Il Buco (2021), de Michelangelo Frammartino, é um dos principais destaques da 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2022. Depois de ser exibido no Festival de Veneza 2021 e antes de desembarcar nas telonas brasileiras (o filme já tem distribuição garantida por aqui), ele poderá ser conferido nas 20 cidades em que o evento acontecerá de 28 de julho a 10 de agosto. Nascido em Milão, Frammartino voltou à região da Calábria (de onde vieram seus antepassados) para contar a história da expedição espeleológica que aconteceu nos anos 1960, na qual foi explorada uma das cavernas mais profundas do mundo. Mesclando ficção e documentário, o realizador reafirma a singularidade de seu cinema avesso a determinar significados, generoso a diversas interpretações e sensibilidades, bem como anti-hegemônico em vários sentidos. Conversamos remotamente com Michelangelo Frammartino para saber um pouco mais sobre os bastidores, os desafios e as histórias de Il Buco. Confira abaixo mais este Papo de Cinema exclusivo e não deixe de prestigiar o nosso especial da 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2022 (que você pode acessar clicando aqui).
Como foi o seu contato com a história dessa expedição espeleológica que aconteceu realmente nos anos 1960 na Calábria?
Isso aconteceu de um jeito curioso. Filmei meu longa anterior, As Quatro Voltas (2010), numa montanha belíssima. Apenas a conheci na superfície. Depois, descobri que ela era uma montanha de calcário com um universo subterrâneo riquíssimo. Isso é o que me impressionou. A gente acredita que conhece, que tem familiaridade plena com os lugares, mas depois descobre que há algo secreto. Essa combinação entre estranheza e familiaridade foi o que me motivou inicialmente. Queria entrar nesse mistério e descobrir o que existia nesse lugar. Há também algo interessante sobre os espeleólogos. Eles também são um pouco secretos (risos). Conheci algumas pessoas que apenas mais adiante foram revelar que estudavam espeleologia. Não é apenas a montanha que tem coisas profundas, as pessoas tampouco se revelam rápido.
No seu cinema, as fronteiras entre ficção e documentário são muito borradas. Mas, do ponto de vista da construção do roteiro, qual é a sua abordagem primordial?
Realmente não faço muitas distinções entre o documentário e a ficção. Em ambos os casos estamos falando de cinema e não sou muito atento às distinções. Mas, posso dizer que nos meus filmes nunca parto da página, ou seja, do que pode ser escrito. Parto dos lugares, das visitas aos espaços e das conversas com as pessoas. Neste filme, tal relação foi com os espeleólogos. Nos primeiros dois anos do projeto, nem escrevi nada. Apenas convivi num mundo que para mim era completamente novo. Nesse sentido, estou mais próximo de um processo documental. Há outro ponto importante. Não utilizo atores e lido com locações reais. Portanto, não tenho um grande controle sobre a matéria. Um componente não governável é muito importante no cinema que faço. Sou mais governado pelo que filmo do que governo aquilo que filmo. No nosso mundo, geralmente o homem governa o mundo. Mas, minha relação com essas matérias vai no sentido oposto.
O filme apresenta uma série de grandes desafios técnicos. O Renato Berta, seu diretor de fotografia, ficou mais instigado ou bravo contigo por conta desses desafios (risos)?
O Renato ficou particularmente interessado pelo filme por conta do escuro absoluto. O filme previa uma fronteira quase física entre luz e sombra. A composição dos quadros clamava pelo escuro absoluto e o Renato nunca tinha filmado assim. Obviamente, essa ideia de um escuro absoluto não existe no cinema oficial, o que existe é uma subexposição. O Renato trabalhou muito na pesquisa de uma câmera que desse conta disso, pois esse elemento quase de não cinema era realmente essencial. O Renato foi incrível nesse processo de escolha do dispositivo que pudesse lidar com essas questões de luz e sombras, mas que também aguentasse a umidade do interior da caverna. E imagino que ele tenha me odiado em vários momentos (risos). Entrar na caverna era muito perigoso, demandava longos mergulhos verticais, aos quais era necessário ter licença, uma permissão. Para chegar a 400 metros de profundidade, demorava de quatro a cinco horas. O mesmo tempo para voltar. Era uma situação extrema que se arrastou por seis semanas. As pessoas na superfície esperavam muito. É como se estivéssemos em dois fuso-horários completamente diferentes.
Seu cinema é anti-hegemônico: contemplativo, lento, pouco falado. Você considera que fazer cinema assim é um ato político diante justamente do panorama hegemônico?
Quando trabalhamos com imagens, é inevitável tomar posições políticas. Provavelmente, as imagens sejam exatamente o maior instrumento de poder. Para mim, construir imagens que não imponham um único significado, mas que demandem a colaboração dos espectadores, é um ato político. Em termos de linguagem e estética, é evidentemente um ato político. Admiro muito o cineasta Jean-Marie Straub e ele disse certa vez: “não filmo para os espectadores, mas sim para os cidadãos. No sentido de que filmo para pessoas que são capazes de fazer escolhas”.
Enquanto espectador, você gosta principalmente de um cinema próximo ao seu ou também consegue se conectar com um tipo de filme atrelado ao cinema mais comercial?
Tenho um filho de 11 anos, o Lorenzo. Aliás, atualmente estou numa região litorânea com ele. Na pandemia, assistimos a muitas coisas, como a toda obra do Tim Burton. Amo os grandes clássicos, os cineastas de talento, não apenas os de abordagem mais contemplativa. E, uma coisa engraçada. Esse meu filho de 11 anos foi para o Festival de Veneza comigo em 2021, assistiu ao meu filme, e quando a sessão acabou, fazendo um paralelo com os filmes de Tim Burton, ele disse: “você me faz assistir a esses filmes maravilhosos do Tim Burton e depois me apresenta a esses filmes que você faz?” (risos). Lorenzo é o meu crítico mais severo.