Márcia Léllis de Souza Amaral, ou apenas Tata Amaral, como se tornou conhecida, é uma das mais importantes realizadoras do cinema brasileiro, em atividade desde o final da década de 1980. Nascida em São Paulo, chegou a passar nos vestibulares de Jornalismo e de História, na USP, mas acabou frequentando as aulas – como ouvinte – do curso de Cinema, na ECA. Lá conheceu o professor, pesquisador e roteirista Jean-Claude Bernardet, dando início a uma parceria que permanece até hoje. Bernardet é responsável pelo roteiro de alguns dos principais trabalhos de Amaral, como Um Céu de Estrelas (1996), premiado nos festivais de Bogotá e Havana, Através da Janela (2000), premiado nos festivais de Recife e Miami, e Hoje (2011), grande vencedor do Festival de Brasília em 2011 e exibido há pouco, quase dois anos depois, no circuito comercial brasileiro. E foi sobre esse mais recente trabalho e também sobre seus projetos futuros que a cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Depois de trabalhar com personagens femininos muito fortes em seus longas anteriores, o que lhe atraiu na história de Vera, personagem de Denise Fraga em Hoje?
Tudo começa no texto, e o que me atraiu primeiro foi o livro do Fernando Bonassi. Somos amigos há anos, e ele sempre me proporciona o desafio de adaptar, cinematograficamente falando, suas histórias. Esse nosso processo bem particular foi definido pelo Jean-Claude Bernardet como ‘dramaturgias concentradas’, pois nos preocupamos em explorar ao máximo situações mínimas. Isso é algo que gosto muito. Meus filmes são ambiciosos dentro de espaços limitados, o sentido épico deles se dá de forma internamente, no âmago dos personagens. Outra coisa que me chamou atenção foi o período em que a história do Hoje se passa, pois fala de coisas importantes do nosso passado sem ser um flashback. Nosso foco é mostrar, aos poucos, como essas pessoas chegaram até o dia de hoje.
Teve alguma passagem particular do livro que mais lhe chamou atenção?
O momento determinante do Prova Contrária, o livro do Bonassi, ao menos para mim, foi o capítulo em que a personagem feminina, a Vera, fala sobre a saudade que sentiu do marido, tendo pensado até em se matar. Então ela descreve como seria seu suicídio. Isso me tocou muito, foi o que me fez querer adaptar essa história para o cinema, pois passei pela mesma situação. Este sentimento de ausência, de perda, do reencontro com o amor me é muito comum. Esse aspecto pessoal falou muito alto comigo. A Vera é um pouco de mim também.
Hoje faz parte de uma trilogia pessoal, e não óbvia, sem ligações com seus trabalhos mais conhecidos. É isso mesmo?
Isso não foi algo planejado, foi algo que percebi depois, olhando para trás. Quando fiz Antonia (2006), pensei: “pronto, tá feito, agora posso fazer qualquer coisa”. Isso porque essas meninas cantoras, que superavam suas dificuldades em busca do sucesso, se encaixavam dentro desse universo de mulheres fortes, como a Dalva, de Um Céu de Estrelas, e a Selma, de Através da Janela. As filmagens de Antonia terminaram em março de 2005, e em abril li Prova Contrária pela primeira vez. As coisas acabaram ficando mais pessoais para mim quando, enquanto escrevia o roteiro, minha mãe morreu. Durante o velório dela, fiquei sabendo de uma história muito estranha sobre o meu pai, já falecido há anos. Acabei largando tudo e fazendo um filme só sobre esse episódio, que é o Trago Comigo (2009), que virou série de televisão. Mas este anseio, essa vontade de iluminar o passado, até para poder seguir adiante, continuava. E é nisso que o Hoje se encaixa, ao lado deste seriado e do O Rei do Carimã (2009), documentário feito para o projeto DocTV, de São Paulo. Entao são duas trilogias, na real, e as duas já terminaram. Estou pronto para ir em frente.
A estrutura do roteiro de Hoje é quase teatral. São duas pessoas conversando por quase duas horas num mesmo ambiente. Como foi transformar isso em cinema?
Eu só penso em cinema. Não consigo pensar como teatro, e para me adaptar para a televisão é um esforço enorme. O grande desafio cinematográfico nesse projeto era encontrar uma expressão imagética para a ideia do passado, sem recorrer aos flashbacks. Queria tudo no agora. Foi como cheguei à ideia das projeções. O que aparecem nelas não é necessariamente passado, são mais expressões das emoções dos personagens. Meu objetivo é encontrar uma expressão que justifique cada ideia a ser explorada, isso é o que me atrai. Não acho esse filme teatral, ainda que reconheça nele elementos fortes de dramaturgia, como texto e elenco e um único espaço. Mas o resultado está além dessa simplificação. As soluções visuais são fundamentais. Busco atuar em equilíbrio com a locação, com o diretor de arte, de fotografia. Só quando todos estão em harmonia que a coisa, de fato, acontece. É o conjunto, assim que se faz cinema. E depois, o processo da decupagem, já é natural em mim, não é só mais uma etapa, e sim algo que acontece o tempo todo.
Como foi o trabalho com a Denise Fraga e com o César Troncoso?
Foi uma coisa mágica, realmente de muita confiança. Nos encontramos e de imediato veio a certeza de que estávamos em boas mãos, uns com os outros. A química entre todos se estabeleceu em ambos os lados da tela. E para mim isso era fundamental. Os dois, principalmente, se colocaram nas minhas mãos, se tornaram disponíveis para o que eu havia pensado. Ambos são intérpretes de grande envergadura, são maravilhosos. Tanto a Denise quanto o César eram nossas primeiras opções, nem foram precisos testes. O que fizemos, e bastante, foram ensaios. No início pensava que os personagens deveriam ter em torno dos 60 e poucos anos. Mas a trama deveria se passar em 1998, que é quando a ação acontece, quando havia sido recém decretado o estado de viuvez, as indenizações haviam começado a serem pagas. Estávamos no calor da lei, entre 1996 e 1999. Para localizar essa história no tempo os personagens deveriam ser, necessariamente, mais novos. Isso acabou sendo decidido antes, ainda durante o roteiro. Desde o princípio queria que o Luís fosse estrangeiro, latino-americano. Isso não estava nem no livro, nem no roteiro, foi uma interpretação minha que achei que valeria a pena!
Como foi a passagem pelo Festival de Brasília de 2011, onde Hoje foi consagrado como o grande vencedor?
Brasília foi incrível, uma experiência única. Quero muito poder mostrar o filme para a presidente Dilma e para a Comissão pela Verdade. Mas ter estado lá, na capital do país, ao lado de todos aqueles ministérios, foi algo maravilhoso. E foi também uma loucura, a cópia chegou no dia da exibição, tinha chegado direto da Itália – lá é muito mais barato o processo, pois não precisa passar pelo negativo, acabou sendo nossa única solução. Isso foi devido a uma acerto com um dos patrocinadores, a Prefeitura de São Paulo, que exigia uma cópia em 35mm. E quem teve que ir buscar foi o diretor de fotografia, que a trouxe na bagagem! Foi tudo muito ajustado, mas nada falhou, e o resultado foi fabuloso.
Vocês imaginavam que a recepção seria tão calorosa?
O filme foi exibido no final do festival porque a Denise Fraga estava em cartaz no teatro, então era o único dia que ela tinha disponível. E o público nos recebeu de braços abertos. Mas tantos prêmios foi algo que ninguém poderia prever. É claro que você entra num festival querendo ganhar, mas o importante é mostrar o filme e torcer para que ao menos as pessoas gostem. Após a sessão estávamos todos em estado de graça, ninguém acreditava no que tinha acontecido.
Esse clima já vinha desde as filmagens?
O clima foi ótimo, apesar de estarmos tratando de um tema ser tão pesado. O filme foi feito com muito pouco dinheiro, foi tudo muito suado, batalhado. Investi todo o meu salario pelo Antonia para pagar os roteiristas, e só em 2010 é que recebemos o investimento necessário para podermos filmar. Foi tudo muito no risco. Precisávamos do prêmio do festival até para poder pagar os custos! Mas a vitória, mesmo, já era ter chegado ali. O resto foi lucro e uma grande e feliz surpresa!
Mesmo tão premiado e com atores conhecidos, Hoje sofreu para ganhar o circuito comercial. Por quê?
Olha, pode ser complicado, mas não é mais difícil do que achar dinheiro para que o filme aconteça em primeiro lugar. Tudo é uma questão de planejamento. Algo importante para essa demora é que só conseguimos fechar com uma distribuidora em junho do ano seguinte, meses após a passagem por Brasília. E tivemos problemas com negociações anteriores, com a liberação de recursos da Ancine. Mas essa espera, infelizmente, é normal no Brasil. Estou já com dois filmes prontos e ainda procuro recursos para finalizá-los, pois do contrário não consigo espaço para exibi-los. É tudo muito difícil para quem quer fazer arte no nosso país. É uma guerra diária, mas a gente não se dá por vencido.
O que Hoje tem a dizer ao público?
Hoje é, antes de mais nada, uma história de amor. E esse sentimento é universal. É um filme que fala com o coração das pessoas. O que eu mais gostaria é que ele tocasse no coração das pessoas. Além disso, é uma obra que fala da necessidade da gente iluminar nosso passado, de olhar para o que nos aconteceu e, especialmente, para os anos da Ditadura Militar. Nós, enquanto sociedade, continuamos marcados sobre isso. A questão da tortura, por mais que queiramos esquecer, segue presente, e é preciso olhar para estas evidências e descobrir o que aconteceu, quem matou, quem morreu, o que houve, afinal. Saber o que houve para nunca mais repetir. Ao contrário, se agirmos como se isso nunca tivesse acontecido, continuaremos repetindo os mesmos erros. A questão é olhar, saber o que aconteceu e decidir, como sociedade, que não queremos mais que isso se repita.
(Entrevista feita ao vivo com a cineasta em Porto Alegre)
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