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Nascido no Rio de Janeiro, Carlos André – ou apenas Candé – Salles começou cedo a se envolver com cinema. Seu primeiro contato foi como diretor de elenco da comédia juvenil Podecrer (2007), de Arthur Fontes. Conhecido agitador cultural na capital carioca, não se acomodou com apenas uma função. Logo estava envolvido no desenvolvimento de roteiros para curtas-metragens. No entanto, parece ter se encontrado como realizador de documentários sobre grandes personalidades do meio sócio-cultural brasileiro. Seu primeiro passo nessa direção se deu com Para Sempre Teu, Caio F. (2014), premiado como Melhor Filme no Festival Mix Brasil. E antes de partir para um mergulho na vida e na obra da cantora Marina Lima – com quem foi casado e viveu junto por anos – ele agora comemora o lançamento de João de Deus: O Silêncio é uma Prece, longa que lhe exigiu cinco anos ao lado de um dos maiores médiuns do Brasil para registrar as atividades e a devoção das pessoas que o procuram. E foi sobre este mais recente trabalho que o cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!

 

Oi, Candé. Para começar, como você interpreta a expressão que dá título ao filme, ‘o silêncio é uma prece’?
Acho que significa que, quando você fica em silêncio, através da meditação, consegue guiar sua energia para vários lugares. A minha experiência lá em Abadiânia, junto ao senhor João, foi assim, na corrente de meditação. Revi muita coisa por lá, e aprendi a valorizar muito mais o outro. Nesse mundo de hoje, em que impera a competitividade, a busca constante pelo melhor, às vezes ficamos ligados apenas no que estamos vestindo, no que se fez ou não, e coisas assim. Isso não tem o menor sentido. Não é o que vai te dar paz, te fazer um ser humano melhor. O silêncio é importante por isso, pois te ajuda a entender o que importa. Até a perceber como você fala com os outros, a atenção que dá a quem a precisa. Muitas vezes, dar um prato de sopa a alguém pode mudar a vida dessa pessoa. Depois de Abadiânia, fiquei mais ligado nos outros como um todo. Antes, isso não passava pela minha cabeça. Era apenas eu, eu, eu. Agora não. O silêncio tem isso, de fazer você repensar tudo. O senhor João fala muito isso. Aliás, tem um quadro lá no centro, com essa frase. Na primeira vez que o vi, soube no exato momento que seria o nome do filme.

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Foram cinco anos acompanhando João de Deus. Foi preciso todo este tempo? Você acha que o filme faz jus às suas intenções iniciais com esse projeto?
O filme faz jus, sim. Era preciso contar um pouco como é a vida do médium João. E também tentar explicar o mundo do sobrenatural que acontece em Abadiânia. Eu fiz um tratamento lá. Parei de beber. Limpei muito as coisas. Com o tempo, fomos ganhando intimidade, fui me aproximando dele. Isso trouxe uma riqueza para o filme. E, na verdade, já estava acostumado com esse tipo de processo, pois foi o mesmo tempo que me tomou o filme anterior. Sou pequeno, faço tudo sozinho. E é tudo muito autoral, também. Requer tempo, é assim que as coisas funcionam, então dá para entender os motivos de todo esse tempo.

 

João de Deus já havia sido tema de outros documentários. Você chegou a vê-los? No que João de Deus: O Silêncio é uma Prece se diferencia destes longas anteriores?
Os outros são muito antigos, pra começar. O último é de 1983, 1984, se não me engano (N.E.: há longas mais recentes, como Healing: Miracles, Mysteries and John of God, de David Unterberg e Harald Wiesleitner, de 2008, e Miracle Man: John of God, de Bill Hayes, de 2009). Acho que o meu tem de diferente o fato de ser muito próximo dele. A ponto de estar dentro de um quadro de hospital apenas eu e ele, entende? São coisas que você não veria de outra forma. Acredito que essa é a grande cereja desse bolo que apresento. Trouxe ele para muito perto da câmera. E ele mesmo, não a celebridade. Podemos vê-lo andando, dirigindo, batizando a filha…

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E por quê fazer um filme sobre João de Deus?
Depois do filme que fiz sobre o Caio Fernando Abreu, gostei dessa coisa de documentar a vida de pessoas. Então pensei: tenho que seguir nessa linha. Só que não tinha a menor ideia de quem abordar a seguir. Por isso, comecei a pedir sugestões a amigos. Cada um falava um nome. Até que um conhecido meu, de São Paulo, um cara que tem muita grana, citou o senhor João. Ele havia curado a esposa dele. Só que antes disso, eles haviam passado pelo mundo todo, visitado todos os médicos, ela estava praticamente desenganada. E quando foi até Abadiânia, foi curada. Isso mexeu comigo, e por isso decidi procurá-lo. E o homem que encontrei é um cara supersimples, analfabeto funcional, mas curandeiro. Na ocasião, o senhor João estava em São Paulo, então fui falar com ele. Perguntei se podia fazer um filme sobre ele, mas me disse que só indo até o centro, em Goiás, pois teria que pedir permissão para a entidade. Aconteceu que fui até lá, e me disseram que eu estava muito sujo, teria que ser limpo, espiritualmente, antes. Topei!

 

Como era o dia a dia das filmagens?
No início, não tínhamos intimidade alguma. Era complicado. Ele me conduzia sempre que julgava necessário, me dizia “filma isso”, “filma aquilo”, mas muitas vezes, também, me fechava as portas, me mantinha afastado. Estranhava a minha presença o tempo todo ali, ao lado dele. E isso começou a me deixar incomodado, também. Afinal, esse filme teria que ter o meu olhar sobre aquela situação, e não o olhar dele. Teve momentos em que achei que não iria conseguir. Até que, numa conversa, abri o jogo e disse que daquele modo não estava funcionando, que precisaria ter acesso irrestrito, decidir o que filmar ou não, e que deveria confiar em mim. Foi quando me perguntou o que eu queria, de fato, com esse filme. E respondi: “a verdade”. E a resposta dele mudou toda a nossa dinâmica: “então pode filmar o que quiser”.

 

João de Deus tem um apelo forte com celebridades, mas você não chega a aproveitar isso – vemos apenas a Cissa Guimarães e a Camila Pitanga, em passagens rápidas. Por que essa decisão de não aproveitar esse viés?
Cara, foi uma coisa muito da narrativa, da história. Achei que esses famosos, se fossem contar algo de novo, que colaboraria com o desenvolvimento da história que estava buscando, estariam no filme. Agora, se fosse apenas para usarmos a imagem deles, então seria melhor deixá-los de fora. Foi bem isso. Por isso usei pouco. Filmei muita gente que acabou não entrando no filme. Não quis me privilegiar dessas pessoas, só para estarem no filme. Queria apenas o que havia me tocado.

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João de Deus e Candé Salles em Abadiânia

As cirurgias espirituais são responsáveis pelas cenas mais fortes do filme. Houve alguma preocupação ao exibi-las em cena?
Não, nenhuma. Aquele é o trabalho dele, e faz aquilo toda quarta, quinta e sexta. Filmei muitas e muitas daquelas cerimônias, e usamos apenas duas ou três em todo o filme. Quis colocar para que as pessoas pudessem ver o que ele faz de verdade. As cenas estão ali, inteiraas, sem cortes nem trucagens. É exatamente aquilo. No início, era uma loucura. Depois me acostumei. As pessoas não sentem dor. É muito doido.

 

Antes de João de Deus, você realizou um documentário sobre a vida de outra personalidade, o escritor Caio Fernando Abreu. Como foi transitar de um universo ao outro e como você relacionaria um trabalho com o outro?
Acho que sou um diretor que conta histórias de amor. Sou muito apaixonado pela obra do Caio. Trabalhei com ele quando tinha apenas 18 anos. Roteirizei uma peça dele, eu era muito jovem. Fomos para o Rio de Janeiro, Fortaleza, viajamos o Brasil, sempre juntos. E o seu João, fui até ele para fazer um filme, e recebi de novo essa onda de amor. Ele é muito preocupado com as pessoas. Se interessa mesmo por elas. Isso tudo foi me enchendo de amor. Sou apaixonado por ele. Ganhei um pai, um guia espiritual, um melhor amigo que irei cuidar pelo resto da vida. Sou apaixonado pelos dois. E quis dividir isso com o mundo.

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Candé Salles, a roteirista Edna Gomes, João de Deus e Cissa Guimarães, que faz a narração do filme, na première no Festival do Rio

João de Deus é ainda motivo de muita controvérsia. A própria decisão dele de se submeter a uma cirurgia convencional gerou polêmica. Como o seu filme deve contribuir para esse debate?
Eu sou católico. Fui até Abadiânia para fazer um filme, não por ser espírita, ou por acreditar nisso ou naquilo. Só que ao chegar lá e ver com meus próprios olhos o que acontece, fiquei impressionado com o poder das entidades que ele recebe. Já levei pessoas que haviam desistido da medicina tradicional que foram curadas por esse poder dele. Foram tantas coisas que vi, que presenciei, que não tinha como não acreditar. Acho que o fato dele ter se tratado num hospital convencional tem sua lógica, e ele explica isso no filme. Ele cuida da parte espiritual, a parte física é responsabilidade dos médicos. Ele gosta muito dos dos profissionais da saúde. Esses são os verdadeiros médiuns, ele costuma dizer. Quem não acredita, não abre o coração, não tem fé, não irá alcançar o sobrenatural. Tem que crer nisso para conseguir o milagre. Ele não é mágico. Teve uma história de um cara, o Alexandre, que ficou nove anos cego para a medicina. Durante todo esse tempo, ele ficou indo ao centro, acreditando naquilo. Depois de nove anos, voltou a enxergar. Se tivesse desistido em 3 anos, não teria acontecido. Ou seja, vai muito da força de vontade, de como se pede, como se comunica com Deus, como se alcança a luz. É uma série de fatores. O que o senhor João faz é limpar o espírito. O resto é com a gente.

(Entrevista feita por telefone na conexão Porto Alegre / São Paulo em maio de 2018)

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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