuaram, podendo trazer certa espontaneidade e naturalidade, ao lado de atores experientes. Esse encontro sempre provoca situações muito férteis. Para Yuri, decidimos de imediato que queríamos encontrar um jovem sem experiência de atuação, um rosto novo, entre 16 e 17 anos de idade. Além disso, entre os atores franceses conhecidos, com esta idade, poucos correspondiam ao perfil de Yuri. Foi um processo bastante longo na escolha de elenco. Durante seis meses, uma diretora de elenco nos ajudou neste processo, e Alséni Bathily respondeu a um panfleto distribuído na escola onde estudava. Ele nunca tinha cursado teatro, nem feito cinema, mas tinha uma presença excepcional em frente às câmeras. Ele tem um corpo forte de adulto, mas um olhar de menino. Era tudo o que procurávamos no personagem.
Por que contam esta história pelo ponto de vista dos jovens, ao invés dos adultos que viveram o ápice da Cité Gagarine?
Fanny Liatard: Através deste filme, havia a intenção de trazer um olhar diferente às periferias. Na França, a maioria dos filmes e das reportagens sobre as periferias se concentra na questão da violência. Estes problemas estão presentes, é claro, mas também existem outros aspectos importantes a considerar nestes locais. Quando você é um adolescente crescendo num conjunto habitacional pobre, você tem toda a vida pela frente. Mesmo assim, vários desses garotos limitam suas ambições, porque acabam incorporando os preconceitos sociais. Queríamos mostrar que, para nós, essa adolescência tem uma riqueza ímpar. Passamos bastante tempo na Cité Gagarine, conhecendo diversos jovens que nos falavam de seus sonhos e planos para o futuro. Eles constituíram uma grande fonte de inspiração. Além disso, Gagarine também representa um conto de passagem à idade adulta. Uma das questões que mais nos interessavam era: como nos tornar adultos sem perder os sonhos da infância?
Como viveram a situação particular do “selo Cannes 2020”?
Jérémy Trouilh: Foi uma experiência bastante curiosa, tendo o filme selecionado dentro de um festival que não aconteceu de fato. Mesmo assim, esta foi uma conquista excepcional: ter o primeiro longa-metragem da carreira selecionado em Cannes constitui uma recompensa importante, que contribuiu para chamar bastante atenção ao filme. Ele foi exibido em mais de 40 países, e viajou por todas as partes. Existe uma frustração, é claro – nós teríamos adorado estar no Brasil neste momento. Temos a esperança de que a situação melhore e ainda seja possível acompanhar Gagarine, passeando livremente por todos esses países. Mesmo assim, o mais importante é saber que as pessoas estão assistindo ao filme. Essa é a nossa maior alegria.