Fernanda Pessoa se define, acima de tudo, como uma artista visual. Desenvolvendo seu trabalho através do cinema documental e de videoinstalações, ela vive atualmente em São Paulo, mas já morou no Arizona, Buenos Aires e Paris, onde realizou mestrado em Audiovisual da Sorbonne Nouvelle. Após ter participado de exibições internacionais e de exposições individuais e coletivas, ela está agora nos cinemas com seu primeiro longa-metragem, o documentário Histórias que Nosso Cinema (não) Contava, exibido – e premiado – em mais de vinte festivais pelo Brasil e exterior. Apontado pela Cahiers du Cinéma como um “brilhante trabalho de montagem”, o filme surgiu a partir de uma pesquisa de mais de 150 filmes – dos quais foram selecionados 27 títulos – que marcaram um dos gêneros mais característicos da produção cinematográfica brasileira: a pornochanchada. E foi sobre essa sua obra que conversamos com exclusividade com a cineasta. Confira!
Olá, Fernanda. Tudo bem? De onde surgiu esse interesse pela pornochanchada nacional?
Comecei a me aproximar dessa filmografia quando trabalhava na Filmoteca da FAAP, em SP. Estive durante um ano e meio por lá, período em que pude me aprofundar no acervo do Maximo Barro, que montador de vários filmes da Boca do Lixo. Havia um material fotográfico incrível por lá. Foi quando entendi o que é essa coisa que chamam de “pornochanchada”. Quando estudamos, na faculdade, a abordagem sempre é muito superficial. Só que todo esse material me deu outra visão. Sinto que os filmes que falam sobre essa época falam de repressão, dos presos, da luta armada, temas que são super importantes, mas sentia falta de falar do poder econômico, da ascensão da classe média, e como isso se dava dentro de uma ditadura! Puxa, era uma época em que estava rolando uma revolução sexual no mundo inteiro. E isso só fui encontrar nestes filmes.
E a ideia por trás de Histórias que Nosso Cinema (não) Contava? Como esse projeto começou?
E Agora José? (1979) foi um filme fundamental para esse estudo. Nele vemos cenas de tortura, ambientadas nos porões da ditadura, um conteúdo muito forte. Tem até a encenação da morte do Vlado! Quando vi esse filme, que é super erótico, mas também um pouco sádico, fiquei com aquilo na cabeça. “Tem alguma coisa aí que a gente não entendeu”, pensei. Comecei a pesquisar, e com isso comecei a entender várias coisas que geralmente não são retratadas no cinema. Foi um trabalho intenso, que me tomou mais de cinco anos, para você ter ideia. Comecei a trabalhar na FAAP em 2010, e no documentário, propriamente, em 2012.
A pesquisa é impressionante. O filme é um grande trabalho de edição e escolha de imagens, me lembrou bastante o Cinema Novo (2016), do Eryk Rocha…
Acho que essa comparação é inevitável. São dois filmes que fazem uso de um período específico do nosso cinema. Fiquei sabendo que o longa do Eryk existia quando estava em Cannes. Naquela mesma época, começava a me envolver com a etapa final do Histórias que Nosso Cinema (não) Contava. Mas as montagens são muito diferentes. Acho ótimo ser comparado com ele, é ótimo, mas uma coisa específica do meu filme é que a gente nunca olha para a pornochanchada com um olhar politico e histórico, apenas como entretenimento. E são também documentos históricos. Estavam falando sobre coisas importantes sobre a nossa sociedade. O Cinema Novo é um dos cânones da nossa cinematografia, e penso que deveríamos olhar para a Pornochanchada sob a mesma ótica.
Você pesquisou mais de 100 filmes, até chegar aos quase 30 que estão em cena. Como foi feita essa seleção e a montagem?
Quando decidi que queria fazer esse filme, fiz uma tabelinha e levantei todos os longas produzidos no Brasil nos anos 1970. No máximo até 1980. Filmes que saíram em 1968, 69, também ficaram de fora. Era esse o meu recorte. Porque os 1970 foram a era de ouro da Pornochanchada. Em 1981, por exemplo, já rolava sexo explícito. Destes filmes que levantei, identifiquei quais poderiam ser vistos, que estavam em condições, e fui atrás para assisti-los. Falei com o Canal Brasil, com pesquisadores, enfim, tentei ir atrás de todos. Assisti a mais de cem títulos, e destes selecionei quase trinta. Foi um processo de escolha muito baseado também no que consegui encontrar. Outros até apareceram depois, mas acabaram ficando de fora. E era importante também a negociação com os detentores dos direitos, pois só foram incluídos aqueles que liberaram o uso. Foi tudo muito direito, não há nada sem permissão ali.
E a escolha dos temas a serem abordados? Política, economia, sexo, relacionamentos, nacionalidade… como foi a escolha do que valia ou não ser discutido?
Quando comecei a fazer a pesquisa e decidir que filmes entrariam, decidi não fazer um roteiro. Minha proposta era permitir que estes longas me revelassem algo. Várias coisas que achei que iria poder abordar, de um jeito ou de outro, acabaram não entrando – como a censura, por exemplo. Até fiz uma exposição no MIS, em São Paulo, especificamente sobre a Censura nessa época, foi uma videoinstalação. Mas os filmes daquela época não falavam disso. Um outro tema que acabou crescendo, por outro lado, foi a questão do milagre econômico. Este é um dos assuntos principais da pornochanchada. E a gente esquece disso. Tem textos, acho que o Jean-Claude Bernardet escreveu sobre isso, até, que fala que vários filmes tratavam dessa tentativa de ascensão da classe consumista. O que acabou não dando certo, pois no final só serviu para aumentar as diferenças sociais. No entanto, isso foi algo que só percebi ao começar a assistir aos filmes, pois logo fica evidente nas suas tramas o quanto essa era uma questão essencial para aqueles realizadores. O que era esse tal de milagre econômico? Quais as consequências e desdobramentos em nossa sociedade? Êxodo rural, também era algo que não sabia ter muita relação e percebi que era absurdamente presente.
O filme termina com uma grande homenagem, reconhecendo cada um dos filmes selecionados. Houve alguma dificuldade inesperada nesse processo?
Nossa, foram muitas, e bem como você diz, a grande maioria completamente inesperada! Ficamos muito mais tempo que poderia ter imaginado trabalhando apenas para conseguir os direitos destes filmes. O primeiro corte foi feito com cópias encontradas na internet. Quando começamos a procurar pelos originais, já sabíamos até as minutagens que iríamos aproveitar. Teve gente que nos recebeu bem, foram simpáticos à ideia, e muitos cederam até de graça. No entanto, o termo “pornochanchada” até hoje levanta esse medo de ser uma abordagem pejorativa. Deixei claro, sempre que possível, que não haveria nenhum julgamento de valor. Nosso objetivo era mostrar o que era esse movimento e oferecer uma luz sobre estes filmes. Vários produtores nem os tem mais, não sabem onde foram parar. Foi uma busca engraçada, confesso. Os filmes do David Cardoso, por outro lado, estão na Cinemateca Nacional, ele mesmo nos disse que estavam lá, e mesmo assim não conseguíamos acesso! Levamos seis meses para acessá-los! Ou seja, temos muitas histórias como essas, dava para fazer um outro documentário só com esses bastidores (risos).
Enquanto resultado, acredita que o Histórias que Nosso Cinema (não) Contava possa mudar a percepção que a maioria do público nacional tem em relação à pornochanchada?
Olha, espero que sim. Quando comecei o documentário, foi muito com esse intuito, de que as pessoas o assistam e também aos filmes, agora com um novo olhar. Não estou falando que são filmes geniais, maravilhosos, mas tem muita coisa boa, sim. Só que ficaram com esse rótulo. Puxa, representam uma década da nossa história! É preciso tratá-los como patrimônio nacional! É muito triste. Na própria Cinemateca Nacional, muitos nem estão lá, não demonstram interesse por estes trabalhos. Quero que as pessoas vejam e queiram ir atrás, ver o filme em questão que estamos abordando, para que possam ir atrás, reencontrá-los com o público. Afinal, apesar deste ser um filme de montagem, um documentário, ele é muito acessível. Gostaria que as pessoas o vissem e adquirissem uma nova perspectiva. Tanto da pornochanchada como dos anos 70 no Brasil.
(Entrevista feita por telefone na conexão Porto Alegre / São Paulo)
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