De ascendência curda, Mano Khalil estudou História e Direito na Síria, para depois se aprofundar em Direção Cinematográfica na República Checa. Foi lá onde deu seus primeiros passos como realizador, trabalhando primeiro como cineasta independente e depois como diretor na Slovak Television. Em 1996 – ou seja, há mais de vinte anos – se mudou para a Suíça, e mesmo vivendo num dos menores países do mundo, segue envolvido com novos filmes e despertando a curiosidade e interesse de cinéfilos nos mais diversos países. Como no Brasil, onde veio como convidado a apresentar seu mais recente trabalho, o documentário em longa-metragem ainda inédito Hafis & Mara. A projeção se deu em São Paulo, na sessão de abertura do sétimo Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo, mostra que trouxe para a capital paulista alguns destaques desta cinematografia tão desconhecida entre nós. E, aproveitando a oportunidade, fomos conversar com ele, que falou mais sobre o projeto e também sobre suas inspirações enquanto contador de histórias. Confira!
Olá, Mano. Como você conheceu o casal Hafis e Mara?
Eu sou um cineasta, um diretor de cinema. Em resumo, um contador de histórias. Então, essa deve ser a minha maior preocupação. Todos os dias, a todo momento, a cada instante. Penso que quem assume essa posição, assim como eu, deve se comportar como um caçador, sempre de olho atento para novas histórias. Há situações grandiosas, que chamam nossa atenção de imediato, e, por essas, todos se interessam. Mas há aquelas menores, quase desapercebidas. Essas também merecem ser contadas. Elas podem ser pequenas, mas ainda assim muito tocantes. Foi algo que senti ao ouvir falar pela primeira vez sobre esse artista suíço. Ele não é muito conhecido, nem na vila onde mora. Mesmo assim, trabalha como um louco, todos os dias. Fiquei interessado por essa obstinação, num primeiro momento. Mas quando me aproximei dele e descobri que ele não estava sozinho, que havia uma mulher ao seu lado, e que ela era quase o oposto dele – no comportamento, no modo de ser, de ver o mundo – aquilo mexeu comigo.
Em que momento você decidiu fazer um filme sobre eles?
Então, foi quando finalmente consegui conversar com os dois, mas em separado. Primeiro me aproximei do Hafis, daquela energia toda, que segue pulando, gritando e criando suas obras de arte com mais de 80 anos. Depois ele me levou até ela, e isso foi curioso: foi como para pedir permissão à esposa. Já havia dito a ele que estava fazendo uma pesquisa, não sabia ao certo o que seria, se um filme, um documentário, um curta ou a base para alguma outra coisa. Ele se entusiasmou de imediato, mas, mesmo assim, precisava contar com a aprovação dela. Aquilo me interessou. Ele está sempre pulando, bem como o vemos no filme. É quase um vulcão. Mas quem o controla é ela. Isso não é curioso?
Os dois possuem personalidades bem opostas, e o filme deixa bem claro. Mas elas não seriam também complementares?
Ao me dar conta que havia ali um casal, o que mais me inquietou foi: o quão difícil deveria ser viver ao lado de alguém como ele. Que não está nunca parado, que não possui foco, que está sempre pensando em algo novo, seja uma tela, um projeto, até mesmo uma viagem. E, à medida em que ia aprendendo mais sobre ele, mais o via como uma criança – e crianças precisam ser cuidadas, não é mesmo? Mara fazia tudo por ele. Ele não usa nem celular, para ter uma ideia. Não tem dinheiro, não tem nada no nome dele. Isso era o mais interessante, pois era aquela mulher, tão calma, tão controlada, que dava tudo para ele. Ele seria um típico “loser” (um “perdedor”), como se diz, se não fosse por ela.
Assim que você decidiu que faria um filme sobre eles, como os dois reagiram?
Isso era tudo o que ele sempre quis na vida. Era quase como se a fama tivesse finalmente lhe descoberto – como se um pequeno documentário feito no interior da Suíça fosse deixar alguém famoso (risos). Mas, enfim, ele ficou muito entusiasmado, mesmo sem entender direito o que eu estava pretendendo. Percebia nele essa confusão. Mas, ao mesmo tempo, sabia que, assim que visse o resultado, não iria se arrepender. Agora, com ela foi diferente. Assim que fomos apresentados, ela nem mesmo queria conversar comigo. Tive que ir com muito jeito, muito tato, e também contando com a insistência dele. Acho que ela percebeu que seria mais uma coisa que teria que fazer por ele. Até porque, sem ela, mesmo se tivesse continuado filmando, não seria um bom filme. Era preciso ter os dois lados. Por isso tive que ter muita paciência, e ir aos poucos, trabalhando cada sentimento com muito cuidado, até para não quebrar esse contrato tácito de intimidade com eles.
No filme há muito a ser desvendado, com vários pontos de virada. Essas foram descobertas feitas durante as filmagens ou você já sabia que queria abordar estas questões?
Não, tudo foi sendo trabalhado à medida em que íamos conversando. O que tinha muito claro é que seria preciso conversar com os dois, ouvir suas histórias, pois cada um tinha uma parte daquele todo que me interessava. Somente com os dois é que o quadro estaria completo. E, à medida em que iam se abrindo comigo, foi possível ir abordando assuntos cada vez mais complexos. Começamos falando sobre arte, sobre a vida deles, suas trajetórias, e quando vimos estávamos discutindo sobre amor, sobre a satisfação deles com suas histórias. Durante uma vida inteira, por quantos papeis nós passamos, não é mesmo? Assim foi com eles. Tiveram momentos de muita felicidade, outros de profundo desespero e solidão. Mas se encontraram, e ficaram juntos, à despeito de qualquer coisa.
Realmente, após assistir ao filme, é difícil apontar qual dos dois é mais complexo.
Havia um enigma muito forte naqueles dois. Afinal, por que estavam juntos? O que os unia? Não é só interesse, ou mera companhia, pois ambos vão além destas questões. Há algo mais profundo ali – ou, ao menos, havia. Ele passou sua vida tentando fazer arte, criando, e nunca foi reconhecido. Não foi bem-sucedido em nada que tentou, seja no trabalho, na família, acredito que nem mesmo consigo próprio. E ela também abriu mão de muitas coisas. Ela tinha uma vida interessantíssima em Paris, onde morava quando se conheceram. E abriu mão de tudo para ficar com ele. Pois bem, são águas passadas. E agora há esse filme, Hafis & Mara, que é quase um tributo a eles, um registro de suas histórias.
Hafis e Mara chegaram a assistir ao filme? Como reagiram?
Foi algo muito tocante. Eles viram, sim, o filme, mas num primeiro corte. Assim que terminamos uma montagem inicial, convidamos os dois a irem nos encontrar em Berna, que é mais ou menos próximo de onde moravam. Eles vieram, e era uma sexta-feira, se não me engano. Foi uma sessão muito bonita, apenas para os dois e nossa pequena equipe. Algo muito privado. Dava para ver nos olhos deles a emoção, realmente não imaginavam o que havíamos feito. E o timing, então, foi crucial. Pois, apenas passou o fim de semana, e na segunda Mara baixou no hospital. Ela chegou a ficar internada um tempo, dois ou três dias. Deu tempo de visitá-la e, no meu laptop, mostrar outras cenas e imagens que ela queria rever. Depois disso, morreu. Em sua cama, muito calma. O filme é dedicado a ela.
Hafis & Mara foi exibido na Sessão de Abertura do 7oPanorama do Cinema Suíço Contemporâneo no Brasil. Como você recebeu esse convite?
Foi muito legal. Essa não é a minha primeira vez no Brasil, já apresentei outros longas aqui, e a recepção aos meus filmes sempre foi incrível. Adoro vir para cá. Sabe, moro numa pequena vila, tudo é muito tranquilo por lá. E sair do aeroporto e dar de cara com São Paulo, essa cidade gigante, é uma experiência e tanto. Ainda que a Suíça e o Brasil sejam dois países muito diferentes, essa oportunidade de troca me interessa muito. Afinal, seria uma catástrofe se todos os lugares do mundo fossem iguais, não é mesmo? E há coisas semelhantes, também. Por exemplo, mesmo sendo um país muito pequeno, na Suíça se falam quatro línguas diferentes. Ou seja, também somos multiculturais. Há uma diversidade. Enfim, não quero romantizar minha visão do mundo e do futuro, mas pelo que tenho visto por aí, sei que é possível viver uns com os outros. Mara respeitava seu marido, mesmo os dois sendo tão diferentes. Ela era feliz com ele. Era a escolha dela. E acho que aí está o grande exemplo do filme.
(Entrevista feita na conexão Porto Alegre / São Paulo em maio de 2018)