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H6 :: “O hospital é um microcosmo da China atual”, afirma a diretora Ye Ye

Publicado por
Bruno Carmelo

Embora o Festival de Cannes priorize a exibição de ficções, a edição 2021 abrigou a Sessão Especial de um documentário fascinante: H6 (2021), primeiro longa-metragem da cineasta chinesa-francesa Ye Ye. A autora pesquisou a rotina do 6 People’s Hospital em Xangai durante quatro anos. Assim, elegeu alguns personagens e acompanhou suas trajetórias dia após dia, desde a chegada à instituição pública até a evolução de seus quadros e a vida pós-internação.
Assim, criou um comovente retrato humano da China contemporânea, onde ricos e pobres, trabalhadores urbanos e rurais convivem nos mesmos corredores. A câmera convive com estes homens e mulheres de dia e noite, na UTI e na recepção, na madrugada e no dormitório dos médicos. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com a diretora sobre o filme:

A diretora Ye Ye

Por que escolheu este hospital? Ele é representativo do sistema de saúde na China?
No começo, eu desenvolvi um interesse pessoal pelo ambiente dos hospitais, depois de ter sido internada na França. Fiz pesquisas para uma série documental sobre os hospitais, e os produtores escolheram este que é um dos maiores de Xangai. Por ser uma instituição famosa, ele tem pessoas de todos os lugares, não apenas da cidade. Enquanto participava do projeto, pesquisei a situação da saúde na China. É uma organização complexa e variada. Os conhecimentos que obtive durante esta filmagem aumentaram a minha curiosidade para aprofundar o tema num documentário. Então decidi continuar as filmagens dentro deste próprio hospital.

Como a instituição acolheu a produção? Houve restrições às filmagens?
Graças à série de televisão, não tivemos restrições. No início, é verdade que tivemos conflitos e mal-entendidos com alguns pacientes, ao revelarmos o funcionamento do hospital. No final da série, eu já tinha escrito o projeto do longa e me aproximado da mesma produtora, com quem falei sobre a vontade de fazer o filme. A primeira temporada deu certo, o que me permitiu criar uma relação de confiança com a equipe do hospital. Assim, as permissões se tornaram mais fáceis. Por questão de respeito, eu fazia relatórios diários para descrever aos responsáveis do hospital exatamente o que eu tinha filmado. Eles não tinham nada a esconder, e me deixaram mostrar tudo. Obviamente, não foi uma produção fácil, mas não encontrei dificuldades nesse sentido.

H6

Como escolheu os personagens principais, filmados ao longo de meses?
Após quatro anos de pesquisa, decidi fazer um retrato de grupo. Era importante para mim incluir a infância, a juventude, a fase adulta e a velhice, porque apesar desta diferença, eu buscava a coerência entre eles. As diferenças de comportamento não eram decorrentes da idade, mas da situação em que se encontravam. No roteiro, já tinha pré-imaginado retratos. Escrevi personagens ideais: um camponês de tantos anos de idade, um homem idoso e urbano etc. Isso facilitou a busca pelos personagens reais. Há tantas pessoas circulando no hospital que pude escolher exatamente os retratos que correspondiam à minha busca inicial. Para mim, era importante que fossem de idades diferentes, classes sociais diferentes, e que representassem casos clínicos distintos. Em comum, queria descobrir como eles lidam com momentos de risco, encontrando um equilíbrio entre eles. No fundo, eram eles que encontravam as soluções para mim, através de suas experiências pessoais. Em muitos casos, a cura do corpo vinha rápido, mas faltava lidar com o trauma. Os doentes, os familiares, os médicos se reúnem para ajudar à sua maneira, às vezes correta, às vezes inadequada.

Você está muito próxima dos corpos e dos rostos em sofrimento, mas isso não parece alterar o ambiente. Ninguém demonstra constrangimento pela presença da câmera.
Quando escrevi o roteiro, decidi que seria um documentário com estilo de ficção. Queria seguir a vida dessas pessoas ao longo do tempo, ao invés de oferecer explicações minhas. Ao mesmo tempo, precisava que o olhar do espectador se identificasse com o deles, permitindo viver a experiência junto dos pacientes e familiares. A ideia era despertar um questionamento sobre a vida, a morte e o amor. Como reagir às adversidades? Por isso, foi uma escolha deliberada manter certa distância na abordagem com estas pessoas. Na série, eu me tornava muito mais próxima dos pacientes, o que tornava o conteúdo pessoal. Mas decidi que o filme precisava de outro método.
Não queria perturbá-los com a minha emoção. Se eu permitisse que as minhas emoções invadissem as filmagens, isso transformaria totalmente o olhar, e eu preferia uma relação mais pura. A distância também significava respeito. Aos poucos, eles se acostumaram com a minha presença por perto, e me esqueciam. Eu tinha uma assistente para fazer a relação direta com os doentes (eu ficava sempre por trás, sem aparecer). Além disso, os chineses se adaptam muito facilmente às novas realidades, é uma característica nossa. Os personagens se acostumaram muito rápido com a câmera. Assim como deram um voto de confiança aos médicos, também confiaram em mim, sem saber o que aconteceria com as imagens no final. Deste modo, consegui construir um olhar neutro e uma imagem objetiva para o espectador.

H6

Determinou algum limite ético – algo que não filmaria de jeito nenhum, ou precisava filmar com certeza?
Eu seguia as experiências, as ações. Não perturbava a vida deles, apenas convivia com aquelas pessoas. Tudo se passa por essa relação sensível. Quando percebia as pessoas desconfortáveis, parava de filmar na hora, porque não queria constranger ninguém; não era o tipo de olhar que queria produzir no filme. Era um desafio mental constante. Eu ficava junto ao diretor de fotografia, e sentíamos o que podíamos captar ou não. Quando eu tinha emoções muito fortes, de alegria ou tristeza, percebia que estava em conexão com os sentimentos das pessoas filmadas. Se a minha abordagem fosse diferente – de intromissão ou de curiosidade, por exemplo – não funcionaria. Daria para perceber no resultado. Eu tomava muito cuidado, me controlava sempre. Eu precisava ser sensível às histórias deles, sem impor meu olhar às vivências alheias. Foi difícil, mas fiz o meu melhor. Não queria criar mais limites para além desses – se eu criasse ainda mais fronteiras, mais dúvidas, a imagem transmitiria essas incertezas. Segui meus sentimentos e os sentimentos das pessoas. Era fundamental respeitar e honrar a confiança que tiveram em mim.

A edição deve ter sido complexa. O documentário desperta a impressão de ter gerado centenas de horas de filmagem.
Precisei combinar a técnica e a emoção. Primeiro, foram quatro anos de preparação, tanto técnica quanto narrativa – cada indivíduo precisava ter sua história completa filmada, do início ao fim, em separado. Fiz um corte inicial de oito horas, onde cada história era montada de maneira autônoma. Depois, a versão de quatro horas fazia a seleção de alguns personagens. Cheguei à versão de duas horas e meia, onde ficava mais claro o que eu queria dizer através destes segmentos. Também preciso respeitar o ritmo do cinema, e a fluência do filme. Quando encontrei meu montador, entreguei inicialmente a versão de oito horas para ele poder viver com os personagens, sem meu ponto de vista. Ele é um grande profissional, e discutimos sobre a melhor maneira de combinar nossas sensibilidades. Conversamos juntos, e os cortes foram surgindo naturalmente.
Ele tem muito mais técnica de montagem do que eu, e preciso reconhecer isso. O cinema é um trabalho coletivo, e tenho profundo respeito pelas competências dos colegas de equipe. Ao fundo, o processo foi de meditação: quando tinha o material em mãos, precisei compreender o que tinha realmente acontecido, e me preparar psicologicamente para determinar meu ponto de vista a respeito. Revivi uma memória que havia perdido, pelo fato de morar há muitos anos na França. A montagem me permitiu refletir e encontrar uma resposta pessoal às imagens. Espero que os espectadores também possam ter uma opinião própria diante do filme.

H6

Entre a China e a França, como compara os sistemas de saúde e o peso do Estado?
Bom, primeiro veio a experiência de ser hospitalizada na França. O sistema de saúde é bastante complexo, e varia em termos de cobertura. Morando na Europa, eu trabalho durante 20% do meu tempo, e no restante, faço algumas criações mais pessoais e artísticas. Por isso, estou longe de ser rica. Mesmo com um sólido sistema de saúde na França, eu tive que ficar internada por muito tempo, e isso me arruinou financeiramente. É uma situação parecida com aquela do filme. Os pacientes e familiares chineses estão arruinados, não necessariamente por causa do sistema. O camponês que quebrou o pescoço, por exemplo, não tinha qualquer forma de seguro, mas hoje existe uma cobertura específica para os trabalhadores rurais. O problema dele foi singular: ele caiu de uma árvore fora do expediente, então não pôde ser enquadrado num acidente de trabalho. Ao final, ele opta por não fazer a cirurgia arriscada, por motivos que vão além do dinheiro. Ser operado pode implicar na morte durante a cirurgia, e ele escolheu aproveitar seus últimos dias com os filhos.
Os quadros são complexos, e nenhuma decisão é fácil. O senhor idoso tem outra condição: ele tem seguro de saúde e possui um apartamento, mas precisa vendê-lo porque quer garantir um cuidado ainda melhor à esposa no fim da vida. Depois ele vendeu o imóvel e transferiu a esposa para outro hospital especializado, onde pudesse ficar o tempo inteiro com ela. Foi uma escolha. As situações familiares vão além da presença ou ausência de seguro, por exemplo. Para os imigrantes ilegais, a dificuldade é outra, por não poderem apresentar os papéis no caso de uma internação. Ao final, cada um lidou com as dificuldades à sua maneira. Eu aprendi muito com eles. Descobri como agir diante das dificuldades: estas pessoas, às vezes em situações extremas, nunca paravam de lutar e buscar alternativas.
O hospital é um microcosmo da China atual. Percebe-se uma organização pesada em termos de estrutura, mas que se desenvolve com rapidez. Essas pessoas se levantavam todos os dias e encontravam um equilíbrio, mesmo que psicológico, sem fornecer soluções práticas. Talvez os problemas sejam diferentes em outros países e sistemas, como nos Estados Unidos. Mas o que mais me interessava era ver como as pessoas se mantinham firmes diante da doença e dos acidentes. Quero que o espectador veja isso e questione sua atitude diante de mudanças. Cada um poderá encontrar uma resposta de acordo com sua condição e experiência de vida.

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Ao final, a câmera sai do hospital e busca uma praça pública, com pessoas saudáveis dançando e praticando artes marciais. Por quê?
Terminamos com a beleza dos corpos. Vemos os corpos se movendo magnificamente, cada um à sua maneira. Esta é uma metáfora da vida, onde cada indivíduo dança ao seu ritmo. Somos humanos, dotados de formas de expressão diferentes. Queria mostrar a força da vida, sua potência e liberdade. O filme oferece vários retratos coletivos: mesmo estas pessoas na praça seguem a filosofia de um pessimismo alegre, uma melancolia com fundo de felicidade. É possível ver a resiliência da filosofia chinesa, muito forte na China tradicional. Isso nunca mudou. A dança no final se relaciona com a meditação, quando cada um pode se expressar como bem entender.

Como os espectadores chineses e estrangeiros reagiram a este retrato?
Fiquei agradavelmente surpresa, porque percebi que cada espectador tinha seu ponto de vista a respeito, e tinha se conectado com algum personagem em particular. Em Cannes, algumas pessoas me pararam na rua depois da sessão, compartilhando seus sentimentos comigo. Cada um escolheu um herói diferente. Fiquei muito contente, porque a mensagem era essa: é preciso se questionar, fazer escolhas, seja para chegar a uma conclusão ou formular novas perguntas. As pessoas me questionavam sobre o sistema de saúde, sobre a organização social da China contemporânea. Alguns perguntaram minha opinião sobre a política na China, mas respondi que meu tema não era esse, e que podem perceber meu posicionamento através do meu olhar no filme – não tenho nada a esconder.
Mas eles conheceram melhor a vida atual de um chinês. Mesmo eu me esqueço um pouco, pelo fato de morar na Europa faz tempo. Eu sempre me esforço para continuar compreendendo o que acontece no meu país e na minha cultura. Sentia falta disso, e queria que as pessoas pudessem olhar de maneira diferente para a China. Tive conversas ótimas: algumas esperadas, outras totalmente surpreendentes. Algumas pessoas gostaram, outras detestaram, mas isso não me choca. O importante é a reflexão suscitada pela sessão. Aceito todas essas reações.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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