Nascida na cidade de Parnaíba, a segunda maior do estado do Piauí, no dia 23 de maio de 1965, Karla Holanda é uma cineasta brasileira que está tomando o primeiro contato com o grande público através da história de uma outra grande mulher: Kátia Tapety, a protagonista do seu documentário Kátia. Após ter estreado com o curta-metragem Nas Veias e Na Alma, com Murilo Rosa e Bianca Byington, em 1992, Holanda realizou nas duas últimas décadas mais de uma dezena de outros curtas, tanto de ficção quanto documentais. Mas somente agora se aventura com um longa, ao narrar a história da primeira travesti a ser eleita a um cargo político no Brasil. Exibido dentro das mostras competitivas do 45° Festival de Brasília e da 36° Mostra Internacional de São Paulo, Kátia foi premiado como Melhor Filme, Fotografia e Edição no VI For Rainbow, e chega agora aos cinemas de todo o Brasil. Foi sobre este trabalho com o Papo de Cinema conversou com exclusividade com a diretora. Confira!
Como tiveste o primeiro contato com a história de Kátia Tapety?
Depois que conheci sua história pela internet, procurei seu telefone, liguei e marquei um encontro para três meses dali. Era outubro de 2007; eu morava em São Paulo e em janeiro de 2008 me encontrei com ela em sua região. O fato de a primeira travesti a se eleger a um cargo político no país – foi vereadora três vezes e vice-prefeita – vir de uma pequena cidade cravada no sertão do Piauí, foi o que primeiro me chamou a atenção, além de eu também ser do mesmo estado. Quando a conheci pessoalmente, vi muitas outras coisas que Kátia representava: aquela “senhora” de 60 anos, casada há mais de 20 anos com um homem, adotando dois filhos, tratada com respeito pela população, exercia uma liderança nata, levando doentes aos postos de saúde, aconselhando casais em crise, desenrolando burocracias para aposentadorias, certidões de óbitos ou divórcio. Entendi que isso que a Kátia faz, que a gente pode chamar de política assistencialista, faz toda diferença numa população completamente abandonada, que para conseguir o mínimo é necessário um esforço enorme. Kátia, mesmo com baixíssima escolaridade, impedida pelo pai de estudar em escola formal (ele não queria expor o filho efeminado), salvava muitas vidas ali – com cargo ou sem cargo; candidata ou não candidata.
Por que a decisão de contar essa história através de um documentário ao invés de um projeto ficcional?
Fiz cerca de 15 filmes de curtas e médias durações; a maioria é documentário, mas fiz algumas ficções também. Mas, sem dúvida, o documentário sempre me estimulou mais, sempre me senti mais à vontade num set de documentário que num de ficção, acho que minha personalidade combina mais com documentário. Entre 1992, quando fiz o primeiro filme, até 1999, realizei freneticamente, quase numa compulsão. Resolvi dar um tempo e pensar muito mais no “como fazer”. Só retornei em 2002, com o documentário Vestígio. Dois anos depois fiz Riso das Flores, curta-ficção. Daí, só voltei com Kátia, meu primeiro longa. Seria impensável para mim ficcionalizar a história de Kátia Tapety, principalmente com ela vivíssima, cheia de intensidade – sei que os melhores momentos do filme se devem à “atuação” dela, sendo ela mesma. Passei quase dois anos só pensando em como fazer o filme; tinha uma ideia bem estruturada do que queria, mas soube abrir mão dela quando fui, por muitas vezes, surpreendida nas filmagens, quando a força do momento era maior; procurei me livrar de todos os “rococós” desnecessários; a riqueza que eu tinha era a personagem – sua originalidade, espontaneidade. Entendi que algumas premissas em Kátia seriam importantes durante a filmagem. Assim, privilegiei os planos abertos, buscando profundidade de campo – o entorno era sempre tão rico; o plano nunca estaria encerrado quando parecia que estava, a câmera deveria permanecer ligada. É isso que me estimula no documentário – adequação de um método – ele exige um estado de atenção enorme, quase angústia.
Como foi a sua relação e a de toda a equipe com Kátia Tapety durante as filmagens?
Éramos, no set, uma equipe de cinco pessoas. Nossa função era acompanhar Kátia no seu dia a dia e nos encontros que marcamos. Tornou-se um relacionamento próximo, até íntimo – estávamos juntos por seis a dez horas quase todos os dias. Ela é muito sedutora, rapidamente encantou a todos, embora também manifestasse a força de sua personalidade: por algumas vezes, ela sumia, não aparecia para as filmagens e ninguém a encontrava – eu entendia que ela estava cansada, que precisava ficar sem nós por algum tempo. Esses “tempos” eram sempre bons. Às vezes, bagunçava todo cronograma e agendas, mas quando retornávamos o dia era bem produtivo.
Qual foi a primeira avaliação de Kátia ao ver o filme pronto? Foram sugeridas alterações por parte dela?
Antes de concluir a mixagem e fazer a marcação de luz, exibi o filme para Kátia, marcamos um encontro em Teresina. Eu tinha receio do que ela acharia – ela só havia assistido a filmes na televisão e a ideia de um filme com ela era muito nebulosa. Durante as filmagens, sempre que via um amigo, parente ou conhecido, ela pedia que nós a filmássemos com ele; evidente que a maioria desses encontros não entraram no filme. Temia que ela se decepcionasse com isso. Ela assistiu ao filme comentando, explicando para quem está ao lado quem é tal e tal pessoa, etc, etc. Aliás, em todas as exibições, Kátia comenta, é muito divertido estar ao seu lado. Mas, ao fim da primeira projeção, Kátia me abraçou com os olhos cheios d’água – isso é coisa rara para quem tem o couro curtido – e me disse: “tem uma coisa aí no filme que me pegou, você sabe o que é“.
Kátia, o filme, foi exibido com bastante sucesso durante o 45° Festival de Brasília. O que significou para o projeto essa recepção?
Com Kátia sou marinheira de primeira viagem. A primeira exibição pública do filme ter sido num festival com cerca de 700 pessoas, é uma emoção indescritível. E quando o filme é interrompido no meio com palmas e sorrisos e, ao final, muita gente nos aborda para comentar, é desconcertante. Até então, não sabia em que momento o filme funcionaria mais, que reações tais cenas despertariam. Foi aí que entendi com clareza que um filme se completa, de verdade, quando se encontra com o público. Além de Brasília, Kátia participou de outros festivais, como a Mostra Internacional de São Paulo, o Mix Brasil e o For Rainbow, onde recebeu três prêmios. Mas a repercussão no Festival de Brasília foi determinante para que outros ouvissem falar dele, mesmo que não tenham visto ainda. Matérias importantes foram publicadas em jornais, revistas e blogs, isso gerou interesse de muita gente. Estamos lançando o filme nos cinemas agora no final do segundo semestre de 2013 e, seguramente, a ressonância gerada em Brasília vai ajudar na divulgação.
Dentro do universo lgbt, tão pouco explorado pelo cinema nacional, qual o papel de um filme como Kátia?
Acho que no dia a dia de Kátia Tapety ela faz uma militância em favor dos direitos humanos e pela tolerância que chamo de “silenciosa”, porque ela não usa nenhum discurso elaborado, nem tece teoria. Ela vive como acredita que deve viver, essa é sua maior bandeira. E, acredito, é essa espontaneidade que faz pessoas me escreverem agradecendo a revelação de uma personagem travesti vista com dignidade. Por outro lado, vi pessoas com ranços de intolerância assistirem ao filme e tive a forte impressão de que se sentiram ridicularizadas diante da riqueza da personagem.
(Entrevista feita por email no dia 15 de abril de 2013)