Com Greta (2019), Armando Praça lança o seu primeiro longa-metragem, mas o artista está longe de ser um novato no mundo do cinema. Além dos curtas-metragens, Praça trabalhou em diversos longas-metragens nos quais desempenhou funções de assistência, permitindo ficar mais perto dos atores.
Esta experiência pode ser percebida em seu primeiro projeto à frente da direção, um carinhoso estudo de personagens sobre um enfermeiro septuagenário (Marco Nanini) que se relaciona com um homem potencialmente perigoso (Démick Lopes), vivendo escondido em sua casa. Enquanto isso, precisa lidar com a morte iminente da melhor amiga, a artista transexual Daniela (Denise Weinberg).
Durante o 29º Cine Ceará, onde Greta foi eleito o melhor filme do festival, nosso editor Marcelo Müller conversou em exclusividade com Armando Praça sobre o projeto, atualmente em cartaz nos cinemas:
Como foi o trabalho de direção com os atores, especialmente com o Marco Nanini, para que muita coisa não precisasse ser verbalizada?
Eu adoro atores, preciso começar dizendo isso. Trabalhei durante muito tempo como assistente de direção e sempre preferi fazer segunda assistência, por ser a função que fica mais perto do elenco. Ao longo dos anos, consegui desenvolver uma relação mais direta, mais tranquila com o elenco dos filmes em que eu trabalhei, e consequentemente, dos meus próprios filmes. No caso do Nanini especificamente, a gente teve um mês de ensaio, e eu aprendi muito com esta experiência. Ele é um ator da palavra, da dramaturgia, do entendimento, do texto. Ele pensa muito como dizer o texto, ou como não dizer… Aprendi muito com ele sobre como uma pausa, uma respiração ou inflexão podem mudar completamente o sentido do que está sendo dito, e da cena inteira. Tivemos muitas conversas e muitos ensaios de mesa para identificar o Pedro a partir do roteiro.
Na filmagem, eu filmo o personagem que tem a adoração por uma diva. Eu revi todos os filmes da Greta Garbo e fiquei observando como ela foi filmada esses anos todos, pela beleza, pelo magnetismo. Resolvi filmar o Pedro um pouco como a Greta Garbo foi filmada. Por isso esses tempos, por isso os closes. Isso não foi combinado com o Nanini, porque eu não queria que ele buscasse uma aura glamorosa de diva. Eu preferia filmar o Pedro, com a densidade e o realismo dele, mas da maneira que se filma uma diva. Eu fazia planos longos, aproveitando o magnetismo que o Nanini já tem naturalmente. Por isso muita coisa é compreendida sem precisar da palavra. Outro elemento importante é o desejo de jogar para o espectador a responsabilidade de imaginar o que Pedro imagina. Para isso, era necessário o olhar longo, íntimo.
O seu personagem não barganha com o espectador para ter atenção. Ele tem atitudes que passam dos limites. Como construiu esse personagem que foge ao arquétipo?
Eu me interesso mais por personagens complexos que tenham essas duas dimensões. São as figuras que chamam a minha intenção, que me cativam e me comovem. Eu queria um personagem com essa complexidade, ao mesmo tempo que sabia que o homem de um submundo, marginalizado, com atitudes reprováveis, precisaria despertar a empatia do público. Mais do que ter o bem e o mal, eu queria trabalhar as razões que levam o Pedro a passar de limites razoáveis – e as razões são muito nobres. Ele é um homem de 70 anos de idade que quer amar e ser amado, e isso é universal, para pessoas de qualquer idade, gênero ou orientação sexual. Era importante ressaltar a motivação dele, mas também a complexidade.
O hospital costuma ser associado à assepsia, mas no filme ele trabalha pulsões de vida, de morte, pulsões sexuais… Como concebeu estes elementos?
Eu pretendia descolar o filme inteiro um pouco da realidade e criar um universo de ilusão, porque isso tem a ver com o imaginário do personagem em relação à Greta Garbo e todos os filmes que ela fez. Além disso, como a gente pretendia dimensionalizar os personagens, tratando-os com dignidade, eu queria fazer o mesmo com os espaços públicos: o hospital e a sauna. Eu queria olhar para a sauna sem abordá-la como um lugar sujo e promíscuo – é um lugar onde tudo pode acontecer. Eu também queria fugir do hospital como lugar asséptico, onde tudo é polido demais, porque este é um ambiente de tensão, com contato físico grande. As pessoas estão vulneráveis, elas são tocadas, banhadas. É inevitável que haja pulsão sexual ali dentro, por causa da pressão que as pessoas vivem ali. Eu queria olhar aquilo com mais profundidade.
A recepção do público foi muito boa no Cine Ceará, e sequer percebi constrangimento ou escárnio do público pela nudez masculina, ou pelo sexo entre homens, um deles na terceira idade. Você vê com tristeza o fato de isso ainda ser um tabu?
Não exatamente tristeza, mas tenho uma preguiça, sinceramente, de ter que falar sobre esses assuntos ainda hoje. Ao mesmo tempo, sei que isso faz parte do trabalho: se ainda é motivo de incômodo, então vamos falar a respeito. Eu nunca parto do princípio que uma ou outra questão vai ser importante para o filme. Não fico vendo o filme como uma possibilidade de abordar temas políticos e sociais – embora eu não fuja deles, muito pelo contrário. Eu fico concentrado em compreender se estas cenas fazem sentido ou não dentro do projeto.
Mas estou tranquilo em relação às escolhas e às necessidades dessa exposição dentro do filme. Estamos tentando mostrar os personagens da maneira mais íntima e multidimensional possível. Existe um desejo sexual e uma pulsão muito fortes no Pedro. Para mim, seria impossível, seria hipócrita não mostrar o encontro dele com o homem que vai chamá-lo de Greta Garbo! Isso tinha que ser visto, tinha que ser compartilhado. Não fiz para gerar nenhum tipo de comoção, mas se gerar, vamos comprar a briga. Era fundamental que essas cenas estivessem ali.
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