Seria muito fácil para Armando Babaioff dançar conforme a música, se aproveitado, especialmente, dos êxitos televisivos. Desde 2006, quando estreou nas telinhas, como o Felipe da novela Páginas da Vida, volta e meia ele incursiona pela teledramaturgia, um dos nossos formatos narrativos mais celebrados. Todavia, bastam alguns minutos de conversa para constatar que Babaioff aspira para além da efêmera fama. Homem dos palcos, sente a inquietação própria daqueles artistas que não conseguem permanecer numa área de conforto, então sendo levados por projetos que os instigam. Isso fez dele produtor de teatro e, segundo nos antecipa esta conversa, talvez o leve à autoria cinematográfica. Se bem que, como vimos em Homem Livre (2017), exibido no último Olhar de Cinema, ele já é autor, pois imprime na telona uma forte marca enquanto intérprete. Confira nosso bate-papo exclusivo!
O êxito de Homem Livre depende muito do seu trabalho, por conta das nuances. Como foi abordar esse personagem de passado complicado?
Minha trajetória no cinema está acontecendo de maneira gradual. Aos poucos, estou me reconhecendo nesse lugar. Sou um ator de teatro, tanto que na maioria das vezes em que me chamam para fazer filmes me encontro em temporada de peça ou viajando, em turnê. Trago um pouco do processo de construção teatral para esses personagens muito fragmentados do cinema, especialmente pelo fracionamento da própria filmagem, às vezes completamente fora de ordem. Nesse trabalho, em especial, por ter um orçamento muito modesto, tempo bastante curto e pela complexidade do protagonista, tive de ter uma disciplina muito maior. Se não prestasse atenção aos detalhes, à profundidade do Hélio, talvez me denunciasse, deixando lacunas à mostra, e isso não seria interessante.
Justamente porque o personagem tem de se mostrar aos poucos.
E isso foi um trabalho de carpintaria, minucioso, de marchetaria, de precisão. Eu estava muito preocupado com as filigranas e os detalhes. Às vezes é a forma como não se gasta tanta energia, simplesmente uma virada de cabeça ou o mexer dos olhos. Só estou falando isso porque, pela primeira vez tive a oportunidade de apresentar ao diretor uma concepção minha, de um personagem estudado, pensado. Eu fazia anotações em papel e colava no camarim para não me perder, também por conta do curto tempo que tínhamos. Então, decupei o personagem inteiro. Apresentei isso para o diretor e ele “comprou” a ideia. O Alvaro (Furloni) teve uma escuta muito forte. Para mim, isso foi importante. Não é como no teatro, onde temos a possibilidade de repensar, de mudar o tempo das cenas. Nesse filme não existia muita margem para o erro, pois o cronograma era reduzidíssimo. Foi um trabalho muito feliz de construção.
Imputamos autoria ao diretor. Mas em Homem Livre você é coautor, pois tudo acontece a partir do seu desempenho. Não é comum essa abertura do realizador à autoralidade do ator…
Geralmente isso não acontece, mesmo. Essa foi a minha primeira experiência de uma liberdade concedida e conquistada. Um diretor atento que aceitava as contribuições. Às vezes ele “comprava” as minhas ideias. Descobri no Alvaro um parceiro muito grande que, além de estar preocupado com a fotografia, com a ideia central do filme, tinha ouvidos à gente, não somente para mim, ao Flavio Bauraqui, à Thuany (Andrade). Tínhamos também a presença do Felipe Vidal, que fez a nossa preparação. Participei do teste da Tuanny. Isso tudo me trouxe muito para o filme, me senti responsável por esse personagem.
E esse processo incomum de coautoria está na tela…
E nem sempre isso acontece, o encontro entre direção e elenco, essa liberdade. Estou achando divertido, pois cada direção que tenho experimentado age de formas diferentes. Como ator, tento sempre me adaptar. Sou muito fácil de lidar. Mas venho de uma escola autoral. Minha necessidade como artista é dizer, a partir do personagem, o que penso do mundo. Não consigo ser apenas um reprodutor, mas sei me adaptar. Nesse filme tive a oportunidade de me testar, pois não é fácil. É a primeira vez que faço algo parecido. Já fiz protagonista no cinema, mas é a primeira vez que experimento uma criação partindo desse lugar, de um processo que apresentei e o diretor aceitou. Foi muito rico. Não tinha visto o resultado ainda. Foi estreia para mim, também. Estou doido para ver de novo, porque a primeira vez é sempre um impacto, mas fiquei muito feliz com o que vi. Foram muitas escolhas e elas estão todas lá.
No filme, há a construção de um universo gospel, que vocês facilmente poderiam ter transformado em caricatura. Como foi o desenho desse aspecto importante?
Isso estava muito claro no roteiro, desde o início. A história não queria tocar no cerne dessa questão. O importante ali era outra coisa. Tanto que, e acho isso interessante, o roteiro coloca o Flávio Bauraqui o tempo inteiro como esse pastor. A gente já tem uma pré-disposição a acreditar que ele é pilantra. Então, há uma pista interessantíssima, que pode ser falsa. A gente não sabe muito bem qual é a do pastor, até por não entendermos direito o que está acontecendo com o Hélio.
E ainda tem aquele encontro suspeito com o empresário…
Isso permite que as pessoas recebam o filme de formas distintas. Contudo, o mais importante é a trajetória do protagonista, a busca dele por liberdade. Também, o que é liberdade para esse homem em processo de ressocialização? O filme fala de outra coisa, não que abandone a ideia do culto, mas ela está noutro lugar. Tem uma frase que o Bauraqui diz que eu acho genial: “o diabo não está fora, ele está dentro”. O tempo inteiro se faz um paralelo com a racionalidade desse personagem, a ausência de razão, e a figura do tal empresário, que você não entende bem quem é. Há um processo de descoberta e apresentação muito caótico. Mas a fuga do estereótipo já era prevista no roteiro.
Intuímos que o Helio fez algo grave. Mesmo assim, nos apiedamos dele. Como foi essa “humanização” do protagonista?
Ele levanta questões, cujas respostas ficam a cargo de cada um, pela maneira como encara esse crime, o ser humano que está ali na frente. Uma coisa que eu tinha certeza desde o início, que discuti com o Alvaro, é que queria fazer um cara extremamente humanizado, que criasse empatia. Até porque, se você vira um sujeito hermético, fechado, não é possível estabelecer essa relação com o público. E isso decorre, também, do nosso processo de colaboração. Queria que as pessoas tirassem selfie com ele, da mesma forma que fazem com o goleiro Bruno e a Susane von Richthofen. Antes dessas cenas acontecerem, já imaginava como queria que recebessem o Helio. Ele não poderia ser odiado, pois seria muito fácil. Odiar esse cara é mole. Ele tinha de ser frágil e sensível. Eu tinha de mostrar que ele estava confuso, que infelizmente não sabia como agir, a ponto de ouvir o pastor e, ao mesmo tempo, desconfiar dele.
Até porque ele é o único que, pelo menos, parece querer ajudar.
Naquele momento, o pastor é a única coisa em que ele pode se segurar. Foi tudo muito pensado. Gosto disso. Sou muito cerebral nesse processo de construção. Vejo isso refletido na peça que estou fazendo (Tom na Fazenda). Trabalho com o Gustavo Vais. Ele é visceral e eu sou extremamente racional. A gente se provoca o tempo inteiro. É muito prazeroso e divertido entrar no processo de construção a partir desse lugar, da provocação. E eu trazia isso para o Hélio constantemente. Levava para o Alvaro, e ele deixava a gente criar.
Em breve estreia o Introdução à Música do Sangue, outro filme contigo. Mesmo sendo de teatro, você está fazendo cinema cada vez mais, né?
O filme do Bigode (Luiz Carlos Lacerda) foi muito bacana. Eu vinha do longa do Roberto Gervitz (Prova de Coragem, 2015), um processo denso, morando dois meses em Porto Alegre, vivendo com aquele personagem que tinha, também, algumas questões de maturidade. Era um cara inquieto, insatisfeito, que buscava dentro de si a motivação para continuar existindo. No Introdução à Música do Sangue faço um personagem pequeno. Nós moramos um mês e meio na fazenda onde tudo se passa. Olhando o lugar, eu disse pro Bigode que poderia criar coisas. E ele me deu liberdade. Quando vi, estava reescrevendo os diálogos, as cenas. Para mim é exercício, acho que o melhor está por vir. Estou me apropriando da linguagem, me entendendo como ator dentro desse processo que é o cinema.
Passa pela sua cabeça dirigir?
Teatro, cinema. Me aguardem. Vem coisa aí. Já estou meio perturbado (risos). É aquela coisa do: não sabendo que era impossível, foi lá e fez. Eu produzo teatro no Rio, já na minha terceira produção. Estou com o Tom na Fazenda que, por acaso, o Xavier Dolan transformou em filme. Espetáculo lindo. É um projeto meu, do início ao fim. A compra dos direitos autorais, a tradução, a escolha de elenco, a produção da ficha técnica, tudo ficou comigo.
E essa indicação partiu do Egídio La Pasta Jr., né?
É meu amigo da (escola de teatro) Martins Penna, estudamos na mesma sala. Ele falou do filme e disse ser baseado numa peça de teatro. No mesmo dia, achei a peça e li, aos prantos. Traduzi para o diretor Rodrigo Portella, pois ele não lê em inglês. Minha maior pretensão com a tradução era ele entender. Aí resolvi escrever para o autor, que me passou o endereço da agente. Assim que botei o ponto final na tradução, já tinha os direitos da peça. Já estou traduzindo a próxima peça dele para montar daqui a dois anos. Aliás, o Michel Marc Bouchard (autor da peça) veio ao Brasil. Ele roteirizou o filme do Dolan. Fui para Montreal, num festival de cinema. Dois dias antes de eu embarcar, ele disse que viu o cartaz do Prova de Coragem, com meu nome e a foto. Me escreveu e logo depois almoçamos juntos em Montreal.
Que legais esses encontros proporcionados pelo teatro, pelo cinema…
Sou muito independente. Quero me produzir. É muito difícil. O tempo inteiro parece que tenho de provar algo. Tenho a sensação de sempre estar começando. E, também, constantemente conheço gente nova, que nunca me viu fazendo algo. Então, a sensação que tenho é de estar sempre me apresentando. Acho isso muito legal, gosto de provocar e de me provocar. Felizmente ainda não tenho um rosto marcado. Estou chegando. Mas esse “chegando” é difícil e demorado. Por isso, me provoco. O que tenho vontade de falar eu produzo. Estou tentando trilhar esse caminho, que parte muito do que a gente falava antes, da forma autoral como encaro a criação de um personagem. Estou começando a entender que, talvez, tenha de trilhar meu próprio caminho ao invés de trabalhar para os outros, o que é muito bom, também. Mas, talvez, precise ouvir essa voz que me diz: “cara, se produz”.
Se dirige…
Tenho um projeto, no qual nem sei se estarei em cena. Certamente vou escrever um roteiro, mais cedo ou mais tarde. Tenho umas três histórias na cabeça, elas sempre vêm, mas não é do nada, as coisas já estão focadas, virando anotação. As três são cinema. Estou juntando forças. Gosto muito de ir a festivais, porque é o momento em que presto atenção no que estão fazendo e aprendo. Na verdade estou estudando, com as conversas, as pessoas, como elas veem as coisas, entendendo meu ponto de vista e colocando ele à prova, criticando algumas produções, no bom e no mal sentido, ouvindo o que as pessoas dizem sobre as próprias criações, e tendo ideias. Então, não vou ficar esperando o telefone tocar.
(Entrevista ao vivo em Curitiba em 14 de junho de 2016)
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