Integrante da produtora/coletivo cearense Alumbramento, Pedro Diógenes é um realizador bastante experiente, acostumado a trabalhar em processos essencialmente colaborativos e independentes. Inferninho (2018), dirigido com o parceiro de longa data (e primo de sangue) Guto Parente, é seu sexto longa-metragem. Como técnico de som, trabalhou em mais de 30 produções. Na trama do filme que chega às salas de cinema nesta quinta-feira, 23, depois de passar com destaque por diversos festivais, um grupo de personagens excêntricos busca refúgio num bar nordestino, no qual podem expressar-se livremente e externar seus afetos. A ameaça vem de fora, especialmente da especulação imobiliária que lança uma sombra sobre esse reduto de exceção e resistência. Conversamos brevemente com Pedro Diógenes por telefone para saber mais acerca de suas motivações como artista e da preocupação sócio-política que perpassa esse melodrama repleto de signos. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo.
O que era importante para você e o Guto transmitir com Inferninho?
O filme junta dois coletivos de Fortaleza, o Alumbramento, do qual faço parte, e o Grupo Bagaceira de Teatro. Sempre nos paqueremos, gostamos das peças deles e eles dos nossos filmes. Nos frequentávamos, por assim dizer, e queríamos trabalhar juntos em algum momento. Principalmente para quem faz arte em Fortaleza, isso de permanecer ou ir para uma cidade como o Rio de Janeiro ou mesmo São Paulo, virtualmente mais visíveis à mídia, é uma das grandes questões, algo que unia os dois coletivos de alguma maneira. Quando nos encontrávamos, esse tópico sempre vinha à tona, então discutir isso era um dos nossos desejos iniciais.
A Deusimar é uma figura com várias camadas, influenciada pelo imaginário da cultura norte-americana. Por que desenha-la especificamente assim?
Foi uma personagem construída com o Yuri Yamamoto, seu intérprete. Muito dos desejos, dos sentimentos e do jeito dela vem de coisas que ele queria trazer à tona. Os atores estiveram presentes em todas as fases da escritura do roteiro, principalmente cuidando de seus personagens. Foi um trabalho conjunto. Quando a Deusimar fala que foi criada bebendo Campary desde os oito anos, isso diz respeito a uma vivência parecida do Yuri. Tem bastante de verdade ali que a gente levou à fantasia, exagerando de certa forma. O Inferninho é praticamente um prolongamento da Deusimar, não apenas o espaço, mas também os demais personagens. O exterior simbólico é representado pelos Estados Unidos, onde está tudo, os famosos, as celebridades, as nossas fantasias relacionadas à cultura pop.
Você e o Guto são parceiros de longa data. Dá para dizer que esse trabalho em conjunto já tem muito de intuitivo ou ainda é um processo muito falado, exposto, debatido?
É sempre tudo muito conversado porque gostamos desse processo. Somos primos, então convivemos desde bem cedo. Fomentamos juntos a nossa paixão pelo cinema, desde crianças, vendo filmes da Sessão da Tarde ou alugando pilhas de fitas VHS. Entramos na escola de cinema juntos e desse modo permanecemos desde os nossos primeiros exercícios. Criar em conjunto, então, é muito orgânico e natural para a gente. Cada filme é um desafio, mas estamos sempre em busca de novos caminhos, vamos ao encontro do risco. O Inferninho é parecido com nosso primeiro longa, Estrada para Ythaca (2010), no que tange a ser viabilizado com pouca grana, casando orçamento e roteiro, mas, ao mesmo tempo, é outra coisa, pois um melodrama com grande elenco e que foca nas atuações.
O Inferninho é um lugar de resistência simbólica. Você acredita que, inclusive de maneiras insuspeitas, ele fala sobre a necessidade de recorrer aos afetos para suportar a barbárie atual?
Ah, com certeza, ainda mais afetos sinceros e livres, sem barreiras e preconceitos. Essa é uma maneira de estar no mundo que incomoda muita gente. Os personagens apenas conseguem ser genuínos ali dentro, não sabemos como eles se comportam fora do Inferninho. Vivemos numa realidade em que o governo atual quer que as pessoas sufoquem seus sentimentos, que não vivam como desejam. Há uma vontade escusa de padronização. O externo está sempre invadindo o Inferninho, até por isso é um cenário ocasionalmente pesado, down, onde os personagens afogam suas mágoas. É um refúgio para ser livre, para trocar afetos sem preocupações, talvez algo impossível lá fora.
Inferninho tem uma figura que visa “matar” aquele espaço repleto de memórias afetivas em prol de um futuro supostamente urgente e necessário. É, em chaves distintas, a preocupação externada pelos filmes do Kleber Mendonça Filho, do chinês Jia Zhangke, entre muitos outros. Acha que essa é uma das chamadas “grandes questões” da atualidade?
Acho que sim. Apesar do Inferninho ser fechado, o fora está sempre à espreita. Todas as grandes cidades brasileiras sofrem com especulação imobiliária. Fortaleza está em transformação constante, com isso apagando memórias e afetos. O Salvador quer desapropriar o Inferninho, também, por ser um local ligado à memória de Fortaleza. É uma alusão nossa ao aquário da cidade que nunca ficou pronto, cujo projeto não previu estudo ambiental e que acarretou o desalojamento de várias pessoas. A especulação imobiliária é um símbolo do capitalismo perverso, de seu lado mais tacanho. Muros, guaritas, seguranças armados, isso tudo são coisas que a gente vê diariamente. Portanto, acredito que esse conjunto bastante atual é quase impossível de ser ignorado. E, assim como é praticamente incontornável para gente, deve ser para um monte de pessoas. Esse underground, o diferente, que também sofre com isso, é composto de lugares que podem desaparecer em pouco tempo por conta dessa especulação desenfreada.
(Entrevista concedida por telefone, em maio de 2019, numa ponte Rio de Janeiro/São Paulo)
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