A paraguaia Ana Ivanova ficou conhecida do público brasileiro após vencer o Kikito de Melhor Atriz no Festival de Gramado de 2018 – dividido com suas colegas Ana Brun e Margarita Irun – por As Herdeiras (2017). Estreitando seus laços com o Brasil, foi escalada adiante para interpretar a narradora de King Kong en Asuncíon, o grande vencedor de Gramado em 2020. Pé quente ela, não? Ana dá timbre, cadência e tom a uma personagem onisciente que permite ao espectador estabelecer pontes com o protagonista vivido pelo saudoso Andrade Júnior. Conversamos remotamente com a atriz para saber como foi o processo de concepção dessa figura que, conforme suas palavras, existe em meio a uma “tirania absoluta da imagem”. Curiosamente, durante o nosso bate-papo via programa de vídeo, em vários momentos a imagem dela congelava por conta da oscilação do WiFi. Mas, a voz permanecia fluindo. Informada sobre isso, ela riu e disse: “é o espírito de King Kong pairando sobre a nossa conversa”. Ana Ivanova é uma entrevistada entusiasmada, generosa e que pondera extensamente sobre os tópicos propostos. Confira essa deliciosa conversa com a atriz paraguaia que interpreta uma figura vital do filme de Camilo Cavalcante.
Quais foram os principais desafios para criar uma personagem sem corpo?
O primeiro problema de trabalhar somente com a palavra falada é que estamos no século da imagem, da tirania absoluta da imagem. Por exemplo, no Instagram a foto carrega um discurso e geralmente o público não se apropria tanto quanto do equivalente que consta na legenda. O cinema se voltou muito à imagem, mas porque o mundo se tornou absolutamente visual, muito menos de escuta. Este é o primeiro desafio: a falta de costume generalizada de deixar que a voz dispare a imaginação. No começo me assustou porque era um desafio grande. Era estar muito tempo narrando, sustentar, envolver sem imagens, ademais, com uma fotografia tão imponente como a do filme. Andrade Júnior é praticamente um touro em cena, ele tem uma presença muito poderosa que carrega um discurso.
E como foi a sua relação com o texto?
O texto é da escritora brasileira Natália Borges Polesso. Li primeiro em português. Depois, ele foi traduzido por Alba Azevedo (português-espanhol) e Lilian Sosa (espanhol-guarani). O texto é poderoso, existencial. Mas, para não ser tragada e desparecer numa ideia de que simplesmente o estou lendo, enfim, para criar foi algo difícil. E o desafio cresce por ser em guarani, língua com gramática e estrutura diferentes das do português e espanhol. Então me deparei com todos os desafios possíveis (risos). Ensaiei bastante durante dois meses e também pude explorar meu corpo como um instrumento musical. A partir disso investiguei as maneiras de dar cor, cadência e forma às palavras. Busquei inicialmente uma voz grave. Depois, Camilo Cavalcante, que é um excelente diretor de atores, pediu para eu não ir rápido. Ele disse: “a morte não tem pressa”. Não imagino uma senhora cansada ao projetar a voz, pois ele me disse para imaginar o que eu quisesse. A personagem é alguém diferente na cabeça de cada espectador. Agradeço à experiência riquíssima, inclusive porque a partir dela estou fazendo outros trabalhos de voz.
Muitas vezes a narração em off é uma muleta no cinema. Neste filme não, pois ela é uma personagem que conhece passado, presente e futuro. Você tinha essa preocupação de não fazer da voz um mero facilitador para a identificação do espectador?
Que pergunta interessante. No processo surgiram muitas coisas boas para pensar isso. Por exemplo, provavelmente o espectador fique com a expectativa de que em algum momento vai enxergar a dona da voz. Voltando àquela ideia da tirania da imagem, geralmente quem tem uma voz precisa ter uma imagem. Mas, ela nunca aparece. Pensei que isso pode decepcionar muitas pessoas. Porém, a proposta é fazer justamente essa voz não ter uma forma definida. O filme é um fragmento da vida. Não pode abraçar tudo. A voz é apenas uma voz. Gravamos depois das filmagens, então eu já tinha assistido a um corte. E o filme é um trajeto, em nenhum aspecto está preocupado em resolver as coisas. Além disso, filmes silenciosos também podem cansar. O Velho é um sicário que deseja matar o presidente, que sabe da vida, mas desconhece a morte. É maravilhoso como dentro desse personagem cabe um menino.
E você é pé quente em Gramado. Depois da vitória com As Herdeiras veio a de King Kong en Asunción. Como você enxerga essas premiações?
Esse é um terreno delicado. Sou parte da indústria, mas não sei se está bem dizer que um filme é melhor do que o outro. Fui jurada em festivais e existe a questão subjetiva. O voto às vezes tem a ver com qualidade estética, às vezes é um gesto de simpatia diante de um discurso necessário. Não sei se precisamos dizer que um filme é melhor que o outro, embora quando o nosso ganhe a gente se sinta muito bem (risos). O que acontece com uma produção depois das premiações? Ela terá mais visibilidade e sucesso econômico? Há de pensar também em termos industriais, pois o audiovisual gera muitos empregos diretos e indiretos. Nesse sentido, os festivais e os reconhecimentos são importantes. Seria ingênuo da minha parte dizer que isso não é necessário. No entanto, há vários filmes maravilhosos que não são premiados.
Como você está enxergando a crise do audiovisual do Brasil, com desmantelamento da Ancine, incêndio da Cinemateca Brasileira, isso tudo dentro de uma crise sociopolítica maior?
Primeiro de tudo, toda minha solidariedade ao pessoal que faz audiovisual do Brasil. O incêndio da Cinemateca de vocês realmente é um ato brutal aos olhos do mundo. Amo o Brasil. Para mim, o país de vocês é um continente misterioso. Atualmente me vejo apaixonada pelo sertão nordestino, por Glauber Rocha. Assisti a todos os filmes dele. Adorei ir a Recife. Estou apaixonada pela resistência desse povo tão maltratado. Há o coronavírus, mas pelo que sei também existe uma crise econômica muito grande, como também persiste no Paraguai. O Brasil poder ser uma grande potência cinematográfica, mas que bom que tenhamos cada vez mais coproduções. Acredito nas conexões dentro da América Latina. Enxergo Bolsonaro como um nazista mutilando um povo valente que resiste. A cultura vai ser sempre um estandarte para o levante contra a impunidade. Isso é algo que não se pode tirar de nós. Não posso fazer que não enxergo o que vem acontecendo no Brasil. Me implica, me importa. Torço para que o país tenha força para resistir e abolir a tirania. Que o Brasil seja tomado pelo espírito livre da América Latina.