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Helen :: “O Bixiga é uma ferida exposta no meio da capital”, afirma André Meirelles Collazzo

Publicado por
Bruno Carmelo

A história de Helen (2020) surgiu muito antes do próprio filme. O diretor André Meirelles Collazzo, frequentador assíduo do bairro do Bixiga, em São Paulo, conheceu Dona Maria, uma senhora que vende espetinhos de carne na rua, e a neta Agatha Helen, criada por ela. Ele viu a garota crescer e ficou interessado pelas histórias das pequenas pensões do bairro, repletas de luta e violência.

Assim, decidiu contar a narrativa pelo ponto de vista da menina. Escolhida entre 400 meninas, Thalita Machado interpreta a protagonista que sonha em comprar um presente de aniversário para a avó, apesar de não ter dinheiro para isso. Em paralelo, tenta conquistar o coração da mãe biológica e do pai ausente.

Marcélia Cartaxo ficou encarregada do papel da avó, em mais uma composição comovente. Este carinhoso e duro mergulho na realidade paulistana foi um dos melhores filmes brasileiros que vimos no último ano – leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com o cineasta sobre o projeto, que chega aos cinemas em 17 de junho:

 

O diretor André Meirelles Collazzo e Thalita Machado no set de filmagem de Helen. Foto: Divulgação

 

Considera a cidade de São Paulo, ou o bairro do Bixiga, como personagem do filme?
Com certeza. No primeiro tratamento do roteiro, quando submeti ao edital de desenvolvimento do ProAC, ele se chamava 13 de Maio, 242, que este era o endereço da pensão onde filmei, e onde a Helen real mora. O Bixiga sempre esteve muito forte no meu imaginário. Conforme o filme foi evoluindo, e depois que conheci a Thalita, ele virou o nome da personagem.

 

De que maneira quis valorizar os espaços?
Eu tinha em mente a ideia de mostrar o Bixiga real. Sou descendente de italianos e meu pai me levava às cantigas quando jovem, me mostrava aquilo que o Hobsbawn chama de “tradição inventada”, porque talvez não tenha nada de italiano de fato ali. Esse era um bairro preto, então chega a ocupação italiana, que constrói suas casas. Os pretos são retirados mais uma vez. Depois vem uma imigração nordestina nos anos 1980. As pessoas começam a morar nestas casas do tamanho de um carro popular. Minha maior dificuldade foi lidar com o espaço real, sem alterá-lo, porque é realmente bem pequeno. Optei por algo claustrofóbico, com câmeras travadas. Um amigo viu um corte e pensou que fosse estúdio, mas isso era proposital. Era difícil encaixar a câmera.
Frequento o Bixiga há muitos anos, e vi a Helen crescer. Frequento todos os aniversários da Dona Maria e da Helen, ali na calçada. Minha filha é amiga da Helen. Tentei fazer uma câmera claustrofóbica para abordar esta realidade nada lúdica. Não existem as fachadas do século XIX com o bairro tombado, lindo. Tem cantinas de todos os preços, inclusive algumas caríssimas, e as pessoas que te servem moram naqueles espaços pequenos. Ao mesmo tempo, é um espaço labiríntico. Por isso eu comecei e terminei com um plano-sequência. Queria ter feito mais planos-sequência, que me interessam muito, mas tem uma diferença entre o meu desejo e a realidade do orçamento! Não tivemos um orçamento baixíssimo, mas como era minha primeira direção, vi na prática aquilo que sempre me diziam: dirigir é tomar decisões. Às vezes você abre mão de ter a steadycam num dia para fazer algo importante no dia seguinte. As crianças transitam por aqueles lugares labirínticos.
Conheço outros lugares ainda mais complexos, que nem parecem o Bixiga. São camadas de moradia sem fim. Esse é o metro quadrado mais caro de São Paulo, se você considerar o que é oferecido pelo que é pago. Pagam-se taxas absurdas para poder estar perto do Centro, da Paulista, da rotatividade de trabalho das cantinas. Ou você mora num lugar pequeno, insalubre, mas próximo do trabalho, ou você mora na periferia, a duas horas do trabalho. O Bixiga pelo menos oferece escola, hospital público, a Achiropita que ajuda com projetos sociais.

 

Helen

 

O que te levou a apostar na personagem da Helen para comandar a ficção?
Eu comecei minha trajetória no teatro. Fui assistente da Quito, uma diretora da EAD. Eu era tão ruim como ator que ficava bom perto dela. Ela sempre me dizia que eu era do cinema, não do teatro. Ficava incomodado com isso na época, mas ela estava certa. Ela tinha um espaço no Bixiga, o Nova Dança. Depois fiquei um tempo no Zé Celso. Quando a Quito saiu, eu assumi o espaço com o José Fernando Peixoto Azevedo, e a pensão da Dona Maria era colada com o Nova Dança. A gente saía dos ensaios e ela estava lá, vendendo churrasquinho e cerveja. A gente sentava, conversava com ela, e a Helen estava sempre no colo da Dona Maria.
Naquela época, adaptei Mitologia dos Orixás ao teatro. A Helen tinha cinco anos, e ficava louca com os ensaios, nunca saía de lá. A Dona Maria dizia: “Se ela está com os moços do teatro, tudo bem”. Um dia decidi contar a história das duas. O pai da Helen tinha 14 anos, e a mãe dela tinha 13 anos quando ela nasceu. Isso é comum no Bixiga. As amigas da Helen ou ficaram grávidas nessa idade, ou morreram, ou foram cooptadas pelo tráfico. A Dona Maria era a avó que fazia de tudo pela neta, inclusive pagava o estudo para a menina: a Helen se formou com o dinheiro do churrasquinho da avó. A Helen, a Dona Maria, o Bixiga e a pensão atravessam a minha formação artística, então mesmo sem fazer parte daquele universo, sentia que era legítimo contar essa história. Tinha uma intimidade muito grande com ela. Até hoje a Dona Maria me chama para os aniversários, e a Helen me liga sempre. Tudo o que eu escrevia, mostrava em seguida para a Helen, e a consultava. Entre ter a ideia e fazer o filme, passaram-se sete anos.

 

Como Marcélia Cartaxo se apropriou desta personagem?
A Marcélia é uma gênia. Ela foi muito generosa, e chegou se apropriando de maneira potente. Primeiro, tive que achar uma criança que desse conta dessa trajetória. No início, fiquei em dúvida se contava essa história do ponto de vista da avó ou da neta. Optei pela neta, porque queria contar a história daqueles que ainda não foram vencidos. Não queria fazer um filme intelectual, como o Férias (2019), que estreou na Mostra de Tiradentes, e sim um filme popular, capaz de se comunicar com o universo que eu via por lá. A melhor pessoa para chamar era a Marcélia: precisava de alguém muito experiente, até por estar lidando com uma menina de nove anos de idade. A Marcélia foi meu porto seguro, e também o da atriz.
Demorei muito para achar a Thalita: testei 400 meninas em escolas públicas. Queria encontrar uma menina que já tivesse o Bixiga nas veias, e não uma atriz. Peguei uma garota que nunca fez nada, mas quando a Thalita chegou para o teste, fiquei uma hora conversando com ela, foi impressionante. Ela parecia uma aluna minha da pós-graduação em roteiro. No primeiro dia, depois de dez minutos, ela perguntou a motivação da personagem naquela cena específica. Fingi que ela não tinha me surpreendido, mas ela era impressionante. A Thalita se entregou totalmente.
A Marcélia também vem da experiência de teatro desde muito nova, sendo descoberta quando jovem, ganhando o Urso de Prata em Berlim pela Macabéa. Era preciso ter alguém que entendesse aquilo pelo que a Thalita passaria. No primeiro dia de filmagem, por mais que ela tivesse tido quatro meses de preparação, ela viu a 13 de Maio fechada, além de oitenta figurantes, caminhão de luz. Peguei uma cena fácil para ajudar a Thalita, para ela entender como funcionava. Por mais que seja cinema de baixo orçamento, sempre tinha muita gente – às vezes passava de cem pessoas. Então a Marcélia ajudou muito neste processo.

 

Marcélia Cartaxo em Helen

 

O filme foge tanto do miserabilismo quanto da denúncia social. Como delimitou este retrato sociopolítico?
Quando fiz meu mestrado, o orientador virou para mim e disse: “Ou você vira USPiano e trava, ou vai escrever um texto que a sua mãe vai entender. O que você quer fazer?”. Eu queria que minha mãe entendesse. A maior questão era fazer um filme em que eu pudesse falar daquelas questões urgentes, mas precisava encontrar a forma. Contei com uma grande equipe: a Luciana Batista me ajudou muito, o Willem Dias na montagem, o Alziro Barbosa na fotografia. Todos os figurantes são moradores de lá. A minha primeira referência de cinema era o Pedro Costa, mas se eu tivesse seguido por esse caminho, teria virado um filme totalmente diferente. Talvez eu caísse nessa armadilha: poderia virar um grande filme, que talvez entrasse em outros festivais, mas ele não chegaria nas pessoas que eu queria atingir.
O Bixiga é uma ferida exposta no meio da capital, e ninguém olha para aquilo. Existe uma precariedade e uma exploração de trabalho absurdas. As pessoas trabalham naquelas cantinas sem carteira assinada, sem nada. Não é uma denúncia, mas as pessoas trabalham para pagar o almoço, para pagar aqueles quartinhos. Existe uma exploração dos donos das pensões, inclusive. Queria mostrar tudo aquilo de um jeito que eu pudesse sensibilizar quem precisava ser sensibilizado. Os meus pares já estavam sensibilizados há muito tempo: quem olha para a questão de habitação em São Paulo já conhece o problema. Eu precisava levar para outros olhos.
A propósito, montei um clipezinho com Marília Mendonça no meio do filme. Me acusaram de tirar o candomblé da Bahia e levar para São Paulo, o que seria absurdo. Mas eu conheço a cidade: a maior concentração de terreiros fica em São Paulo. Um livro do Reginaldo Prandi aborda justamente isso. Tentei criar códigos que pudessem trazer alívio a este contexto. Ao mesmo tempo, quando a minha família assistiu ao filme, me disseram que era “cabeça demais”. Para meu irmão e meus sobrinhos, o ritmo era lento. Não sei qual vai ser o público do Helen. Não sei se fiquei num meio do caminho bom ou ruim. Vou descobrir agora que ele está solto para o mundo.

 

São fundamentais as apostas nestes “filmes do meio”, que não correspondem nem às comédias populares, nem às obras herméticas para festivais.
Concordo com a ideia do filme do meio. Quando comecei a desenvolver, admito que o objetivo era algo mais estético. Fui transformando este filme, tendo consciência do que estava fazendo, quando comecei a falar “Ação”. Filmei 55 minutos que ficaram de fora. Fui vendo que os personagens tinham uma curva específica, e eu precisava respeitar o que se encontrava ali. Eu tinha uma cena de oito minutos, travada no interior da pensão. Aquilo era Pedro Costa. Percebi um conflito entre meu virtuosismo de direção e a história de uma menina tentando comprar um estojo de maquiagem. Optei pela personagem, e fui fazendo esse desenho. No pitching final do Prodecine 1, um dos pareceristas da Ancine disse isso: era um filme capaz de fazer carreira tanto em festivais quanto com o público.

 

Helen

 

As violências são mais sugeridas do que reveladas. Por que decidiu não filmá-las?
Tomei muito cuidado com isso. Além de se tratar de uma criança, acho que às vezes é mais forte não mostrar do que mostrar. A Helen era blindada pela avó, mas muitas amigas dela sofreram violência. É muito comum ali no bairro: enquanto os pais saem para trabalhar, alguém se oferece para tomar conta das crianças. Aconteceu algo horrível: uma mãe chegou mais cedo do trabalho, e passou para pegar o filho. Ela pegou o homem abusando de um filho do vizinho, e descobriu um sistema de abuso ali. O homem fugiu com a esposa, vestindo a roupa do corpo. Abandonou a loja que tinha, tudo. Eu estava ali, vi aquilo de perto. Saquearam tudo. Veio a polícia, mas nunca encontraram o cara. As crianças ali estão expostas a uma violência brutal.
Fiquei pensando: como retratar isso sem cair no sensacionalismo, sem ultrapassar os limites éticos, sem expor os atores? Para a cena do assédio no corredor, fiquei 40 minutos conversando com ela. A Helen já teve várias amigas que passaram por isso. Sentamos, conversamos. Precisava mostrar isso, porque fazia parte da história da Helen, mas sem explorar. Na hora de filmar, eu decidi explorar a linguagem em termos de enquadramento e áudio. A Helen real correu muitos riscos. Hoje ela tem uma clínica de estética, e representa uma exceção total ali dentro. Ela poderia ter sucumbido como praticamente todas as crianças, e então reproduzir padrões de violência, entrar para o tráfico etc.
Essas cenas são super difíceis na hora de filmar. Tentei ser o mais delicado possível com essa história. Eu conheço a Wallace Ruy desde o Teatro Oficina. Ela mesma me ajudou bastante a trabalhar os diálogos. A cena em que ela diz que alguém tomou um choque lá dentro aconteceu de verdade, eu vi aquilo. Depois, descobriram que era caso de assédio, mas o responsável inventou esta história do choque quando a criança saiu berrando. Minhas amigas militantes entenderam na hora que se tratava de um abuso sexual.

 

As paredes da cidade têm a marca de “Marielle vive”. Qual era a importância de situar a trama durante este atual governo?
Estamos acompanhando uma destruição de todas as conquistas sociais dos últimos 16 anos. O governo tem um nível de fascismo contemporâneo que demoramos a compreender. As pessoas que vivem nestas condições insalubres são aquelas que mais sofrem com isso. Hoje temos uma motociata, um absurdo impensável! A Marielle entrou porque aquilo já estava na cidade. Eu simplesmente escolhi e coloquei a câmera. O filme não fala sobre o período Bolsonaro especificamente, mas o Bolsonaro ganhou as eleições enquanto a gente filmava. Depois da eleição dele, a gente ainda tinha três dias de filmagem. Foi uma grande ressaca. Estamos acompanhando a destruição de um país, tanto simbólica quanto material. É assustador.

 

O diretor André Meirelles Collazzo e Thalita Machado. Foto: Divulgação

 

Como foi o longo processo até o lançamento oficial?
Foi um processo de muita expectativa e ansiedade. Eu estava rodando os festivais quando a pandemia chegou. Hoje moro em Portugal, mas na época, ainda morava no Brasil. Deveríamos ter uma sessão para 400 pessoas aqui em Portugal, e no final a Cinemateca permitiu fazer para só 26 pessoas. A gente tinha a data de abril para lançar o filme, então mudamos a data, mudamos a estratégia toda. Também não queríamos dizer às pessoas: “Vão aos cinemas!” em plena pandemia. Existia uma indefinição nos festivais de cinema online, que a gente não sabia se iam acontecer, e quando. No final, não tivemos a experiência da sala de cinema cheia, vibrando com a equipe.
Ao mesmo tempo, temos contratos, direitos de comercialização. Vamos colocar o filme no cinema, e logo depois, nas plataformas e no VoD. Alguns amigos meus estão indo aos cinemas porque às vezes só tem cinco, seis pessoas na sessão. Em paralelo, os distribuidores estão tomando muito cuidado com os filmes lançados em salas. Para quem não se sentir seguro de ir ao cinema, em breve tem o VoD também. Espero que o filme se comunique com o maior número possível de pessoas, que levante reflexões e permita às pessoas olharem para o Bixiga de outra maneira.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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