Se você não sabe quem é Indianara Siqueira, então desconhece parte vital da luta pelos direitos civis no Rio de Janeiro. Criadora e mantenedora da Casa Nem, abrigo voltado a pessoas LGBTQI+ em situação de vulnerabilidade, ela transita pelas ruas da Cidade Maravilhosa semeando iconoclastia e resistindo à toda sorte de infortúnios que cotidianamente se abatem sobre os desvalidos numa sociedade patriarcal e em grande parte homofóbica. O documentário que lança luz sobre essa trajetória aguerrida é Indianara (2019). Exibido em première mundial no Festival de Cannes 2019, o filme teve sua primeira exibição pública brasileira no Olhar de Cinema de Curitiba 2019. Em ambas as ocasiões mobilizou as plateias, instigando-a ao debate sobre políticas públicas restritivas e chamando a atenção para a capacidade ímpar de Indianara de resistir às violências cotidianas. Foi durante o evento na capital paranaense que conversamos com a cineasta francesa Aude Chevalier-Beaumel e com seu colega brasileiro Marcelo Barbosa, autores do corajoso documentário que chega nesta semana aos serviços de VoD via O2 Play, infelizmente, sem passar devidamente pelo circuito comercial das salas de cinema. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo!
Como se deu o processo de chegar até a Indianara e propor a realização de um filme tão íntimo?
Aude Chevalier Beaumel: Conheci a Indianara noutra produção e acabei me aproximando dela. Propus esse filme, mas para a Indianara as palavras não funcionam (risos). Chegou uma hora em que parei de falar e a gente simplesmente foi fazer o filme. Logo nos integramos. Tem alguns momentos mais marcantes da nossa presença, como, por exemplo, naquele ato do #ForaTemer. Foi uma ocasião violenta por conta da repressão policial. E a Indianara tem o costume de ser a última a ir embora da praça. Não sei para ela, mas para a gente foi um episódio especificamente importante para nos sentirmos pertencentes a esse grupo.
Marcelo Barbosa: No final do ato, ela deve ter olhado e percebido que apenas nós dois estávamos com ela e pensado: “Ok, acho que vou falar com essa galera” (risos).
E disso para fazer parte efetiva da rotina dela foi um pulo…
A: A Indianara não tem rotina. De nada adiantava marcarmos, tínhamos de segui-la. Outro momento importante nesse processo foi conhecer o Maurício, o companheiro da Indianara. Criamos uma cumplicidade com ele.
M: Para mim particularmente é muito difícil tratar com um grupo grande. Então, quando decidimos que seria um filme de personagem, foi um alívio. Todo o desenho de intimidade começa a fazer sentido a partir disso.
E sobressai uma naturalidade da relação da Indianara com a câmera..
M: Uma amiga minha disse que tinha achado a atriz do nosso filme sensacional e perguntou se a Indianara de verdade era assim também. Acredita? (risos)
A: A Indianara tem uma consciência da importância de retratar a própria experiência como exemplo às futuras gerações. Aliás ela tem uma preocupação enorme com isso. Foi simples, então, aceitar que havia uma câmera ali.
Como foi a dinâmica de trabalho de vocês? Houve divisões de tarefas?
M: Cada um tem seu ponto de partida, seus pontos de vista, obviamente. Quanto ao processo, num sentido mais espiritual e mental, encarava as circunstâncias quem estava mais forte naquele instante. No set eu operava a câmera frequentemente, mas a Aude fez planos lindíssimos.
A: Começamos com duas câmeras, mas logo sentimos que ficou confuso. Aí o Marcelo pegou mais a câmera e eu me responsabilizei mais diretamente pelo som. Mas a gente jogava junto. E é curioso, porque às vezes reagimos aos acontecimentos simultaneamente.
M: Esse é meu primeiro longa. Antes eu tinha trabalhado com projetos mais curtos de cinema e publicidade. Demorei meses para introjetar essa coisa dos planos longos, da duração dilatada. A Aude que já tinha feito longa-metragem, foi muito importante nesse sentido, como uma instigadora para que arriscasse a fazer tomadas longas.
Como foi o processo de montagem com o Quentin Delaroche? A Indianara permite múltiplas entradas em temas diversos e isso poderia ocasionar uma bagunça grande, não?
A: O Quentin está desde o início no processo. Tentamos fazer uma primeira edição após um ano de gravações, algo que se provou um fracasso total (risos). Quentin é muito sincero, nos aconselhou voltar para casa e escrever porque apenas como aquilo não tinha como trabalhar (risos). Foi um pouco duro na ocasião, mas absolutamente necessário, pois com isso começamos escrever o roteiro. Tentamos não construir o filme a partir das temáticas, mas da dramaturgia desenhada como numa ficção. Saímos da rua e tomamos certa distância. E as coisas felizmente foram meio que se encaixando depois disso. Esse distanciamento do Quentin também foi imprescindível.
M: Sem contar que o Quentin também é diretor. Quase assina o filme com a gente, pois esteve realmente muito presente nesse processo de construção, não apenas do material que chegava das filmagens, mas também pensando o que poderia ser feito a seguir.
A: Discutimos com ele muito a questão de como mostrar os corpos, de como poderíamos utilizar tais corpos para engajar o espectador e noutras vezes para questioná-lo.
M: Ganhamos muitos presentes. Às vezes a câmera estava ligada e coisas imprevistas simplesmente aconteciam. Isso não tem explicação. Claro, há a nossa dedicação, o olhar atento, mas também algo que transborda disso. É a mágica do cinema. Precisamos estar prontos para recebe-la. Nesses momentos parecia que todo processo se encaixava.
Levando em consideração que o Indianara é um filme dotado de claros posicionamentos políticos, como vocês esperam que ele seja recebido no nosso polarizado Brasil?
A: Nem que quiséssemos conseguiríamos fazer um filme observacional. Com a a Indianara é impossível apenas observar. Você tem de fazer parte do bando dela. Na França, quando exibimos o filme pela primeira vez, o público a recebeu como um signo de empoderamento e esperança. O longa toca numa política não tradicional, desperta uma política bem mais interna e profunda.
M: Realmente a resposta francesa foi positivamente inesperada. O filme não oferece muitos contextos, informações, às vezes joga diretamente na ação. Mas a galera embarcou. Aqui no Brasil, nesse momento de polarização que leva a divisões familiares, brigas entre grupos antagônicos, espero que o filme inspire o diálogo. A própria Indianara, a despeito da radicalidade do seu discurso, nunca refutou a possibilidade de dialogar com quem pensa diferente. Esperamos que ele motive interlocuções adultas. Para a gente era importante isso de fazer um filme adulto.
A: A Indianara faz política com o próprio corpo. E o filme toca na questão do nosso corpo como um veículo político. A Indianara é inspiradora nessa busca por liberdade.
Tem-se usado muito o verbo “resistir” ultimamente. Mas, para algumas comunidades, como a LGBTQI+, essa palavra representa sobrevivência…
A: Durante o processo a palavra sobrevivência foi importante. Aliás, acho que ela serve para resumir o filme. Não queríamos simplesmente mostrar que essas vidas são frágeis. Especialmente no Brasil, país que mais mata transexuais do mundo, elas são de fato fragilizadas. Mas, desejávamos também mostrar esse ímpeto de sobrevivência, a brava luta cotidiana.
M: Na cena da confirmação da eleição presidencial do Jair Bolsonaro, uma das trans levanta e começa a improvisar um texto incrível, no momento exato em que o presidente eleito ia dar o seu discurso de posse. É como se ela abafasse a voz dele e dissesse: “aqui não, aqui quem vai falar é uma trans”. Ela fala de uma maneira meio glauberiana. A gente não esperava realmente aquilo. Foi lindo.
A: Indianara empodera as pessoas. Mesmo vulneráveis e marginalizadas, as que a circundam têm uma vivência digna por conta da ação dela e também por essa sua capacidade de inspiração.
M: E quando momentos como esses acontecem, você, com a câmera, tem de se comportar à altura para valorizar devidamente as pequenas epifanias. Certamente não somos as mesmas pessoas que começaram o filme lá atrás.
(Entrevista concedida em junho de 2019, em Curitiba, durante o Olhar de Cinema)
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