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Imagine uma ilha de mais de 30km de extensão, coberta de areia por todos os lados, e habitada apenas por uma pessoa regularmente, além de centenas de animais. Essa é Ilha Sable, na costa do Canadá, onde a bióloga e cientista Zoe Lucas reside há 40 anos. Ao descobrir essa história, a diretora Jacquelyn Mills ficou fascinada pela experiência da mulher reclusa, e decidiu construir o documentário Geographies of Solitude (2022), vencedor do prêmio Caligari, do prêmio Ecumênico e do prêmio CICAE Art no Festival de Berlim 2022.
Ao invés de fazer um filme sobre Zoe, ou sobre a história da ilha, preferiu embarcar numa viagem sensorial a respeito deste espaço. Filmando sozinha na maior parte do tempo, em película 16mm, ela acompanhou a rotina de cavalos, insetos, seres vegetais e microscópicos, descobrindo a riqueza existente num local praticamente intocado pelo homem — apesar dos pedaços de lixo que insistem em chegar à costa da ilha. Em paralelo, Mills promove experiências de revelação de película utilizando materiais orgânicos que vão da areia ao estrume. O resultado é deslumbrante — leia a nossa crítica.
Nós conversamos com a autora a respeito deste projeto singular, antes de sua primeira projeção no Festival de Berlim:

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A diretora Jacquelyn Mills no Festival de Berlim 2022. Foto: @Berlinale

Como define o conceito de “geografia da solidão”?
Na verdade, foi a ideia de solidão que me levou a fazer esse filme. A descoberta de uma mulher que dedicou a vida inteira ao meio ambiente, e o trabalho ambiental com o ecossistema da Ilha Sable realmente me surpreendeu. Eu mesma tenho uma relação muito profunda com a solidão. Passo muito tempo sozinha na natureza, então admiro bastante a escolha dela. 

Como propôs a ideia do filme a Zoe Lucas? Ela aceitou de imediato?
Zoe é uma pessoa muito reclusa. Por sorte, tenho um amigo próximo que a conhece, e me apresentou a ela. Ele mostrou para ela meu último documentário, In the Waves (2017), então pude explicar as minhas intenções com o documentário, que abordaria intimamente a vida na Ilha Sable. Ela aceitou, e me senti honrada e privilegiada que ela tenha topado servir de guia para mim, porque isso foi essencial. Eu não conhecia nada sobre o local, não sabia onde estava me metendo! A participação dela foi uma honra por isso. No fim, depois desse primeiro encontro, tudo ocorreu rapidamente: em poucos meses, eu já estava na ilha, filmando.

A imagem segue Zoe o tempo inteiro, mas respeita a intimidade da mulher. Não vemos a vida privada dela, e mal nos aproximamos de seu rosto.
Exato. Era importante respeitar a privacidade dela. Além disso, decidi filmá-la como eu filmaria qualquer elemento ou habitante da ilha. Este não é um “documentário de personagem” tradicional. É mais um apanhado sobre um local, e todos os seus habitantes, incluindo ela. Zoe é um guia, mas não queria que o foco fosse na história dela, e sim no local como um todo. Ela foi uma peça fundamental da narrativa, me conduzindo pelos espaços, pelos animais, mas parte desse direcionamento fica invisível no resultado. Era preciso ter um equilíbrio entre descobrir a ilha, e deixar espaço para o espectador sentir um pouco da experiência de morar neste local há 40 anos, através dos olhos dela. No final, é um filme com ela, mas não sobre ela.

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Como determinou sua participação enquanto personagem? Afinal, escutamos você falar e interagir com Zoe.
Essa nunca foi a minha intenção. Não gosto de ficar nos holofotes, e nunca pretendi fazer parte do filme, nem com a minha voz. Primeiro, acabei incluindo minha voz em algumas pequenas partes, porque as cenas não faziam sentido sem as minhas perguntas. Aos poucos, isso se tornou uma parte da narrativa. Percebi que o espectador também vivenciaria a experiência da ilha pelos meus olhos. Eu sou como o espectador, porque também desconheço aquele lugar, também é a minha primeira vez.n Por isso, eu me tornei uma parte do filme, uma personagem, mesmo que essa nunca tenha sido a minha intenção.
Eu também adoro o diretor Alain Cavalier. Fui a uma masterclass dele em 2017, no festival Visions du Réel. Fiquei surpresa, tanto com o trabalho quanto com as palavras dele. Cavalier enfatiza a importância de sempre estar em fase de pesquisa. Você nunca interrompe a pesquisa para começar a filmagem, e sim, filma enquanto segue pesquisando. Isso ficou na minha memória com bastante força. Enquanto eu fazia o filme, a pesquisa se tornou parte da jornada, do processo. Por isso, na fase de edição, acabei incorporando as cenas em que participo. Além disso, se tivesse me programado para fazer isso com antecedência, não teria sido pesquisa! 

O quanto dessa estrutura surgiu de um roteiro prévio, e o quanto decorreu da abertura ao acaso?
Sei que muitas pessoas fazem documentários dessa maneira, com um roteiro fechado. Não trabalhei dessa maneira: não tem argumento, não tem roteiro fechado. O processo foi intuitivo. Grande parte do trabalho consistiu em me abrir às surpresas que a ilha apresentava, conforme passava dias por lá, e me despir de preconceitos. Quando algo me impactava e me inspirava, eu seguia essa pista. Esse foi o processo, na verdade. Nunca soube como o filme seria até terminar de montá-lo, para dizer a verdade. Nos cortes finais, eu ainda olhava e estranhava: “Então o filme é assim? Veja só!”. 

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Você fez muitas viagens à Ilha Sable sozinha. O que isso implicou em termos da estrutura para captar imagens, sons, trabalhar com a luz e a película?
Foi um processo exigente e rigoroso, especialmente porque eu estava filmando em película 16mm, que além de ter um material pesado, fisicamente, exige uma logística específica para garantir que toda a película imprimirá direito, e que não vou terminar com um rolo de imagens pretas! Precisei montar um método de trabalho de disciplina quase militar, em termos de organizar a película, preparar tudo o que eu queria filmar, na ordem que eu precisasse. Era importante garantir que os equipamentos estivessem prontos na hora exata, e que tudo ficaria protegido da areia. As imagens noturnas foram outra coisa que eu não tinha pensado em fazer. Eu levei uma câmera digital comigo por precaução, caso não conseguisse filmar em película por algum motivo. É tão trabalhoso chegar à ilha Sable que, caso algo acontecesse com a película, eu precisava garantir que teria maneiras de filmar algo.
A câmera digital estava disponível como backup. Por acaso, ela tem a capacidade de filmar à noite. Comecei a fazer alguns testes à noite, e só então percebi como esse lugar é mágico de madrugada. A possibilidade de observar a ilha por uma perspectiva totalmente diferente, em outra atmosfera, resultou numa bela surpresa. Também nunca pretendi filmar sozinha, mas confesso que foi apropriado ao título do filme! Na última viagem que fiz à ilha, levei comigo Scott Moore, um colaborador. Ele trouxe muito ao resultado, porque é um artista fenomenal. Na última vez, eu queria ter a liberdade de não me preocupar tanto com todas as partes de estrutura e produção. Ele operou a câmera dessa vez.

Quando decidiu fazer todas as experiências com a película, aplicando areia ou estrume?
A linguagem experimental estava presente desde o início do conceito. Essa foi uma das razões pela qual decidi filmar em película: eu queria experimentar a revelação com materiais orgânicos, algo que seria possível apenas com a película. Tudo isso era apenas um teste. Uma grande artista experimental me apresentou às técnicas de filmagem não agressivas ao meio ambiente. Então fiz minhas primeiras experiências de revelação com cranberry e alga marinha. Depois continuei, e fiquei obcecada com todas as maneiras de fazer cinema que a natureza permite. Também experimentei com os sons e os microfones de contato. Esse trecho ganhou vida própria. Além disso, a curiosidade de Zoe é contagiosa: ela tem tamanho interesse em todas as formas de vida na ilha que eu também fui ficando curiosa com estas maneiras de envolver técnicas naturais na confecção do filme, corroborando a preocupação ambiental dela.

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Para Zoe, o documentário representava apenas uma oportunidade de mostrar o trabalho dela? Ela se sentia parte de uma obra de arte?
É difícil para mim falar em nome dela. Ao mesmo tempo, sinto que Zoe foi uma verdadeira colaboradora, embora nunca tenha se preocupado com a imagem que eu passaria dela, ou de que maneira ela seria filmada. As fronteiras entre ciência e arte não pareciam fundamentais para ela. Mesmo assim, acabou sendo uma parceira, e isso é perceptível no filme. Essa foi a verdade: ela acabou determinando os rumos da narrativa, embora jamais tivesse essa pretensão. Parte desse envolvimento passa despercebido, porque está incrustado nos detalhes: seja um ninho de aranhas que eu jamais teria percebido, ou a maneira como a luz reflete melhor em alguma parte da ilha. São percepções possíveis apenas a alguém que mora há muito tempo lá. 

Qual é o papel de trazer um filme sobre a intimidade a céu aberto para um festival presencial, que ainda luta para sair do espaço fechado dos lockdowns?
Essa é uma ótima pergunta. Estou muito tensa, porque o processo pareceu realmente íntimo para mim, e me acompanhou de perto durante alguns anos. Então, o fato de compartilhar isso com o público me coloca numa posição vulnerável, mas este é o tipo de medo que é importante enfrentar, enquanto artista. Eu também fico empolgada de compartilhar com o público a experiência de ficar nesse lugar. Foi uma jornada tão profunda para mim, pessoalmente, que se alguém se sentir tão comovido com este espaço quanto eu fiquei, enquanto estava lá, já terá sido uma grande conquista. Estou ansiosa por isso. É um momento delicado para qualquer artista, e tenho certeza de que muitos cineastas se sentem da mesma maneira.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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