Meu primeiro contato com a obra de Lina Chamie foi há mais de vinte anos, quando fui ao cinema assistir ao longa de estreia dela como realizadora, Tônica Dominante (2000). Desde então, ela levou seus longas para os festivais de Cannes e Gramado, recebeu indicações ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e para o Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro, foi premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e tem se mostrado incansável, transitando entre o documentário e a ficção, entre os curtas e os longas, sempre com muita desenvoltura. Somente agora, mais de duas décadas depois, é que sentamos pela primeira vez para uma conversa, e o motivo foi seu mais recente trabalho, o aguardado Kobra Auto Retrato, que está chegando aos cinemas após exibições na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e no Festival do Rio. No bate-papo a seguir, a cineasta falou de suas intenções sobre esse projeto, sua relação com o artista Eduardo Kobra e também como analisa a importância da crítica de cinema. Confira!
Oi, Lina. Prazer falar contigo. Me conta, como foi o seu primeiro contato com o Kobra?
Esse filme começou de um jeito super espontâneo. Foi um presente que ganhei, pode-se dizer. Em 2018, o Edson Veiga, um jornalista amigo meu, um cara superculto que trabalhava no Estadão, aqui em São Paulo, me mandou um e-mail bastante direto, que perguntava: “Lina, você quer conhecer o Kobra?”. Não tive dúvidas, e respondi na hora: “quero”. Até aquele momento o conhecia apenas pelos murais, pela relação dele com a cidade, era algo que admirava muito. Então, graças ao Edson, fui ao escritório do Kobra e só quando cheguei é que percebi que seria uma reunião. Foi meu primeiro contato com ele, e já para discutir uma proposta de trabalho: naquele ano o Kobra iria participar de um projeto imenso nos Estados Unidos – e, de fato, acabou indo. A missão dele era pintar 18 murais por Nova York. E queriam que alguém o filmasse durante a realização desse trabalho. Só que era algo para dali a dois ou três meses, impossível fazer uma pré-produção em tão pouco tempo.
Bom, ao invés de um presente, você ganhou um dilema, pelo jeito. Qual foi a sua resposta?
Tive que falar a verdade. Que não teria como, em tão pouco tempo, levantar um filme pra ir atrás dele. Mas entenda, queriam algo específico sobre esse projeto apenas. Acredito que Nova York seja a cidade em todo o mundo com mais pinturas do Kobra. É impressionante. E é, também, a primeira influência no trabalho dele. Mas enfim, essa questão, portanto, não tinha como ser feita. Foi quando tive a ideia: “por quê não fazemos um filme sobre você?”. Ou seja, não falar de um só trabalho, mas de toda a vida. Ele gostou da minha sugestão. E o resultado é o Kobra Auto Retrato. Pois esse é um filme sobre ele. Sei que você escreveu sobre o filme, e não gostei muito da tua crítica (risos).
Opa, então diga aí. Esse momento de troca é muito importante.
Com certeza. Importante para nós dois. Acredito que um realizador possa aprender muito com uma crítica. A gente fica muito fechado quando está fazendo um filme, então é importante quando chega alguém de fora com um outro olhar sobre o nosso trabalho. Penso que é uma relação subestimada, a do cineasta com o crítico de cinema. As pessoas acham que é só uma avaliação, mas é mais do que isso. É um diálogo de grande potencial instrutivo. Acho que para ambos, e para o cineasta mais ainda.
Muito legal ouvir isso de você. No entanto, você não concordou com a minha crítica. Por quê?
Eu entendi a sua abordagem. Você olhou o filme de fora, com todas as questões que vão surgindo, e muitas você pontua de forma bastante pertinente, pois, de fato, estão no filme. Mas não estou dando autonomia a essas questões, que é o que você afirma ter sentido falta. Este é um filme, do meu ponto de vista, e estes foram os meus esforços, sobre a pessoa dele. A minha referência foi aquele sobre o David Lynch, A Vida de um Artista (2016), que não inclui, na edição, um único longa assinado por ele. Fala mais da pessoa, das pinturas, a infância. Me marcou muito. A frase final, quando o artista para, pensa um pouco, e diz: “E foi tão lindo”. E acaba. Entendo perfeitamente quem é David Lynch e porque ele faz aquele cinema. Porque não é um filme em três atos, porque não tem uma narrativa linear… porque ele é um pintor! Não é um dramaturgo tradicional.
Um filme pode nascer a partir de outro?
Absolutamente. Tem um momento, não sei se você se lembra, que o Lynch para, olha para o quadro que está pintando, e diz: “por quê você não se mexe?”. A gênese do cineasta, e porque ele faz seu cinema daquele jeito, pra mim esse documentário vai exatamente nesse lugar. Quando falo pro Kobra: “vamos fazer um filme sobre você”, realmente quero mergulhar naquela pessoa. É muito difícil fazer um longa sobre um cara que está vivo, e que vai continuar trabalhando. Você chega a dizer no seu texto: “esse não é o documentário definitivo sobre o Kobra”. E não é mesmo, tens toda a razão. Porque ele vai seguir. O que busquei não é o que você sentiu falta, embora esteja lá, mais do que acho que você percebeu. O que busquei foi: “quem é esse cara e por quê ele pinta desse jeito?”.
O título Auto Retrato é fiel à ideia de permitir que o próprio Kobra fale sobre si mesmo. Desde o início era essa a intenção?
Tá logo no começo do filme. No início já digo a ele: “vamos fazer um filme sobre você”. Mas logo em seguida me perguntei: “e agora? Como fazer isso?”. Foi quando me dei conta que, antes de qualquer coisa, precisava conhecê-lo melhor. Fizemos, portanto, em duas etapas. Fui para um estúdio e fiquei dois dias enfurnada, e resultou na entrevista que percorre todo o filme. E tinha que ser só ele, não queria entrevistar mais ninguém. Acho que, no caso do Kobra, nem teria tanta gente interessante para conversar. Sobre arte de rua? Com certeza. Mas pra acessar a obra dele, me parecia mais interessante deixar que ele mesmo falasse.
Nesse bate-papo com o Kobra, como não deixar monótono?
Pois então, a distância entre nós era pouca. Ficamos próximos, mesmo. Para tanto, tive uma imensa colaboração do Lauro Escorel, foi ótimo você ter perguntado. Foi um privilégio falar com o Kobra, uma imensa honra. O que sabia sobre o filme, no entanto, é que teriam alguns efeitos de pós-produção, que seriam três câmeras e que seria intimista, em primeira pessoa. Porém, durante essa conversa, percorremos lugares difíceis. O Kobra é tímido, um cara mais retraído. Tanto é que não quis fazer o autorretrato, resiste a ir nesse lugar onde é ele com ele mesmo. Foi uma hora definidora sobre como seria o filme, e como teria que ser feito. Queria que fosse uma conversa em um lugar estranho, só nós dois. Não podia ser no local de trabalho, nem na casa dele. Foi um processo de imersão. Depois de ter 5 ou 6 horas dele falando, peguei e transcrevi a entrevista inteira em um caderno. Passei dia ouvindo o que havíamos conversado. Teve momentos, depois, que me emocionei de novo. Foi por essa forma que, de fato, entendi quem era esse cara.
Quando vocês se encontraram para essa entrevista, você tinha uma pauta pronta? Sabia sobre o que queria falar com ele? Ou foi uma conversa mais solta?
Estudei muito sobre ele antes. Mas fui com tópicos, apenas, que não poderiam ser esquecidos, como, por exemplo, as obras dele fora do Brasil. Ficamos um dia inteiro só falando sobre a infância. Uma tarde sobre a adolescência, os tempos de escola. Outro dia sobre São Paulo. E assim seguimos. Depois de toda essa conversa e de, finalmente, entender quem ele era, é que fomos filmar os murais. Para isso, tivemos mais doze diárias.
São discutidas questões íntimas no filme. Teve algum assunto que o Kobra evitou abordar? Como você lidou com estes temas para trazê-los ao filme?
Não, tinha uma resistência mais generalizada, dessa timidez dele. Não era sobre algo específico. Deixei para o meio da conversa, quando imaginei que estivesse mais cansado, ou mais suscetível, que sugeri de filmá-lo fazendo um autorretrato, o que ele recusou na hora: “não”. Ele é um retratista. De pessoas. Mas não queria se ver pintado. Outras pessoas já tinham levado até ele essa proposta, e sempre recusou. É um lugar que não quis se colocar. É a essência do filme, algo que ele não quis fazer, mas a gente se encarregou de realizar. Por isso o título.
A popularidade preocupa o Kobra, de ser chamado de um novo Romero Britto, por exemplo? Pela relação que desenvolveu com ele, como vê que o filme Kobra Auto Retrato possa funcionar nesse sentido?
Isso é outra coisa que acho que está no filme. Ele fala: “as pessoas me conhecem pela cor ou por qualquer outro motivo, mas o que estou buscando está muito além. Estou em busca de uma mensagem”. Ele entende que a rua é o espaço mais democrático e poderoso para falar com todos. O próprio filme vai diretamente nos temas dele. As questões ambientais, indígenas, de defesa dos povos originários. Ele é um ativista da paz. O racismo que ele vê de perto por ser um homem da periferia. A violência dessas regiões, a defesa dos animais. Achar que aquela explosão de cores é simplesmente uma questão decorativa, estética, não dá conta da obra dele. Se fosse apenas isso, não creio que seria visto em todo o mundo do jeito que o veem. Não penso que teriam o chamado para pintar a fachada da ONU, entende? É uma superfície. O filme queria ver o que está por trás, o que move, e não os desdobramentos. É a pegada pela qual me pautei. Entender a essência dele não só por isso, mas também a partir disso. E de onde isso tudo vem? Da periferia, de ser um autodidata, da solidão com a qual lida diariamente, vem de quem ele é.
Tinha a busca dele, portanto, mas também o que você estava atrás com esse filme, certo?
O meu compromisso era com ele. Sou extremamente grata ao Kobra, de coração. Ele foi lá, sentou-se na minha frente, foi generoso e corajoso. Digo isso sempre, e vou continuar dizendo. Ele me deu um filme, e fiz o meu melhor, querendo a verdade dele. A primeira pessoa a quem mostrei esse filme, ainda no meio da pandemia, foi ele. Pedi emprestada uma manhã lá no CineSesc, aqui em São Paulo, e chamei o Kobra e a Andressa, a mulher dele. Os dois sozinhos na sala de cinema. Quando acabou, disse: “o filme inteiro está aqui” – e apontei para o caderno com toda a transcrição da nossa conversa – “se você gostou, gostaria que assinasse”. Ele não só assinou, como desenhou. Isso foi muito importante. O maior elogio também veio dela, que me disse: “o filme é 100% verdade”. Talvez tenha querido fazer um filme um pouco menor do que muitos poderiam ter imaginado, mas não quis abrir para tanto. Penso que esse é o jeito mais potente de um filme durar.
Você é uma diretora consagrada de ficção. Desde São Silvestre (2011), no entanto, tem se aproximado cada vez mais do documentário. Qual a razão desse movimento?
Não foi intencional. Foi absolutamente sem querer, aliás. O meu DNA é de ficção, sempre penso primeiro nesse formato. Tenho, atualmente, projetos para voltar. Mas esses foram acontecendo. Tenho alguns importantes para mim, que um dia ainda irão virar realidade, só que não deu certo até agora. Então, nesse meio tempo, vão surgindo outros convites. Tem um documentário apenas que foi uma iniciativa minha, justamente o São Silvestre. É um filme que gosto muito, exercitei nele algo que busco, que é a relação entre imagem e som. Paradoxalmente, é um filme no qual a imagem é completamente verdadeira – os caras estão correndo – mas talvez seja o mais ficcional dos documentários. E o Kobra Auto Retrato também tem um pouco disso. É fruto de um grande aprendizado. É saudável pular de um lado para outro, recomendo. Mas o fato de todos os últimos terem sido documentários foi apenas isso, uma coincidência.
Assisti ao filme em uma sessão no vão do MASP, ao ar livre, durante a Mostra SP. Kobra Auto Retrato permitirá que o espectador se torne mais próximo da obra e também do artista Kobra?
Tenho recebido retornos positivos. O que me surpreende, até, pois é um longa que percorre alguns lugares escuros, complicados. Tem sido uma boa surpresa, então. Não sei se é um filme para o “grande público”, mas a história é, com certeza. Por um lado simples, mas também complexa, comum a todos, de qualquer jeito. Ele diz: “eu sou mais um”, uma história de superação, de resistência da arte. Gostaria que as pessoas vissem a história do Kobra e compreendessem essa vontade dele, de servir como exemplo.
(Entrevista feita em novembro de 2022 via zoom entre São Paulo e Porto Alegre)
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