Fábio Furtado é fotografo e videomaker, além de ter estudado Letras. Pedro Jezler, por sua vez, é graduado no Curso Superior do Audiovisual da Escola de Comunicação da USP e tem pós-graduação em Cinema Documentário pela Fundação Getúlio Vargas. O primeiro acabou indo trabalhar no teatro, sendo um dos fundadores da Cia. Pândega e colaborador da companhia de dança Perversos Polimorfos, além de atuar também como dramaturgo. E foi durante os ensaios de uma nova produção, a adaptação de As Três Velhas, de Alejandro Jodorowsky, encabeçada por Maria Alice Vergueiro, que teve a ideia de chamar o amigo e, juntos, fazerem um registro dos bastidores da montagem. A ideia, despretensiosa à princípio, seis anos depois se transformou no documentário Górgona, estreia de ambos como realizadores cinematográficos. E o filme, que chega agora aos cinemas, foi o tema principal da conversa que tivemos com eles. Confira!
O que os motivou a dedicar um filme à atriz Maria Alice Vergueiro?
Pedro Jezler: A ideia, de início, não era essa. Quando começamos a filmar, nossa intenção era propor um olhar sobre um grupo de atores, unidos num mesmo trabalho. Ainda é um pouco disso, aliás, mas não era especialmente sobre ela quando começamos. Essa transformação aconteceu durante as filmagens. Começamos a perceber que estávamos sempre de olho nela. Ela era a personagem central, e quando nos demos conta, a transição foi natural. Muito antes de tomarmos a decisão consciente, já estávamos privilegiando mais ela do que o conjunto.
Vocês juntaram um material registrado ao longo de cinco anos para fazer o filme. Qual foi a maior dificuldade que enfrentaram nesse período?
PJ: Foram cinco anos de filmagens, sim, mas não contínuos. Esses registros foram feitos de modo espaçado, somente quando a peça estava em cartaz. Então eram algumas semanas, depois parava por meses, daí voltava para mais alguns dias. Enfim, seguíamos o ritmo deles. E viajávamos com a equipe, também. Se surgia uma apresentação em Brasília, por exemplo, íamos juntos. Acompanhamos, praticamente, todas as sessões. O que aconteceu foi que a montagem foi cruzada com as gravações, íamos fazendo ao mesmo tempo. Seguimos filmando, mesmo quando as coisas já estavam encaminhadas num sentido. Só que fomos mudando o rumo do filme, e nos vimos obrigados a promover essas mudanças também na estrutura. Ou seja, não foi difícil, mas foi trabalhoso.
Como foi manter o filme vivo por todos estes anos?
Fábio Furtado: Sinceramente, não teve um esforço especial para manter o filme presente durante todo esse tempo. Ele continuou simplesmente porque estava vivo. O fazer do dia a dia alimentava o próprio fazer. É por isso que dizemos que não demorou seis anos, percorreu seis anos (cinco anos de filmagens, mais um de montagem e finalização). Ele precisava desse tempo. Se não fosse assim, não teríamos o que queríamos. Para mim, foi um prazer fazer dessa forma, além de uma opção também.
PJ: Pois é, não foi difícil. O projeto era feito a dois, com mais dois na montagem. Uma equipe de apenas quatro pessoas, bem pequena, com mobilidade fácil. A gente se dividiu na maioria das funções. O filme todo aconteceu em conjunto, e por isso cada escolha que íamos fazendo era tranquila, como só filmar dentro do teatro, por exemplo. É mais fácil desse modo. Foi tudo muito intuitivo. Era mais o ímpeto de fazer. Foi isso que garantiu a continuidade do projeto, o nosso desejo e a atração que esses atores exerceram sobre nós.
O que poderia e o que não poderia estar no filme? Houve alguma orientação neste sentido?
PJ: Entre nós, sim. A gente discutia bastante cada decisão. Fomos, aos poucos, adotando um método de trabalho. Um coisa que fazíamos era, no final do dia, nos reunir para assistir a tudo que havia sido registrado. Era quando percebíamos o que funcionava ou não. Isso nos permitiu ir sofisticando a abordagem. Havia um contrato implícito da nossa parte para com eles. Era uma coisa que íamos sentindo. E sempre que nos deparávamos com alguma possibilidade de quebrar esse acordo, tentávamos evitar. Estávamos buscando coisas que iriam compor o filme. Para isso, era importante chegar perto desse limite, mas não ultrapassá-lo. A Maria, nesse sentido, foi muito generosa, e todos os atores, em geral, foram receptivos. Foi surpreendente, pois acabaram nos dando muito mais do que havíamos pedido.
FF: Acho que, em grande medida, essa sintonia entre nós partiu de uma confluência de abordagens. A maneira como o Pedro entende fazer documentários se aproxima da minha visão. A gente acredita que tem algo interessante em mãos, e partimos desse pressuposto. A partir disso, observamos o tempo passar e, com cuidado, acompanhamos cada situação se abrir. Basta permanecer, atento e atencioso. O filme ia se mostrando. Claro, não é algo que aconteça por si só, você está lá, participando e fazendo opções.
Houve algum momento em que vocês recearam terem ultrapassado esse limite?
PJ: Teve uma situação, no final do filme. O plano da escada. Estávamos em um teatro que não era adaptado para receber cadeirantes, e a Maria Alice precisou ser carregada escada acima. Foi uma sequência que hesitamos fazer. Havia dúvida, da nossa parte, principalmente, se podíamos ou não mostrar o que estava acontecendo. Era uma passagem violenta, que revela o quanto ela estava exposta. Ela tinha que ser, literalmente, içada, sem elevador, todo dia. Nós nos sentimos desconfortáveis. Mas tinha que filmar, seria importante estar no filme. Por outro lado, não seria uma quebra desse contrato? Foi um take único, só tinha esse registro, o que acabou no filme. Se não filmasse, perderíamos, pois foi no último dia. Hoje estamos convictos que não quebramos aquilo que havíamos nos prometido. É o olhar dela, olhando diretamente para a câmera, no final, que eliminou qualquer dúvida. Deveria ou não termos feito? A resposta está ali, de frente.
Fabio, você é parceiro da Maria Alice Vergueiro há mais tempo. Como funciona o trabalho entre vocês?
FF: É um pouco difícil falar sobre isso. Não sei se alguma vez pensei objetivamente a respeito. Me apaixonei pela Maria, em algum momento, há mais de dez anos. Nos encantamos um pelo outro. É mais ou menos assim que ela funciona, sempre com essa horizontalidade nas relações. Afinal, estamos falando de um monstro sagrado do teatro que, ao mesmo tempo, fala contigo olho no olho. Ela avalia quem está ao seu lado pelo que essa pessoa propõe, e não pelo que se é ou já fez. E a disposição que tem de fazer coisas dessa maneira é impressionante. Continua sendo um enorme prazer trabalhar com ela. É uma figura extraordinária. Ficou claro, numa peça daquela natureza, por mais que fosse tratado com irreverência, que estávamos abordando uma questão fundamental para ela. Muito mais do que para os outros. Era meio natural se aproximar da figura que catalisava aquele grupo.
O Pedro teve um papel fundamental para o nascimento do filme, certo? Como foi feita a divisão de trabalho entre vocês?
PJ: Foi quase que por acaso. O que aconteceu foi o seguinte. O filme foi feito durante os bastidores da peça As Três Velhas, como comentamos. Quando eles estavam ainda na fase dos ensaios, havia essa questão da dificuldade de se conseguir patrocínio, e, se a montagem não saísse, o filme também não iria acontecer. Com isso em mente, o Fábio filmou uma cena e me trouxe para discutirmos juntos o que poderia ser feito a partir daquilo. Esse foi o meu primeiro contato com o projeto. Daquele encontro, nasceu a ideia de fazer um curta a respeito. Só que depois, ao assistir a esse plano com mais cuidado, me sobressaiu a percepção de que talvez tivesse um documentário ali. O que me interessava era a relação desses atores com a câmera. Por isso começamos a filmar quase sem compromisso, tateando a procura de algo. Uma característica dessa situação, concebida desse jeito, é que a dimensão que se preservou até hoje só poderia ser alcançada por essa dupla. Sem o Fabio, não seria possível chegar até a Maria Alice. E sem o Pedro, seria um filme muito diferente. Górgona é, de fato, o trabalho de uma dupla.
Como a Maria Alice Vergueiro recebeu a proposta de vocês?
PJ: Justamente pelo Fabio já ser da companhia, e por ele também atuar como fotógrafo, fazendo as imagens oficiais das peças, a Maria estava acostumada a vê-lo com uma câmera na mão. Ou seja, não teve esse momento de chegar e avisar: “olha, estamos fazendo um filme”. Um belo dia ele me levou junto, e começamos. À medida em que iam nos recebendo, fomos chegando cada vez mais perto, e eles iam deixando. Quando decidimos voltar nossas atenções à Maria, desencanamos do resto. Isso foi importante para nos estimular, escolher o que filmar, e não buscar um registro de tudo. Foi possível reduzir o espaço, nos situávamos apenas no camarim e nas coxias. Fomos tirando, aos poucos, os excessos. Só avisamos o que havíamos feito, quando já estávamos na ilha de edição. Foi quando dissemos: “olha, o filme é sobre você”. E perguntamos se ela queria assisti-lo, e surpreendentemente nos disse que não. Preferiu ver junto com o público. Isso aconteceu em 2016, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Bom, mas ela acabou assistindo, então. E o que achou?
FF: Ela assistiu ao filme várias vezes, aliás, mas sempre na Mostra SP 2016, com o público ao redor. Acho que num primeiro momento ficou meio perplexa, assustada com aquilo. Se ver retratada daquela maneira, depois de tantos anos, é uma experiência muito potente. O que percebemos foi que foi ficando cada vez mais interessada no filme. E também emocionada. Mas choque mesmo foi quando chegou até nós e disse: “vocês fizeram uma coisa que me ajudou muito. Me ver como sou nesse momento”. Isso está mexendo com ela, fazendo-a tomar decisões, fazer outras coisas. Foi muito gratificante.
Havia algum tipo de roteiro? Como foi decidir a linha narrativa do filme?
PJ: Este foi o nosso primeiro longa, e era uma proposta muito arriscada. Não temos nenhum material de arquivo, por exemplo. A gente sabia o que não queria fazer. O resto era lucro. O Fabio era o arquivo, já sabia tudo sobre ela. Nada do passado importava, era só o agora. Se fizéssemos um bom retrato desse momento, estaria nele contido o antes e o depois. É aquilo que explica o personagem. Outra coisa curiosa é que não fizemos nenhuma pergunta a ela durante esses cinco anos. Não houve um único dia em que a colocamos em frente à câmara para uma entrevista. Não houve nenhum tipo de provocação. A gente fazia tão pouco, que eles, os atores, é que começaram a nos propor ideias. Olha que coisa louca! Ao todo, juntamos mais de 100 horas de material bruto, e tudo isso pertencia ao filme. Foram poucas regras, e acredito que Górgona é também resultado dessa liberdade.
O que vocês, enquanto artistas, ganharam com o Górgona?
PJ: Ganhei tudo com esse filme. Foi um trabalho feito fora do esquema. Não dá para enquadrá-lo em nenhum modelo de produção que existe. Isso permitiu passar cinco anos tentando entender até chegar na linguagem exata que a gente buscava. Depois tivemos mais dois anos na montagem, até o ponto ideal. Estávamos convictos de todos os cortes que fizemos. Isso é um privilégio, um processo de desenvolvimento artístico muito raro. Além disso, o filme levanta questões que vão além da linguagem, sobre o que se pode ou não fazer. Foi um processo muito intenso para todos os envolvidos. Uma grande escola e uma grande alegria. E a estreia, agora, vem num momento muito bom. Enquanto estávamos filmamos, tínhamos um pouco a certeza de que seria esse o último trabalho dela. E ela conseguiu superar a todos nós! Tanto que já fez uma segunda peça, também com o Fabio, chamada Why the horse?, e está preparando uma terceira agora. Nesse outro trabalho deles, ela aparecia no próprio velório. Eles escreveram enquanto estávamos montando o filme. Tudo isso acabou gerando algumas questões e motivou o trabalho dela, é claro. Teve um efeito sobre a realidade. Górgona está estreando um ano depois disso tudo, o que também está sendo muito bom, pois não ficou nada casadinho. E só o fato da Maria poder se ver em cartaz, depois de duas peças sobre a morte, tendo encenado o próprio velório… isso me deixa muito feliz.
Por que batizar o filme de Górgona?
FF: Foi meio que casou, sabe? A gente tinha que achar um título. Não podia ser muito descritivo, algo do tipo Maria Alice Vergueiro, um retrato filmado (risos). Também pensamos em As Três Velhas, que é o nome da peça, mas com a nossa mudança de foco meio que perdeu o sentido. Foi o Pedro que escolheu Górgona, e quando sugeriu, achei excelente. Tem uma alusão ao filme, às górgonas, à própria Medusa, aquela que quem olha vira pedra, essa relação que a Maria Alice tem com ela mesma, sua condição atual e o que ela representa. Ela faz graça com relação aos problemas que vive. Mas é um riso ambivalente, uma característica dela, interessante. E se relaciona com esse realismo grotesco e mítico. Como a tradição artística, criativa, em que ela habita, se aproxima dessas figuras ambíguas, estranhas e monstruosas, apontando para algo que não é fácil de definir. E passa pelo filme. Fez sentido, para nós.
O material de divulgação fala que o filme “encara o grotesco da morte oscilando entre o horror e o risível”. Como foi buscar esse equilíbrio?
PJ: Esse equilíbrio está na Maria. Era um retrato filmado, afinal. A questão desse registro tem sempre uma dimensão meio mórbida. Se faz um retrato porque se quer preservar algo que vamos perder, não é mesmo? O retrato contém um pouco essa ideia, quase como uma defesa contra a morte, vamos dizer. E ela tem essa característica. De uns tempos para cá, entrou nessa da morte, e enfrenta frontalmente. É daí que vem essa oscilação entre o pavor da morte e o deboche. É algo do seu jeito irreverente de ser. Quebra o solene, e, ao mesmo tempo, o ridículo que está por trás. É difícil ficar perto dela sem rir. Mesmo quando está falando essas coisas horríveis, como o que passa por ter Parkinson aos 80 anos, dos seus problemas de memória, da dificuldade da mobilidade, ao mesmo tempo está debochando de tudo isso. O grotesco é muito caro à Maria como linguagem. E o filme teve a oportunidade de incorporar isso à narrativa. Quando ela começa a peça, com o véu, se parece com a Morte. E puxamos isso para dentro do que estávamos discutindo. O grotesco é também um pouco da máscara da Maria, o que terminou por inspirar o título.
Qual a relação da Maria Alice Vergueiro com o cinema?
FF: Não posso responder por ela, é claro, mas posso falar sobre o que ela já declarou a respeito. E o que diz é que não foi uma opção não ser atriz de cinema. Não recebeu convites, ninguém a chamava, simples assim. Ela optou por não fazer televisão, por outro lado. Nunca se questiona sobre isso. Faz o que gosta no teatro. Só que isso, ao mesmo tempo, implica várias questões financeiras. Ela ainda quer fazer coisas, tem planos. Agora, o cinema sempre foi uma paixão, diz que adora fazer, mas teve poucas oportunidades. O auge dela nesse meio talvez tenha sido, mesmo, o Tapa na Pantera (2006), que lhe rendeu uma popularidade absurda. Ela fez tanta coisa no teatro, no Oficina, no Ornitorrinco, na Arena, e acabou ficando conhecida por um curta-metragem. Isso é bom e não é ao mesmo tempo, né? Só que ela não tem ressentimentos, ela adora o Tapa! Foi o que lhe permitiu um contato com a moçada, como ela fala, que não seria possível de outra forma. É muito grata por isso. E o fenômeno teatral, ao que ela dedicou uma vida inteira, é muito efêmero. Acontece ali, naquele momento, e depois não existe mais. O alcance é limitado. Mas agora ela tá aí, na tela grande. E isso é para sempre.
(Entrevista feita por telefone na conexão São Paulo / Porto Alegre em março de 2018)
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