Em cartaz nos cinemas brasileiros, Knives and Skin (2019) apresenta uma mistura inesperada entre o terror, a comédia, a fantasia e o cinema LGBT. Na trama, uma adolescente desaparece após um encontro com o esportista mais famoso do colégio. Conforme os policiais buscam pela garota, os amigos, pais e vizinhos começam a mostrar as fissuras de suas famílias perfeitas.
Transitando entre o cinema popular e o cinema experimental, Jennifer Reeder efetua uma crítica à sociedade norte-americana através de elementos mágicos, apostando em efeitos visuais, luzes rosas e lilases em escolas e cozinhas, além de sequências musicais. O Papo de Cinema conversou com a cineasta sobre este projeto tão especial, que estreou no Festival de Berlim:
Você diria que Knives and Skin subverte os clichês sobre a juventude norte-americana?
O filme expande alguns universos que eu criei nos curtas-metragens antes de fazer este longa-metragem. Por ser uma diretora norte-americana, tem algumas coisas que me interessam nos códigos da adolescência dos Estados Unidos em particular. Em Knives and Skin, eu também queria investigar os códigos do terror, partindo da premissa de uma garota desaparecida. O cinema de terror, não apenas americanos, está repleto de histórias de garotas mortas. Eu queria construir um mundo capaz de mergulhar nesses clichês, pelo menos no aspecto imagético. Por exemplo, a líder de torcida sempre usa suas roupas de líder de torcida, a garota da banda vai a um encontro amoroso usando o uniforme, o xerife está sempre de uniforme, o esportista usa a jaqueta da equipe o tempo todo.
“Este mundo está próximo de uma história em quadrinhos,
mas incluindo melodrama”
Isso não é necessariamente autêntico e realista, porque as pessoas mudariam de roupa. Mas eu queria criar personagens emblemáticos, dentro de um mundo que pairasse um pouco acima da realidade. Trabalhei com histórias cruzadas, diálogos pesados e um conjunto de imagens sombrias, para então trazê-los à realidade. Este mundo está próximo de uma história em quadrinhos, mas incluindo melodrama dentro do universo visual. Por este motivo, algumas pessoas ficam muito atraídas pelo filme, e outras não o suportam. A combinação desses elementos pode parecer excessiva, e eu compreendo isso. Mas para quem consegue mergulhar neste mundo, é como pular cordas pulas ou nadar em alto mar: se você se ajustar ao ritmo particular, vai adorar. Senão, vai ficar enroscado nas cordas ou bater nas pedras.
Que papel o humor desempenha dentro de uma história tão sombria?
Eu poderia fazer esta pergunta a mim mesma, na vida real. Eu sou a maluca que sempre procura alguma piada, mesmo nos momentos sombrios e sérios. Procuro o humor de uma observação absurda, ao contrário da comédia rasgada com pessoas de estapeando e caindo da cadeira. Na vida, os momentos absurdos rompem com a tensão. Procuro isso na vida real: prego muitas peças e costumo rir de coisas inapropriadas no meio de uma briga. Quero injetar observações absurdas nos meus filmes – seja algo que eu mostro apenas ao espectador, ou alguma atitude dos personagens. Em Knives and Skin, rumo ao final, percebemos que a mãe tinha fingido à gravidez, e a família esboça uma reação à mesa. A conversa é tensa de verdade, e a família exige um pedido de desculpas da mãe.
“Quero injetar observações absurdas nos meus filmes”.
Duas coisas engraçadas acontecem ali: o filho pergunta “Mas o bebê falso era do pai, pelo menos?”, o que não faz sentido; e o marido está chorando, pedindo para ela dizer algo significativo naquele momento. Ele pergunta: “No que você está pensando?”, e ela responde: “Star Wars”. Certo, ela se referia à cena em que a princesa Léa pede ajuda, e de certo modo a personagem também está pedindo ajuda, mas isso aconteceu comigo de verdade. Meu marido estava fazendo uma pergunta séria a um dos meus filhos, e perguntou no que estava pensando. Meu filho tinha seis ou sete anos, e respondeu: “Star Wars”. Ele não estava tentando fazer graça, nada disso. Knives and Skin busca conexões entre os personagens, e enquanto indivíduos, esta conexão sempre vai ser muito específica e pessoal. Para uma pessoa, a conexão pode ser uma confissão, ou então algo mais anedótico e misterioso. De qualquer modo, estas observações absurdas me interessam demais: eu não resisto a colocar uma piada no final de cada cena.
A fotografia traz uma iluminação colorida, cheia de tons não-naturalistas. Como optou por esta linguagem?
Eu não fiz faculdade de cinema, e sim de artes plásticas. Todos os meus vídeos se inseriam em projetos de artes plásticas, e foi assim que comecei. Fazia meus projetos ao lado dos escultores, desenhistas e fotógrafos. São pessoas para quem a cor e a textura possuem profundo significado sentimental. Quando passei a fazer cinema, a linguagem visual se tornou uma prioridade, e por isso, quis proporcionar experiências aos espectadores. Em Knives and Skin, usamos uma bela lente anamórfica com a janela ampla, e as cores se tornam ainda mais estranhas, menos familiares. Quis banhar o filme em cores rosa e lilás, que costumam ser bastante femininas, embora não se restrinjam a nenhum gênero.
“Quando passei a fazer cinema, a linguagem visual se tornou uma prioridade”.
Trabalhando com o diretor de fotografia, disse que queria uma obra banhada em cores, alguns tons acima da realidade. Adoro o giallo italino. Em Suspiria (1977), Dario Argento cria a estranheza através da luz. Não queria que as cores atrapalhassem a experiência do filme, e sim que trouxessem o espectador para a trama. Por isso usamos algumas cores pontuais destoantes da realidade, como uma luz rosa dentro da cozinha, ou uma luz lilás vinda do cômodo ao lado. Os espaços se tornam vivos e adquirem uma aura. Alguns elementos do filme brilham, incluindo a estampa da camiseta – nesta hora, vamos para o realismo mágico. Dirigir é arte, então os cineastas precisam pensar no desenho das cores, e no registro emocional provocado pelo posicionamento das luzes, das textura, dos volumes.
A música também desempenha um papel emocional importante no filme.
É verdade. Eu tenho experimentado bastante com música nos curtas-metragens, porque isso pode ser bem arriscado. Adoro música e o poder da voz humana, embora não saiba cantar. Queria ver se poderia criar momentos de beleza, harmonia e sincronia dentro destes mundos repletos de falhas, onde os personagens cometem muitos erros. Gosto dos filmes super sombrios, cheios de tensão e sem trilha sonora, mas também acho pesados demais. Não quero que os espectadores saiam dos meus filmes desesperançosos. Prefiro encontrar espaço para redenção, lembrando que seremos melhores juntos. Uma voz cantando pode ser linda, mas diversas vozes reunidas, em harmonia, é extraordinário. Experimentei com cenas musicais nestes curtas que foram para diversos festivais, e então concluí que os espectadores conseguem absorver isso, e gostam desses trechos. Na hora de preparar Knives and Skin, decidi ter algumas cenas de canto.
“Quis usar canções dos anos 1980
e retrabalhá-las como lamentações ou canções de ninar”.
As músicas pop dos anos 1980 evocam o auge do cinema adolescente norte-americano. Penso nos filmes de John Waters, ou em Sonhos Rebeldes (1983) e Picardias Estudantis (1982). Não quero dizer que não existem ótimos filmes adolescentes norte-americanos produzidos nos últimos 15, 20 anos, mas foram as produções dos anos 1980 que consolidaram o imaginário da juventude no país. Quis usar canções dessa era, e retrabalhá-las como lamentações ou canções de ninar. São músicas famosas: muitas pessoas ainda escutam “Our Lips Are Sealed” e “Girls Just Wanna Have Fun”, mas queria torná-las diferentes ao atribui-las a um coral de meninas. Além disso, as músicas são usadas de maneiras diferentes: há canções diegéticas, cantadas pelo coral de alunas, e também experimentais, quando as duas meninas apaixonadas se fundem uma na outra, além da minha homenagem a Magnólia (1999), quando os personagens cantam uma mesma canção em espaços separados. Sabia que existiriam usos diferentes para as músicas, e cada uma tem o seu lugar. O filme tem elementos de terror, sem ser apenas uma história de terror; ele tem elementos adolescentes, mas dificilmente poderia ser chamado de “filme adolescente”; ele traz cenas musicais, mas jamais diria que fiz um musical.
Enxerga Knives and Skin como parte de um cinema LGBT?
Com certeza. Foi muito divertido ler a respeito nas críticas. Quando o filme estrelou em Berlim, ele foi indicado ao prêmio Teddy, mas um crítico reclamou que o filme não era queer o bastante. Construí um mundo onde duas garotas se apaixonam, além de existir uma líder de torcida que aparenta ter um comportamento, mas depois mostra outras atitudes. Mas não quis fazer algo sobre a saída do armário, nem filmar alguma cena com as meninas sendo surpreendidas no banheiro, e agredidas em consequência. Queria que a sexualidade estivesse além disso.
“Existe um aspecto queer no filme como um todo”.
O filme também traz outros personagens queer: por exemplo, o garoto vestido de mascote da equipe negocia um tampão com vodca, oferecendo em troca a camisinha que ele pretendia usar com o novo garoto, que nunca chegou. Isso não garante que ele seja gay, mas existe um teor não heterossexual nele. Além disso, existe um aspecto queer no filme como um todo, pelo uso de luzes e de glitter. Sempre construí histórias fora do cenário tipicamente heteronormativo, explorando fronteiras entre gêneros. Isso me parece mais autêntico em relação à juventude de hoje. Os adolescentes estão em busca de suas identidades, dentro de um mundo diverso e vibrante. O aspecto queer é certamente voluntário.
Este retrato de uma cultura tipicamente americana foi percebido da mesma forma nos Estados Unidos e nos festivais europeus?
Quase todos os meus curtas tiveram estreias europeias, em Roterdã, Berlim, Vila do Conde, Londres. Acho que meus filmes foram exibidos mais vezes nos países de língua alemã (Alemanha, Suíça, Áustria) do que no meu próprio país, há 20 anos já. Percebi que tenho fãs especificamente por lá, talvez por existir uma relação de guilty pleasure com a cultura norte-americana. Meus filmes também são sombrios, cínicos e autorreferentes para articularem um discurso crítico. Os países europeus têm uma tradição narrativa, herdeira da literatura, muito maior do que os Estados Unidos. A estreia em Berlim foi ótima, porque a imprensa estrangeira sempre compreende melhor os meus trabalhos. Eles entendem os diálogos e a noção de cinema enquanto obra de arte.
Nos Estados Unidos, tive uma ótima crítica do Los Angeles Times, mas o New York Times apenas escreveu algo do tipo “Não entendi”. Foi uma reflexão bem preguiçosa, comparando Knives and Skin com Twin Peaks. Eu adoro esse filme, mas a aproximação foi automática demais, sem qualquer esforço para compreender o ritmo particular do filme. A estreia americana aconteceu no festival de Tribeca, o que gerou uma experiência bem interessante. Knives and Skin foi exibido na Sessão da Meia-Noite, junto dos filmes de gênero. Para mim, o gênero está adjacente no filme, pois não o vejo como um slasher, nem um terror. Eu era a única diretora mulher, e tinha certeza que seria destruída pela imprensa especializada em terror, tipo Bloody Disgusting, Dread Central e Fangoria. Mas foi o contrário. Fui aos festivais de cinema fantástico, e percebi que as pessoas gostavam desse filme.
“É importante que todos os públicos possam se ver nos filmes
sem ser aquele personagem assassinado nos primeiros dez minutos”.
A imprensa especializada em terror e os grandes fãs de terror são bastante cinéfilos, eles assistem a muitos filmes. Eles gostaram de ver o feminismo, o empoderamento e a representação de pessoas negras, que consideraram importante para a nossa época. Muitos filmes de terror ainda se desenvolvem dentro de um mundo branco, masculino e cisgênero. É importante que todos os públicos possam se ver nos filmes sem ser aquele personagem assassinado nos primeiros dez minutos. Adorei as críticas de gênero, que mencionaram o surrealismo, a fantasia e os elementos disruptivos. Eles foram além de David Lynch nas referências, pensando em David Cronenberg, Maya Deren e outros. Por isso decidi que pretendo continuar explorando o cinema de gênero nos próximos trabalhos, com estruturas de roteiro diferentes.
Este é o caso do projeto em que está trabalhando agora?
Bom, na verdade o projeto mais próximo de Knives and Skin é um longa-metragem sobre troca de corpos, que vou filmar neste outono. Eu escrevi e vou dirigir, mas ainda estamos fechando todos os acordos de financiamento. Coincidentemente, uma amiga que escreveu um ótimo conto de fantasmas conseguiu o financiamento antes, então decidimos fazê-lo primeiro. Estamos filmando em apenas 13 dias, com sete atores, numa única locação. Este é o projeto perfeito para realizar na esteira da pandemia de Covid-19, respeitando os protocolos de segurança. Estamos quase terminando as filmagens. Adorei o roteiro, embora não o tenha escrito. Mesmo assim, consegui trazer meus traços de diretora ao projeto, e acredito que vai ter imagens lindas. Foi ótimo voltar a filmar, apesar das limitações que ainda enfrentamos. Espero filmar este outro projeto ainda em 2021, o que me parece incrível. Passamos 2019 e 2020 sem poder fazer nada, e de repente consigo filmar dois longas-metragens seguidos em 2021. É o melhor dos mundos.
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