Em 1965, Geraldo Sarno dirigiu um dos documentários mais marcantes do cinema brasileiro: Viramundo, média-metragem que analisa o fluxo migratório de homens nordestinos rumo ao Sudeste do país. Desde então, nunca deixou de filmar o Estado da Bahia, onde nasceu, e de se focar nas relações de força entre habitantes, jagunços, cangaceiros e migrantes.
Aos 81 anos de idade, ele apresenta na 23ª Mostra de Tiradentes o excepcional Sertânia (2020), história sobre a vida de morte de Antão (Vertin Moura), nascido no sertão, mas que vive nas grandes cidades do Sudeste antes de retornar à Canudos mítica em busca de compreensão sobre a morte de seu pai. Durante a viagem, conhece o cangaceiro Jesuíno (Júlio Adrião) de quem se aproxima, criando uma relação paterna que culminará em sua morte. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre o projeto:
Qual são as implicações de retratar o cangaço nos dias de hoje, em pleno século XXI?
Veja, a essência das questões colocadas neste filme poderia ser tratada em outro universo, não precisaria ser o universo do cangaço. O que me interessa ali são os temas tratados. Eu abordo o cangaço porque é um universo próximo do meu conhecimento, da minha sensibilidade. Isso vale não apenas para o cangaço, mas para o sertão. Como trabalhei durante muitos anos fazendo documentários sobre o sertão, e pelo fato de ter nascido no sertão da Bahia, tenho uma compreensão do homem sertanejo. Tenho uma visão, um conhecimento e uma familiaridade. Além disso, estudei muito este universo, incluindo o cangaço. Na verdade, transpusemos a trama para o universo do jagunço no sertão na Bahia. Eu vi que com isso a gente ganharia, porque eu tinha feito uma série nessa região, e tinha encontrado ali as locações do filme, o que seria maravilhoso. Já tinha isso na mão, e não precisaria encontrar novamente no Ceará, onde os produtores queriam que fosse filmado. Então não é exatamente o universo do cangaço, e sim, o universo do jagunço.
Mas poderia se colocar estas questões no universo urbano de favelas, de grupos que se chocam, de milícias. Seria possível transportar, caso se tivesse sensibilidade e domínio da linguagem. De certo modo, nós usamos uma língua típica. Como eu nasci no sertão, e devido às minhas leituras, tenho essa forma de falar. Para as gerações novas, penso que soe como algo estranho. As pessoas que fizeram o som no estúdio ficaram muito surpresas com essa maneira de se comunicar. Mas eu tinha o convívio com esse linguajar desde garoto, nas feiras da cidadezinha onde nasci, perto de Conquista. Via isso no dia a dia, na rua. Os meninos falavam assim, as pessoas na feira falavam assim. Essa era a língua: a gente falava “nós enterremos”, ao invés de “enterramos”, por exemplo. Além disso, tinham os livros regionalistas, tinha Guimarães Rosa.
O filme tem uma estética muito especial, com um preto e branco bastante contrastado e luzes superexpostas. Como fez estas escolhas?
Estas definições nasceram em conjunto com o Miguel Vassy, o diretor de fotógrafo uruguaio. Eu tinha uma ideia vaga de fazer em preto e branco no início, e conversei com ele. Isso ainda não estava em definido, mas a questão do sonho combinava com o preto e branco, e as imagens do filme sempre me vinham à cabeça em preto e branco. Eu tinha alguns filmes de referência, em torno do expressionismo alemão. A fotografia de O Gabinete do Dr. Caligari (1920) era uma referência para mim por causa do contraste, com brancos profundos e pretos profundos. A cenografia era distorcida porque se tratava de um sonho, como é também o nosso caso. Mas Caligari foi feito em estúdio, desenhado e construído para o filme. O Miguel me trouxe referências do cinema cubano, especialmente do Titón (Tomás Gutiérrez Aléa). Vimos os filmes e discutimos bastante.
A gente acabou jogando o filme para um contraluz muito estourado que ficou muito adequado, porque a linguagem é essa, com a presença de uma luz permanente invadindo a tela e ajudando a tirar o filme do realismo para entrar no sonho, no delírio. O Miguel, com a luz e o trabalho de câmera, conseguiu traduzir isso no filme. O mesmo vale para a música do Lindembergue Cardoso, que eu tinha em mente desde que comecei a escrever o roteiro. Consegui uns CDs com as músicas dele, e tinha me fixado na Suíte em Dó, que é a música-chave do rastejo de Antão. A imagem básica do filme é o Gavião rastejando com a Suíte em Dó. Essa era a base para o filme começar, e voltamos a essa imagem quatro vezes ao longo da trama.
Por que decidiu incluir tantos elementos de ruptura, como as imagens da equipe se revelando durante a filmagem, e as imagens de arquivo da cidade?
Tem vários sentidos. No caso da equipe aparecendo, esta cena corta a sequência em duas partes. A narração do Gavião explica o confronto deles, dizendo algo como “A equipe se afastou, até parecia teatro”. Mostramos então que, de fato, este é um teatro. A revelação da equipe corta em dois a explicitação de um conceito-chave para o filme: o Cão. O que é o Cão? Na primeira parte desta sequência, quando Gavião e Jesuíno brigam, este último reclama de não receber ajuda de Jesus Cristo nem Virgem Maria, “só o Cão”. É Jesuíno quem lança o tema do Cão. Gavião responde, dizendo a Jesuíno não blasfemar, porque Deus não tem culpa de ambos estarem no cangaço. Para Jesuíno, o Cão representa o Diabo, as forças do mal. Mas depois da sequência, um jagunço mata um soldado e vem a cena da cegueira, com narração do Gavião. Ele dá sua própria visão sobre o Cão, que não é a mesma. Ele diz que o Cão estava ali, na mira das armas, para atirar. Gavião introduz o sentido de que o Cão é quem comanda o cangaço, é quem comanda o soldado. O Cão não pertence mais ao céu, ele está na Terra. Esta cena provoca a cisão em um conceito importante.
A trajetória de Antão também passa pela busca do pai, pelo desejo de retornar às raízes e pelo despertar político sobre a pobreza do povo.
Ao retornar à Canudos dos mortos, ao reino das sombras do passado dele, Antão assume a consciência real das coisas. Ele presencia os fatos e descobre as circunstâncias exatas da morte do pai. Esta morte deslancha o processo de consciência e de conhecimento dele. Por isso, Antão paga o preço, porque o conhecimento implica num preço a pagar. Este princípio está ali. Na verdade, a questão de Sertânia não é a morte de Antão, mas o retorno dele à memória. Ele volta ao ponto de onde dispara o processo de memória. Na memória se encontra o conhecimento. Ele viveu essas questões enquanto menino, e precisa se desvendar. Esta é uma viagem em busca da memória. Neste sentido, é um filme bergsoniano, sobre memória e História.
Este projeto possui imagens e um ritmo particular, que devem ter tornado difícil a viabilização.
Eu não sou produtor do filme. O produtor é a Cariri Filmes, da Bárbara Cariry, e são eles quem cuidam disso. Não sou conhecedor deste universo, não tenho tempo nem energia para mexer com isso. A Bárbara é uma excelente produtora, que cuida de tudo isso. Sei que é cada vez mais difícil um filme desses sair. É preciso dinheiro para comprar tempo de exibição, é um horror. Hoje você paga o mercado para botar o filme. Você não busca dinheiro no mercado, e sim paga o mercado para distribuir o filme. Este é um grande problema, não sei como vamos resolver. Conversamos sobre as estratégias mais apropriadas de lançamento. Não existem mais editais para financiar isso, mas antes eram os editais que nos ajudavam.
Tem acompanhado o trabalho de jovens cineastas com propostas ousadas, como os selecionados em Tiradentes?
Isso me interessa bastante, mas tenho acompanhado pouco porque não é fácil encontrar esses filmes e ter a oportunidade de vê-los. Eu vejo sempre que encontro, mas não tenho conhecimento extensivo disso. Eu já me mexo menos, e as coisas que ainda estou fazendo me ocupam muito. Tenho mais um projeto de filme. Isso me cansa, não tenho a mesma energia de antes. Por enquanto, tenho ideias vagas para este novo projeto, mas sem definições. Gostaria de trabalhar um roteiro que ainda não está muito claro. Eu trabalharia talvez no universo do sertão. De certa maneira, esta seria a continuação da análise do homem brasileiro. Tenho ideias vagas sobre isso. Ainda não sei se seria contemporâneo. Talvez seja no universo urbano, no sul do Brasil, ou no Nordeste, no universo rural. Preciso ver como armar isso, porque é cada vez mais difícil fazer cinema. Você não pode errar muito hoje: não pode trabalhar durante meses num projeto e depois perder o projeto por estar inviável. É preciso trabalhar com alguma viabilidade, com a possibilidade de ser feito.
O projeto de Sertânia passou pela mesma decantação?
Não. Sertânia demorou muito para ser feito, e estava pronto desde 2003 como ideia. Mas o projeto nasceu pelo meu envolvimento com o sertão. Queria fazer algo especificamente dentro deste universo que concentra ideias importantes para mim, e onde eu sinto que transito com mais facilidade. Então era razoável trabalhar nisso. Agora, eu tenho um corte. Gostaria de fazer algo intermediário antes de partir para algo pessoal, ou seja, provavelmente basear essa ideia em algum escritor de sertão, um escritor baiano ou mineiro. Guimarães Rosa é sempre uma boa possibilidade devido à grande quantidade de bons textos que publicou. Ele tem textos maravilhosos, como as novelas de “Corpo de Baile” (1956). Nem diria que se trata de textos atuais: eles são permanentes, são eternos. As temáticas trazem uma reflexão permanente sobre o homem brasileiro. Aquilo não tem data. Eu fico atraído pela tentativa de algo mais factível, que não demore muito e seja possível fazer – mesmo eu sabendo que isso exigiria um dinheiro que não existe no momento. Ainda estou definindo para onde vai.
Você não se guia por experiências específicas que ainda gostaria de ter na carreira de cineasta?
Não, nada disso. O que existe é a possibilidade de continuar nesta meditação sobre o homem brasileiro. É isso que eu faço: penso sobre o homem brasileiro, sobre o que ele é. Faço isso desde Viramundo, desde sempre, tendo o sertão como centro. O sertão é o meu centro. Saltar para outro centro seria um desafio. É claro que já filmei, documentalmente, outros centros, então conheço um pouco. É claro que existe no urbano brasileiro a presença do sertão. São Paulo possui um caráter sertanejo evidente, por causa dos milhares de sertanejos e nordestino que vivem ali. Existem bairros inteiros habitados por sertanejos, eu inclusive já filmei isso. Então a trama poderia ser lá, poderia ser em São Paulo. Poderia ser em Osasco, um município industrial onde existem índios nordestinos. Existe uma comunidade inteira de indígenas baianos, dirigida por uma cacique mulher. Mas este seria um desafio. O sertanejo, o índio, o operário, são figuras que vivem às bordas, mesmo que o operário esteja se liquefazendo.
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