No último ano, o espectador brasileiro descobriu o trabalho de Benjamin Voisin em Verão de 85 (2020), romance dirigido por François Ozon. Agora, o ator francês aparece num registro bem diferente: ele interpreta Lucien de Rubempré, personagem principal de Ilusões Perdidas (2021). O filme de Xavier Giannoli adapta o famoso livro de Honoré de Balzac sobre o jovem morador de uma cidadezinha, que se muda a Paris na intenção de se tornar um poeta reconhecido.
No entanto, o rapaz encontra uma realidade muito diferente do que imaginava: a imprensa da capital vende suas críticas a quem pagar melhor; os artistas famosos são aqueles pagos por empresários, e a prostituição das mulheres na rua se confunde com aquela dos homens negociando em seus escritórios. Lucien recusa este esquema a princípio, mas, aos poucos, começa a jogar com as regras do sistema.
Benjamin Voisin veio ao Brasil para conversar com jornalistas e o público sobre Ilusões Perdidas, um dos destaques do 12º Festival de Varilux de Cinema Francês, que vai até o dia 8 de dezembro de 2021. Ele conversou com o Papo de Cinema, em São Paulo, a respeito dessa experiência:
Numa entrevista, Xavier Giannoli disse que sua escolha para o papel era uma evidência, pela facilidade com que você encarava os diálogos de época. Como foi esse processo?
Eu fiz o teste para o papel, e no dia seguinte, ele disse que queria conversar comigo. Fomos até um café, e ele veio se apresentando: “Bom dia, eu sou o Xavier, e queria que você atuasse no meu filme”. Foi super rápido! É a maior produção onde atuei, e também o filme mais ambicioso que fiz, e curiosamente, foi o filme onde menos esperei por uma resposta. Sobre os diálogos de época, não sei muito como os outros atores se comportam — talvez eu articule mais a fala. Talvez eu tenha um palavreado meio antigo!
Já tinha uma relação particular com o romance de Balzac?
Eu reli o livro com atenção e fiz algumas anotações, mas me baseei principalmente no roteiro mesmo. Esse é um trabalho de adaptação, ele não segue o livro linha a linha. Muitas passagens foram reescritas, e Lucien está um pouco diferente no filme — ele tem ainda mais fome, mais vontade de conquistar o sucesso do que no texto. Além disso, o roteiro precisa ser mais curto, o que significa que alguns personagens importantes do romance não existem na adaptação. Por isso, não adiantaria eu me ater ao livro. Era mais importante me focar nas 80 páginas do roteiro.
Existe uma responsabilidade maior de representar um personagem tão conhecido?
Não, eu adoro encarar personagens assim, gosto da responsabilidade que depositam sobre meus ombros. Quando François Ozon, Xavier Giannoli ou André Téchiné me chamam para um projeto, eu fico muito feliz. Tenho pouco medo: fico mais empolgado e contente do que intimidado. Sinto uma responsabilidade, é claro, mas essa é uma força que me motiva, ao invés de me constranger.
Os diretores com quem você tem trabalhado possuem métodos muito diferentes de direção de atores?
Nossa, com certeza! Não tem nada a ver um com o outro. François Ozon grita com frequência, faz apenas uma ou duas tomadas, e a gente nunca sabe quando a câmera está ligada. Às vezes fazemos ensaios com a câmera ligada, e depois descobrimos esse plano incorporado à versão final. Às vezes, ensaiamos durante bastante tempo, mas François decide mudar e fazer outra coisa, outra cena. Xavier é minucioso: ele demora bastante para compor cada plano, e se dedica a fazer várias tomadas por cena. Quando ele não gosta de algo, repete e repete até ficar certo. Xavier filma muito os detalhes, os objetos, os cenários. É preciso uma concentração superior, mas também é delicioso. Com François, a gente filma o tempo todo. É “ação!”, “corta!”, “ação!”, “corta!” sem parar. Para Xavier, demora algumas horas até a gente escutar o “ação”, então quando isso acontece, fica a vontade de entregar o nosso melhor. O que mais me agrada é me confrontar a métodos diferentes. A repetição seria a pior coisa do mundo, como um trabalho de escritório. É por isso que eu me tornei ator: para evitar uma rotina de escritório!
Considera Lucien ingênuo — a princípio, pelo menos?
Com certeza. Ele é ingênuo até demais, com seus olhões arregalados. Mais isso não seria algo comum para todo adolescente? Imagino que seja igual ao Brasil, quando alguém sai de um pequeno vilarejo do interior e chegue a São Paulo ou Rio de Janeiro. Ele vai ficar impressionado, perdido. Nessa fase da vida, temos a impressão de conhecer o mundo inteiro, embora ainda não se saiba de nada. Ele entra passo a passo, e por isso sua descoberta é tão violenta. É um pouco a lógica do rapaz puro corrompido pelo sistema. Eu cheguei a comentar com o Xavier que talvez Lucien fosse mais feliz se ficasse a vida inteira na sua cidadezinha, amando aquela mulher mais velha e vivendo de poesia. Talvez uma vida de poesia fosse mais feliz. Mas ele se perde na sua ambição, embarca nesta espiral de busca pelo dinheiro e o sucesso. Lucien não consegue se escapar a isso.
Lucien se torna cínico, mas isso impacta também o relacionamento com as mulheres?
Acredito que não. Para mim, o momento com as mulheres é o único onde ele consegue se manter honesto. Louise de Bargeton, interpretada por Cécile de France, é bem menos honesta do que ele. Mesmo Xavier filma esses instantes de maneiras bem diferentes: às vezes são cenas grandiosas, com dezenas de figurantes e luzes bem trabalhadas, e de repente existem apenas Lucien e sua amada na cama, nus, conversando calmamente. Xavier é muito mais clemente ao filmar as mulheres: ele tem a consciência de que elas não são responsáveis pelo cinismo de Lucien. Ele se transforma nessa figura por si mesmo. Talvez as mulheres pudessem salvá-lo.
A imagem da crítica de cinema que se vende a quem paga melhor é hilária. Enxerga uma relação com a imprensa contemporânea?
Quando apresentamos o filme à crítica, todos apontaram esse aspecto! Eles se sentiram visados, criticados. Mas riam, porque em certa medida, sabem que existem alguma relação com alguns críticos de hoje. Acredito que todos tenham a consciência de que os profissionais de hoje representam uma continuidade daquela prática de séculos atrás. Não sei se a imprensa hoje é tão descaradamente vendida quanto aquela do filme, onde quem paga mais ganha o texto mais elogioso. Tenho dificuldade de falar em nome do jornalismo, que não conheço tão bem assim, mas a organização me parece menos corrupta hoje. Caso exista, talvez seja algo mais escondido. Sei que as críticas mais elogiosas do nosso filme vieram dos veículos que participaram do financiamento, como as redes de televisão. É claro que isso desperta algumas suspeitas: eu ficaria surpreso se alguma emissora investisse no projeto e depois dissesse que é o resultado ruim. Mas como ter certeza? De qualquer modo, resta uma verdade: a polêmica vende, enquanto a informação ponderada não chama atenção. Veja os debates na televisão, as postagens na Internet. Se alguém anunciar que Cristiano Ronaldo vai visitar São Paulo, isso vai render vários cliques. Depois se desmente, fala que foi um equívoco, um engano. E pronto.
Que papéis despertam o seu interesse? Você se guia pelo personagem, o roteiro, o diretor?
Para mim, o principal é me surpreender. Quando abro os e-mails e descubro que alguém gostaria de trabalhar comigo, ou leio um roteiro inesperado, isso me cativa. Quando entramos nessa área, ficamos à mercê do desejo dos diretores e produtores, que dizem sim ou não ao que temos a oferecer. Somos dependentes deles. Para mim, a situação começou a melhorar, o que significa que ainda existe essa dependência em menor escala, mas o desejo dos outros vem até nós. Resta saber qual projeto é mais desejante. Talvez eu gostasse de interpretar um piloto de fórmula 1, uma mulher, um prisioneiro — alguém com uma experiência de vida distante da minha. Se for para interpretar um jovem ator que viaja ao Brasil para fazer entrevistas, não preciso dessa experiência: eu já faço isso de verdade. Quando existe uma relação com a minha vida, isso me entedia. Em Verão de 85, o personagem não tinha nada a ver comigo. Em Ilusões Perdidas, também não, e vai ser diferente também com o filme de Téchiné. Para o Téchiné, aliás, precisei perder 10kg. Por isso estou tão magro assim, ao contrário do filme de Ozon.
Essas mudanças drásticas de corpo também te agradam?
Sim, isso é bem interessante. Isso ajuda muito a composição: existe um prazer de se encontrar num corpo diferente para me adaptar a personagens diferentes. Não se atua da mesma maneira se estiver magro, gordo, de cabelo comprido, musculoso. Quando escolho um trabalho, essa característica me ajuda a mergulhar no personagem. Os figurinos de época têm o mesmo funcionamento: as roupas muito apertadas condicionam o nosso corpo. É impossível se mover livremente naqueles figurinos. Posso confiar nas técnicas de atuação, mas muda muito quando entendemos onde vai ficar a luz, onde está posicionada a câmera. Isso vai alterar minhas expressões, o tom da minha voz. Não dá para pensar na interpretação para cinema como algo individual: é um trabalho coletivo. Não sou o tipo de ator que chega em cena, faz o mínimo trabalho necessário e vai embora.
Você lê críticas, se preocupa com o que os artigos dizem do seu trabalho?
Não. Eu dou uma olhada por alto, mas um minuto depois, já olho outras coisas. Me preocupo pouco com as críticas negativas, e também com as positivas. Assim posso me concentrar melhor. Levo a sério as opiniões de dois ou três amigos próximos, que também são atores e conhecem esse trabalho como eu — é o caso de Sami Outalbali. Mas fora disso, não presto atenção. Sei que nunca vou ser apreciado por todos, sei que nem todo mundo vai gostar do que eu faço. Eu tento fazer o melhor dentro daquilo que sou capaz de oferecer, e tento compreender como posso melhorar. As opiniões dos outros poderiam mudar minha trajetória, mas para mim, o principal é me manter fiel ao que eu acredito.