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A 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes apresentou um curioso projeto mineiro filmado quase inteiramente na Uganda. Kevin (2021) nasce da amizade entre a diretora, Joana Oliveira, e Kevin Adweko, mulher ugandense que retorna ao seu país de origem depois de uma longa estadia na Europa. Diante da dificuldade de trazê-la ao Brasil, para filmar suas percepções da nossa cultura, a cineasta decide fazer o caminho oposto, viajando ao país africano no intuito de construir a história de duas amigas que debatem a maternidade, o racismo e as pressões familiares.

O projeto foi apresentado dentro da Mostra Aurora, a principal de Tiradentes, reservada aos cineastas em seus primeiros longas-metragens. O Papo de Cinema conversou com a cineasta sobre o complexo processo desta autoficção entre dois continentes, ajustando-se as circunstâncias e promovendo um olhar muito carinhoso às diferenças. Leia a nossa crítica, e descubra este bate-papo:

 

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Joana Oliveira e Kevin Adweko. Foto: Cristina Maure.

 

Como se deu o processo? A iniciativa da viagem nasceu por causa do filme, ou o filme nasceu por causa da viagem?
Eu conheci a Kevin em 1999, e ficamos muito próximas. Quando fui à Alemanha em 1999, fui babá de uma menina por apenas seis meses, mas a Kevin fez a vida dela na Alemanha. Foram vinte anos. A gente se comunicava a partir disso, e em 2005, voltei ao país para estudar cinema num intercâmbio em Potsdam, do lado de Berlim. A gente se reencontrou, e continuamos próximas. Quando organizei minha festa de casamento, convidei a Kevin, que já tinha tido a primeira filha. Mas ela não tinha dinheiro para fazer a viagem. Comecei a pensar em trazer a Kevin para o casamento, porque seria muito interessante conhecer os pensamentos dela sobre o Brasil. Queria ver o choque entre o que ela imagina ser o Brasil, e o encontro de fato, até por ser uma mulher africana negra.
Depois pensei em fazer um projeto de filme em que a Kevin viria ao meu casamento. Seria uma autoficção, porque a festa já estava programada. Mas estou nessa área há mais de vinte anos, sei que um projeto de filme não se viabiliza rapidamente, principalmente se precisa de orçamento para trazer alguém ao Brasil. No início, a ideia nasceu da vontade de rever a Kevin e falar sobre essa amizade. A Kevin é muito aberta: ela aceitou na hora, mas acredito que ela não sabia exatamente no que estava entrando naquele momento. No início de 2013, escrevi o roteiro com ajuda do André Novais Oliveira, mas ele não pôde continuar no projeto porque o filme demorou muito para ser financiado. O André foi fazer os filmes dele. Em 2014, a Luana Melgaço entrou no projeto também. Embora a ideia inicial fosse trazer a Kevin para o Brasil, este sempre foi um filme sobre a amizade.

É difícil o mundo da aprovação de projetos. As pessoas me perguntavam:
como você garante que essa menina segura a imagem?

O tempo passou, e fui para laboratórios de projetos onde as pessoas não acreditavam no filme. Era difícil explicar de que maneira estas duas personagens seguravam o filme. É difícil o mundo da aprovação de projetos. Eu explicava que eram duas mulheres, que seria o tema era a amizade, mas sem uma atriz. Seria uma autoficção, com parte de documentário. As pessoas me perguntavam: como você garante que essa menina segura a imagem? Resolvi ir para a Alemanha para filmá-la em 2014, para fazer um teste de câmera. Fiquei apenas quatro ou cinco dias – a Kevin me deu muita bronca por isso! Eu e Luana dividimos uma passagem em dez vezes, peguei uma câmera emprestada e fui. Fiz testes, e de fato sentia que a Kevin era capaz de fornecer tudo de que eu precisava enquanto personagem. Eu já tinha certeza disso, mas precisava provar para os outros.
Neste processo eu expliquei no que ela estava entrando: garanti que não seria uma homenagem a uma amiga fofa. A Kevin já tinha visto meu primeiro longa-metragem, um documentário sobre a minha avó. Então ela certamente não era ingênua, até por ser uma mulher muito inteligente. Ela confirmou que aceitaria, e continuamos buscando o financiamento. Quando conseguimos, a Kevin tinha se mudado para a Uganda. No início do projeto, ela tinha uma filha. Depois ela teve o Adam na Alemanha, e sentia que precisava de uma comunidade para ajudar a criar essas crianças. Por isso, voltou à Uganda. Neste momento, ela realmente não teria a menor condição de vir ao Brasil. Pensei que talvez a viagem mais sincera seria se eu fosse à Uganda. Com uma parte do orçamento, nós fomos e filmamos uma parte do projeto. Depois voltamos ao Brasil, e continuamos pedindo financiamento para filmar a segunda parte, um ano e meio depois. De qualquer modo, a ideia era montar a história como uma única viagem.

 

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Os bastidores de Kevin. Foto: Marina Mascarenhas.

 

Por que optou por contar toda a narrativa em planos fixos?
Eu tenho o costume com as minhas amigas de sentar na cozinha e ficar conversando o dia inteiro, sabe? Queria que o filme fosse uma conversa de duas comadres na cozinha. Essa era a ideia, e os planos fixos têm a ver com isso. A partir disso, tivemos que tomar decisões, porque às vezes vinha a vontade de filmar o que a gente escutava fora de quadro. Na estrutura da montagem, as crianças são apresentadas fora de quadro, para depois serem vistas na imagem. Foi uma conversa muito difícil coma  Cristina Maure, porque ela tinha que tomar decisões específicas, mesmo dentro do plano fixo. Eu estava na frente da câmera, então se tinha algo acontecendo, ela precisava tomar essa decisão na hora.
Por exemplo, tem uma cena do filme em que estamos eu, Kevin e as três crianças. Eu começo a brincar com a Jerica, mas a Cristina não sabia se movimentava a câmera para me filmar brincando ou não. Este foi um trabalho discutido durante muito tempo, com a tensão acentuada pelo tempo limitado, porque o orçamento era pequeno. Na primeira vez, ficamos três semanas na Uganda, e na segunda vez, foram duas semanas. Isso pode parecer muito, mas é pouco, porque a gente nunca impôs um sistema de filmagem de ficção. A gente foi no tempo dessa família.
Um dia, chegou o avô das crianças da Alemanha para visitá-las. Eu não poderia dizer ao avô que se afastasse, de jeito nenhum. Eles precisavam de alguns dias juntos, então nós saímos por um tempo. Essa é a construção de um filme vivo, e precisamos respeitar isso. Essas duas mulheres se tratam como personagens, mas impomos limites de até onde podemos ir. Diversos momentos foram vivos, como suspensões de tempo entre as conversas e a vida presente: a feira, levar as crianças na escola, a Kevin querendo participar de uma corrida, e chegando no final, só ela e o carro da polícia escoltando. Em meio a todas as dificuldades, é o caminho que importa.

 

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Os bastidores de Kevin. Foto: Marina Mascarenhas.

 

Diante de tamanha abertura ao acaso, como se construiu o roteiro? O que você fazia questão de retratar em imagens, e o que não queria mostrar?
Eu sou roteirista, não consigo entrar num set sem ter roteiro. Mas as pessoas pensam no roteiro de forma muito errada. Muitas vezes, elas acham que o roteiro é ter um calhamaço de cem páginas, com indicações precisas de diálogos. Eu tinha um roteiro com descrição e objetivos de cada cena, discutidas com a equipe e a Kevin sobre esta primeira viagem. Quando voltei ao Brasil, comecei a montar para ver se a estrutura funcionava. Este era um filme sobre amizade, mas como? Na primeira versão, com a viagem da Kevin ao casamento, era também sobre a tentativa de buscar uma juventude para fugir de problemas da vida adulta. A ideia era encontrar uma leveza da juventude, através do reencontro com a amiga, até a vida adulta chegar com tudo.
Existem os temas que perpassam o projeto – a maternidade, a dificuldade de lidar com pai e mãe, de lidar com os filhos e uma gravidez mal sucedida. Fala-se muito pouco sobre isso em geral. A sociedade cobra muito para as mulheres engravidarem, julga muito aquelas que não desejam ter filhos, ou interrompem gestações indesejadas, e não acolhe as mulheres que perdem filhos de gestações desejadas. Sempre fui feminista, então defendo o direito de escolha. Também queria abordar o racismo: posso ser latino-americana, mas carrego na minha pele uma marca europeia, de certa forma, por causa da branquitude da minha pele. Não tem jeito de fugir dessa questão. Pelo contrário, discutimos esta questão o tempo todo. Quanto voltei ao Brasil e montei com a Clarissa Campolina, trouxemos assessoras de montagem para entender o que funcionava ou não.

Um documentarista do Quênia ficou muito incomodado,
por sentir que o tom da conversa era íntimo demais.

Sabia que o filme ainda não estava pronto, e quando conseguimos o financiamento para voltar, passei a escrever o roteiro de novo com a Laura Barile. Era preciso entender essa estrutura baseada na montagem que existia, para o filme ficar redondo. Na segunda vez, filmamos muito pouco, apenas aquilo que a gente precisava para entrar no filme. A Tatiana Carvalho Costa, colaboradora no roteiro e assistente de direção, me ajudou precisamente nas questões étnico-raciais. Ao mesmo tempo, é muito importante dizer que este não é o tema do filme. Não tem como fugir dos questionamentos: Joana é uma parte minha, porém construída. Ela precisa ser uma personagem frágil, que sente desconforto em sua pele branca na Uganda. Isso confere uma camada ao filme, mas não é essencial. Clarissa e eu voltamos à montagem, ela foi ao Quênia com a Luana para ter a colaboração de uma montadora queniana, e mostrar o filme aos quenianos, para ver se funcionava. Eu não fui nesta etapa: era importante estar ausente, porque a minha imagem poderia gerar desconforto, porque eu também estava em cena.
Nunca quis tratar a África como um saco, mas Quênia e Uganda são irmãos. É a região do lago Vitória. Quem dividiu o país foi o colonizador, mas eles compartilham muita história. A Irene Nduta Mungai, que participa do filme, trabalha no Quênia, mas mora na Uganda, por exemplo. Luana me disse que um documentarista local ficou muito incomodado, por sentir que o tom da conversa era íntimo demais, e ele não deveria estar escutando aquilo. Algo importante para nós era saber se, de alguma forma, a gente exotizava a África, o que diversos cineastas europeus, em especial, fazem. Na volta ao Brasil, mostramos o conteúdo aos cineastas brasileiros, até chegar ao corte final. Foram poucas mudanças, muito precisas. Nessa segunda fase, o trabalho de montagem era apenas para refinar. É importante falar disso, porque roteiro e montagem constituem a narração.

 

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Kevin Adweko. Foto: Cristina Maure.

 

A discussão sobre o olhar estrangeiro me parece tão importante quanto aquela do racismo, nesse caso.
Eu não tinha intenção nenhuma de dar conta da Uganda. Eu nem conheço o Brasil inteiro, jamais entenderia, em algumas semanas, um país tão complexo quanto a Uganda. Mas então pensei: como filmaria uma história de amizade na minha cidade, em Belo Horizonte? Não ficaria explicando a complexidade da cidade, não seria essa a intenção. Queria mostrar a vida dessas duas mulheres, e entender a Uganda através do que a Kevin queria me mostrar. É claro que a Uganda está presente nas várias línguas faladas, na minha cara de gringa, na cena em que eu derrubo tudo numa loja, para demonstrar o meu desconforto. A gente fugiu de todas as formas de exotizar a Uganda, ou dar conta de algo maior do que a relação dessas duas. Nem a relação entre elas é algo de que o filme pode dar conta por completo. A gente trata com elipses, claro. Algumas pessoas vieram me perguntar: “Mas vocês foram na boate?”, porque a Kevin fala, em certo momento do filme, que a gente precisava conhecer a boate local. O filme nunca vai agregar tudo, as pessoas nunca vão saber de tudo o que aconteceu. Mas fomos à boate, claro!

 

Qual era a importância do material de arquivo neste contexto? Você usa fotos da juventude, o vídeo do seu casamento…
A gente filmou o meu casamento em 16mm. Era uma filmagem para o Gustavo e para mim, mas o projeto do filme já existia. Na minha cabeça, queria filmar o casamento e depois captar a Kevin em 16mm, dançando na festa, para incluir naquele outro projeto da vinda dela ao Brasil. Mas eu gosto de arquivos e de formatos. No meu outro longa-metragem, Morada (2010), coloquei imagens da minha mãe de 1953. Era o único rolo que minha família tinha, de uma câmera emprestada. Procurei imagens da avenida Antônio Carlos, em Belo Horizonte, e também coloquei. Gosto de trabalhar a memória. A Luana, produtora do filme, me perguntava: Joana, quem guarda um maço de cigarro durante anos? Talvez eu seja meio acumuladora! Mas penso no que esse objeto significa dentro da minha memória afetiva. As fotos dão uma ideia do tempo que Kevin e eu somos amigas: não é preciso explicar muito o tempo quando temos uma foto dela tão novinha, saindo da adolescência. Depois tem duas fotos de 2005. Essa é a marca do tempo, é o real que cruza com a chave ficcional. É essa briga de linguagens: não é preciso definir o que é documentário, o que é ficção.

 

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Os bastidores de Kevin. Foto: Marina Mascarenhas.

 

Como vê a carreira do filme, que estreou num festival online, e enfrenta as salas parcialmente fechadas?
Está todo mundo muito perdido. O filme deveria ter ficado pronto no início de 2020, mas tive um problema com a minha retina, que rasgou. Passei por uma cirurgia, e precisei de repouso durante meses. Depois disso veio a pandemia, e o filme ficou totalmente parado até outubro, quando tivemos a sensação de que talvez as pessoas estivessem mais acostumadas à vida online. Mesmo à distância, retomamos. Faltavam a sonorização, os créditos e a mixagem de som. A gente apostava na Mostra de Tiradentes. Já existia um agente internacional, mas primeiro a ideia era tentar a Mostra Aurora. Isso é muito importante para mim, que sou mineira, e tenho toda a minha trajetória de vida atravessada pelo festival. Tive muitos curtas como diretora no festival, mas também participei de outros projetos enquanto técnica. Sou assistente de direção, dou assessoria, escrevo roteiro, produzo. Sempre estou envolvida nos filmes, e Tiradentes era muito importante para nós.
Ficamos felicíssimos quando veio a resposta positiva da seleção. É estranho estar na Aurora em versão online, sem subir no palco. Mas conversei com a Luana depois que o filme foi aceito, e disse que essa foi a melhor notícia que tivemos desde março de 2020. Não me importo que seja online. Antes, queria trazer a Kevin para a estreia: ela finalmente viria ao Brasil com todas as crianças. Mas não foi possível. Não tenho ideia do que vai acontecer com o filme, porque ainda não consigo assimilar como foi essa estreia. Quando a exibição é presencial, nós acompanhamos a tenda de Tiradentes, que tem 700 lugares. Você percebe na hora: se as pessoas estão gostando, elas ficam; senão, levantam, vão embora. Existem os comentários no final, e as críticas, além do debate no dia seguinte com o retorno do público. Agora, ainda não tenho ideia de quantas pessoas assistiram ao filme, ao mesmo tempo em que estou recebendo retornos de pessoas que nunca imaginaria, incluindo realizadores e realizadoras. A estreia online não dá muita noção, ainda, do que está acontecendo. Talvez 300 pessoas tenham visto, talvez tenham sido 2.000 pessoas.

 

A própria Kevin já tinha visto o corte final antes da Mostra de Tiradentes?
Tanto no longa com a minha avó, quanto em Kevin, era importante que estas personagens estivessem conscientes do que eu faria com a imagem delas e com a vida delas. Mostrei o corte para a Kevin quase como uma fase de aprovação mesmo. A Kevin já tinha assistido, até porque precisamos fazer gravações de áudio com ela em estúdio, na Uganda, para arrumar uma ou outra cena. A mensagem de WhatsApp que ela me manda, por exemplo, precisou ser regravada por questões de som. Então ela estava muito consciente o tempo todo. Ela não me dizia muito o que achava, só ria bastante. A Kevin não conseguia parar de rir. Cada vez que eu converso com ela, ela me diz que eu sou louca por ter feito esse filme.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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