Uma jovem transexual, moradora da periferia, desaparece após uma festa. Marilene (Luciana Souza) começa uma jornada pela cidade em busca da filha, temendo pelo pior. Além de contar com a ajuda de amigos, esta mulher se apodera de um estranho objeto luminoso encontrado dentro de casa. O que significaria este cilindro de vidro que acende e esquenta? Aos poucos, o real encontra o sobrenatural.
Em 2020, Inabitável (2020) se tornou um dos curtas-metragens brasileiros mais premiados entre festivais nacionais e internacionais. Após as distinções no Festival de Gramado (melhor filme pela crítica, melhor roteiro e melhor atriz), Festival de Brasília (melhor fotografia, menção honrosa para o elenco), Festival Mix Brasil (melhor roteiro, melhor interpretação) e Festival de Vitória (melhor roteiro), ele se torna o único curta-metragem brasileiro presente no Festival de Sundance, nos Estados Unidos, no início de 2021.
O Papo de Cinema conversou com os cineastas Enock Carvalho e Matheus Farias sobre esta conquista para o cinema brasileiro em pleno período de crise sanitária e institucional:
Por que decidiram contar esta história sobre violência contra pessoas transexuais pelo ponto de vista da mãe cis?
Enock Carvalho: A personagem da Marilene já existia muito forte na nossa cabeça. Essa mãe tem muito da minha mãe, da mãe do Matheus e de outras que conhecemos. Existe um movimento muito forte no Brasil de mães que se unem por conta da causa LGBTQIA+. Isso vem crescendo há algum tempo – o Mães pela Diversidade existe em praticamente todas as capitais. Essa personagem que guia a história nasce da nossa observação de mães que sentem muito medo que filhos e filhas trans, gays, não-binários, entre outros, podem sofrer neste cotidiano brasileiro tão duro e preconceituoso. A partir desse momento, a gente entendeu que queria falar sobre violência e medo, mas com os olhos de alguém que está ali, comovida pela relação de afeto que tem com a vítima. De certo modo, Marilene também é vítima, sofrendo por ser negra, por ser mulher, e também pelo preconceito rebatido. Se qualquer filha sofre preconceito, o pai e mãe acabam sofrendo junto.
Existe um movimento muito forte no Brasil de mães
que se unem por conta da causa LGBTQIA+.
Matheus Farias: A alteração do ponto de vista expande a narrativa. Seria muito mais óbvio a gente encabeçar esta história pelo ponto de vista da Roberta, mas essa mudança dá ao roteiro mais material para a gente entender como o acontecimento de uma pessoa trans desaparecida rebate numa vizinhança, num grupo de amigos, numa mãe. Se a gente se focasse na vítima, como tantos outros filmes já fazem, talvez a história tivesse limitações. Quando a gente expande isso para outro ponto de vista, o roteiro se diversifica, se enriquece e acrescenta outras camadas. O medo das pessoas transgênero, das pessoas pretas e periféricas já tem certa documentação, mas o medo da mãe em busca de respostas para a filha enriquece o filme.
Que qualidades acreditaram que Luciana Souza poderia trazer à protagonista?
Enock Carvalho: A Luciana se encaixou perfeitamente na figura de uma mãe. Este foi o ponto de partida. Além disso, ela já existia no nosso imaginário enquanto atriz. A gente queria muito uma atriz do Nordeste, e com experiência, para ser mais fácil entrar na personagem. Estamos falando de um curta-metragem, então não temos os mesmos recursos de um longa-metragem para ensaiar com a atriz durante muitas semanas. Tivemos apenas uma semana de ensaio. Quando a gente fez a proposta à Luciana de enviar o vídeo interpretando uma cena do filme, e recebemos o material, a gente não teve dúvidas de que estava diante da Marilene. Ela tinha feito Bacurau (2019) há pouco mais de um ano, e ficamos muito comovidos com a facilidade da Luciana em entrar na personagem, e a maneira como ela representava a mãe que a gente estava buscando. Não tivemos dúvidas quanto a isso.
Matheus Farias: Vou voltar ao roteiro, que sugeria silêncios e trocas de olhares entre os personagens. A gente sempre achou que a Luciana, pelo histórico como atriz, tinha um rosto muito marcante, capaz de falar mais do que as palavras. Quando a gente viu o teste e se deparou com a possibilidade de trabalhar com a Luciana, as coisas se encaixaram. O filme tem falas e discussões, mas o silêncio é muito mais significativo do que as palavras. Para mim, a Luciana representava essa mãe imersa numa dor muito particular, sem ficar chorando pelos cantos, ou elevando a um drama para além do que a gente procurava.
O cinema brasileiro tem utilizado bastante as ferramentas do cinema de gênero para construir críticas sociais. Como Inabitável se encaixa no cinema fantástico?
Matheus Farias: Foi um processo muito natural, na verdade. Filmes de gênero estão no nosso imaginário, fazem parte da cinefilia, e estão entre os títulos que a gente mais gosta. Desde o nosso primeiro curta, Quarto para Alugar (2016), passando por Caranguejo Rei (2019) e Inabitável, continuamos trabalhando e modulando esses elementos de modo a encontrar nosso traço de autor e desenvolver esse exercício de direção. Em Inabitável, acredito que a gente conseguiu modular melhor os nossos limites e a presença destes elementos. Também acredito que o cinema de gênero é muito eficaz para tratar de temas políticos, sociais e crises. A gente consegue delinear melhor estas relações, e falar do tema de uma forma que nos agrada enquanto cinema. A gente talvez não veja a exercitar isso em todos os nossos filmes, mas por enquanto, isso tem feito parte desde a gestação dos nossos roteiros. Dentro de uma perspectiva histórica, o cinema de gênero tem sido muito utilizado em tempos de crise, e o Brasil vive uma crise há muito tempo. Talvez hoje a gente se encontre na maior crise dos últimos cinquenta anos. A violência institucionalizada virou regra no Brasil, e acredito que o público brasileiro consegue entender de onde vem o medo dos personagens, e qual é a expectativa negativa dessa personagem em relação à filha. Quando a gente vai inserindo essas questões de gênero até o desfecho, dá para entender que a realidade dessas personagens não é possível de ser resolvida numa realidade. O cinema de gênero dá conta de algo que a realidade não consegue representar. Tenho acreditado nisso cada vez mais. O país tem entrado num buraco cada vez mais fundo, e não vejo lugares na realidade onde eu possa me segurar para projetar um futuro para nós enquanto sociedade.
Vocês criam um objeto mágico que é ao mesmo tempo muito analógico. Gosto da magia mecânica sugerida por esse cilindro de vidro.
Enock Carvalho: Para a gente, era questão de trazer a ficção científica para perto da realidade da Marilene. Não poderia soar tão moderno, tecnológico e distante da vida dela. Ele tem a aparência de um artefato que talvez já tenha passado por diversas mãos, com algum tempo de uso, e parece funcionar à base de uma energia inexplicável. Ao mesmo tempo que lembra uma lâmpada para guiar a Marilene, poderia ser um comunicador. Durante a catarse do final, a gente escolheu ser minimalista quanto ao que vemos de fato. Tivemos todo um trabalho para que o filme entrasse no que estava acontecendo através do som, das imagens e da luz. A gente queria que as emoções pesassem mais naquele momento. Faz parte do nosso percurso buscar uma naturalidade dentro do cinema de gênero, uma organicidade ao universo das personagens. O filme está mais distante do convencional, apostando mais na dramaturgia e no sentimento das personagens, construído durante o todo filme. A gente não quer apenas impressionar com a imagem de um elemento fantástico chegando: era preciso ser um instante íntimo entre as personagens.
Faz parte do nosso percurso buscar uma
naturalidade dentro do cinema de gênero.
Matheus Farias: Íntimo e genuinamente brasileiro. Quando falamos de cinema de horror, imediatamente vêm à mente os códigos do cinema norte-americano. É óbvio que a gente não tinha grana para tecnologia de ponta e efeitos super sofisticados, e nem a pretensão de nos igualar ao cinema norte-americano. Pensamos muito sobre isso: como fazer com que os elementos da ficção científica entrassem no filme da maneira mais natural possível, enquanto carregassem traços de um cinema brasileiro? O objeto é muito simples: é um vidro com metal e uma lâmpada, que foi desenhado para o filme. Isso não existe antes. Algumas pessoas de fato assemelham a uma lâmpada ou a um comunicador, e para a gente, ele está no meio-termo. No final, a gente não mostra de fato o que se encontra fora da casa da Marilene, mas pelo som e pela fotografia, encontramos recursos que podem caber num curta-metragem e trazer um efeito interessante. O comunicador que a Roberta usa no ouvido é um fone de bluetooth comum, que se encontra no camelô. Isso cai muito bem com a estética que o filme propõe. Acho isso super forte enquanto criação de um cinema de ficção científica brasileira: estes recursos baratos estão ao nosso alcance, são relativamente fáceis de serem feitos, e causam um efeito tão forte quanto aqueles elaborados com milhares de dólares.
Enock Carvalho: Existe uma surpresa. As pessoas começam o curta acreditando ser apenas um filme de drama, sem saberem da ficção científica. Ela vai aparecendo sutilmente, de leve. Ele foi pensado desta maneira, para se revelar aos poucos, para as pessoas sentirem a ficção científica se inserindo na realidade da Marilene.
Temos discutido muito a crise de políticas públicas para o audiovisual, porém quase sempre focada nos longas-metragens. Como veem esta questão no caso dos curtas?
Enock Carvalho: O impacto é imensurável. Ainda não existem dados oficiais de pesquisa para medir o impacto da paralisação no cinema. Já havia uma crise antes da pandemia, que foi agravada. Temos uma cadeia de 300 mil técnicos e artistas pelo Brasil inteiro. É um setor que produz muito, mas infelizmente todo mundo está parado – poucas pessoas têm conseguido finalizar seus projetos. A Ancine não está contratando projetos há um bom tempo, mesmo aqueles aprovados em editais passados. De modo muito particular, temos sentido o impacto disso. Estamos no nosso terceiro curta, e estamos desenvolvendo um longa-metragem desde 2018. A gente tinha grande chance de captar financiamento através de editais públicos para esse longa, se não fosse essa situação. Não temos previsão se o filme vai acontecer, ou quando vai acontecer. Por mais que se conte com alguns parceiros privados, e com possibilidades de complementar o orçamento, uma boa parte do que a gente precisa para rodar um longa-metragem no Brasil vem do incentivo da Ancine e dos governos estaduais que recebem verba da Ancine. Agora, não há perspectivas. A desvalorização da cultura vai ter um impacto futuro. Nos próximos anos, a gente vai ter uma escassez muito grande de filmes brasileiros. Serão poucos filmes lançados, apenas aqueles que terão conseguido boiar nessa tempestade, além de filmes financiados por plataformas privadas como Netflix e Amazon Prime. Nestes casos, a gente entra numa limitação artística muito grande. A liberdade autoral não é a mesma quando se cria a partir de um edital, ou a partir de um incentivo privado. O cinema brasileiro está sendo desestimulado, e as narrativas, invisibilizadas. Quando você deixa de incentivar o cinema, você interrompe histórias que mostram vários lados da nossa sociedade. Esse é um controle do que é dito ou não, mostrado ou não. Gosto de ter esperanças de que as coisas melhorem, e que o cinema brasileiro vai voltar a ser o que era anos atrás, mas não tenho fatos que me permitam acreditar nisso. Preciso ver que a cultura é valorizada, mas isso ainda não está acontecendo.
O cinema brasileiro está sendo desestimulado,
e as narrativas, invisibilizadas.
Matheus Farias: Em relação aos curtas-metragens, temos sorte em Pernambuco, porque o Funcultura, edital de fomento à produção audiovisual, é lei. Todos os anos, independentemente do governo federal, há um valor destinado às produções, por menor que seja o valor. Cada ano, Pernambuco aprova entre 15 e 20 curtas-metragens para serem realizados. É absolutamente triste ver a mordaça aplicada aos artistas no Brasil: a gente quer contar as histórias, mas não pode. Além disso, nós dois não fazemos apenas os nossos projetos; também trabalhamos nos projetos dos outros. Vai chegar o momento em que não vamos ter filmes para trabalhar, porque outros também não vão fazer filmes. Em relação aos curtas-metragens, acho que eles continuarão sendo feitos. Se podemos tirar algo de bom desse momento, por mais que eu seja contra tirar algo bom disso, é a possibilidade de gestar ideias. Esse é o tempo de pensar, olhando para a frente. Os curtas continuam sendo feitos, e circulando por aí. Dentro desse esquema de produção brasileiro hoje, o orçamento do Funcultura consegue atender bem a produção de curtas-metragens. A gente já conseguiu fazer dois filmes assim.
Ainda se sustenta a impressão de que novos cineastas de talento experimentam com o curta visando passar ao longa. Vocês estão desenvolvendo um projeto de longa, mas como veem a distinção em relação ao curta?
Enock Carvalho: A gente ainda tem muitas histórias que são curtas-metragens, e pretendemos fazer. Estamos começando a pensar em explorar outras maneiras de fazer curtas-metragens. A gente já trabalhou com crowdfunding, com editais, com orçamentos diferentes. Temos pensado em expandir e fazer curtas-metragens de maneiras mais simples, em termos de equipe, utilizando outras narrativas que possibilitem fazer misturas com outras artes. Tivemos contato recentemente com a realidade virtual, que ainda não se popularizou no Brasil, mas tem sido uma aposta forte dos festivais como Veneza, Toronto, Sundance. No futuro, a gente vai ter mais curtas feitos em realidade virtual no Brasil, quando a tecnologia for mais disseminada.
Temos a consciência de que [nossos longas-metragens] vão demorar
muito mais tempo para sair do papel do que a gente gostaria.
Matheus Farias: Acho que o movimento natural dos realizadores é esse: começar pelo curta, porque ninguém nasce sabendo filmar. Você vai aprendendo a filmar, e quanto mais filma, mais aprende. Não falo apenas de filmar, mas também de criar roteiros, montar etc. O espaço do curta-metragem é incrível para experimentar certas coisas. Você pode testar narrativas, tensionar certos aspectos da narrativa e da estética. Eu tenho uma porção de histórias que ainda quero experimentar dentro do curta-metragem. Ao mesmo tempo, é natural a gente começar a pensar em longas. Já temos dois projetos de longas bem delineados na nossa cabeça. Temos a consciência de que eles vão demorar muito mais tempo para sair do papel do que a gente gostaria, dada a situação do momento. Mesmo que a situação fosse outra, tenho o desejo de continuar com os curtas-metragens, que têm um potencial muito forte de discussão em festivais. Não deixaria de pensar em fazer curtas.
As respostas a Inabitável têm sido diferentes em Sundance ou nos festivais brasileiros, como Gramado e Mix Brasil? Como o público estrangeiro percebe a nossa realidade?
Enock Carvalho: A gente tem acompanhado bem de perto as reações de Sundance. Fico com a sensação de que, quando o filme passou pelos festivais brasileiros no segundo semestre de 2020, o público já estava de certa maneira familiarizado com a narrativa. Ele infelizmente já está acostumado à realidade de pessoas transgênero no Brasil. As histórias de pessoas como a Marilene são até comuns: existem muitas manchetes de jornais com histórias parecidas. Para o público norte-americano, o medo pelo desaparecimento de uma pessoa trans não parece ser tão forte quanto no Brasil. Eles parecem estar descobrindo agora que o Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo. As pessoas ficam impressionadas com o filme e o caminho que ele traça. O cinema norte-americano sempre foi muito próximo do cinema de gênero, então isso tem chamado a atenção: os espectadores têm ficado muito surpresos com a presença do cinema de gênero no filme, porque surge de maneira orgânica. É interessante perceber que as pessoas ficam muito apegadas a isso, e depois comentam muito sobre o aspecto da ficção científica no Letterboxd, por exemplo. Além disso, claro, Roberta tem feito muitas fãs. Ela está criando um fã-clube.