Aos 86 anos de idade, a atriz Léa Garcia foi uma das presenças mais reverenciadas da 23ª Mostra de Tiradentes. O festival, que confere grande atenção à produção de mulheres e de artistas negros, recebeu a artista para a projeção do drama inédito Um Dia com Jerusa (2020), dirigido por Viviane Ferreira. O projeto da jovem cineasta possui uma equipe composta quase inteiramente por mulheres negras, a maioria estreante em suas funções.
No filme, Léa Garcia interpreta Jerusa, uma idosa solitária que vive dentro de sua casa à espera da família. No dia do aniversário, ao invés dos convidados, acolhe por acaso Sílvia (Débora Marçal), uma jovem que bate de porta em porta fazendo uma pesquisa publicitária. Quando a garota entra na casa de Jerusa, ambas começam a conversar e compartilham experiências sobre amor, sexualidade e perspectivas para o futuro. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com a atriz sobre este papel:
Jerusa é uma mulher sempre à espera.
Exato. Este é o quase abandono que a maioria das pessoas idosas enfrenta, especialmente no momento atual. Hoje as famílias se afastam, cada um parte para viver a sua vida. Antigamente, há muitos anos, as famílias permaneciam juntas, às vezes dentro da própria casa. Mas hoje se afasta da convivência familiar, se abandona o idoso. Isso produz um sentimento paralisante em Jerusa, que vive sempre à espera. Quando chega Sílvia, fazendo uma pesquisa sobre seu produto, a idosa se agarra à jovem, que está ávida por um lugar ao sol. Sílvia espera o resultado de um concurso público. Mas Jerusa passa por cima de tudo isso e transmite à jovem todo o seu conhecimento de ancestralidade, de identificação enquanto mulher negra. Isso gera em Sílvia uma certa paz. A garota absorve, apesar da grande relutância, este grande conhecimento, e se integra. Você percebe que o filme se adequa ao tempo de Jerusa. Fazer essa personagem foi muito importante para mim enquanto atriz, enquanto mulher e enquanto idosa.
Ela é bastante progressista em relação à sexualidade e à autonomia femininas.
Jerusa é bem aberta. Apesar de se tratar de uma mulher heterossexual, algo que o filme deixa explícito, Jerusa fortalece Sílvia para que ela possa assumir a sua sexualidade. A partir do conhecimento que teve com a mulher idosa, tenho certeza de que Sílvia terá forças para voltar à casa da família e apresentar Letícia, sua companheira. Existe um fortalecimento nesta questão, uma passagem de bastão entre as duas.
Como enxerga a iniciativa da Viviane Ferreira, reunindo uma equipe ainda pouco experiente em cada função, valorizando o potencial de novas artistas negras?
Este é um gesto de fortalecimento e de inclusão dentro do cinema. A equipe do filme tinha pessoas cuja formação não passava pela universidade, vinha da vivência em outros projetos, através da prática mesmo. A possibilidade dada a estas mulheres é a de atuar no audiovisual, de serem incluídas nessa prática. Trata-se de uma intenção política, um gesto político afirmativo essencial.
Percebe uma diferença grande em retratos de mulheres negras elaborados por mulheres negras, em relação ao ponto de vista de homens, ou de pessoas brancas?
Sim. Só um povo pode falar de si mesmo. Você vê o cinema inglês, que é feito por ingleses. O cinema indiano é feito por indianos; o cinema chinês é feito por chineses. Se nós somos vistas por um outro olhar, externo, isso sempre vai cair num estereótipo. Ninguém melhor do que nós, mulheres e homens negros, criadores negros, para falarmos de nós mesmos.
Percebemos melhorias em relação à inclusão de artistas negros no audiovisual, mas qual seria o próximo passo para reforçar a representatividade?
São vários passos: precisamos de políticas públicas, precisamos dar oportunidade a mulheres negras fazerem mais filmes, para assim produzirem filmes melhores. Um não existe sem o outro: a política pública sem oportunidade de realização não é possível, e a possibilidade de fazer filmes sem o conhecimento técnico, sem informações sobre estas políticas públicas, também não resulta num filme. Artistas negros têm a capacidade de transmitir este engajamento. Este sentimento político é fundamental: você precisa saber se o seu posicionamento está presente, de modo a realizar um trabalho que venha a fortalecer todas essas questões.
O fato de se fazer um filme sobre mulheres negras constitui um ato político em si, certo?
Com certeza! Na verdade, a nossa vida está repleta de posições políticas, é impossível viver sem elas. Mesmo sem saber, nós tomamos decisões de natureza política o tempo todo. Então o filme tem esta força de política racial muito grande. Apesar deste momento cruel que estamos vivendo, estamos todos aqui: atores, diretores, realizadores, reagindo e tentando preservar e dar continuidade aos nossos trabalhos, apesar de tudo.
Podemos dizer que o empoderamento da Jerusa com Sílvia reflete o seu empoderamento com Viviane? Existe uma passagem de bastão neste caso também?
Sim, sem dúvida. Quando eu comecei a carreira de atriz, poucas mulheres negras atuavam. Exceto pela Adélia Sampaio, não tínhamos nenhuma outra diretora negra. Tínhamos homens negros na direção, como Waldir Onofre, e depois vieram Joel Zito Araújo, Jorge Coutinho, Luiz Antônio Pilar. Mas entre as mulheres, tinha somente a Adélia. Depois vieram Maria Alves, Iléa Ferraz, Sabrina Fidalgo, Yasmin Thayná, e outras diretoras que realizaram filmes com mulheres negras, atuando como realizadoras. Isso é fundamental.