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A banda Planet Hemp foi uma lufada de originalidade (e polêmica) no cenário musical brasileiro dos anos 90, então tomado por músicas com letras de duplo sentido. Cantando as dificuldades de quem nasceu pobre, periférico, portanto, com chances menores de ascensão social, Marcelo D2 e Skunk criaram uma força que, infelizmente, o segundo não pôde acompanhar até o auge, em virtude de sua morte precoce. Gustavo Bonafé é um dos diretores de Legalize Já: Amizade Nunca Morre (2018), filme que chega aos cinemas contando a gênese do Planet Hemp, bem como as circunstâncias que levaram a parceria profissional entre dois cariocas marginalizados pelo sistema a se tornar a raiz de uma força artística totalmente contestadora e fértil. Trabalhando com Johnny Araújo – seu parceiro em Chocante (2017) – , Gustavo construiu uma narrativa que ressalta lados bem menos turísticos do Rio de Janeiro, além de apontar os holofotes à luta cotidiana que precedeu o enorme êxito nos palcos. Confira o Papo de Cinema que tivemos com um dos cineastas responsáveis por Legalize Já: Amizade Nunca Morre.

 

Gustavo, como chegou até você o Legalize Já?
Trabalho com o Johnny há muito tempo. Fui seu assistente de direção, inclusive em clipes do Marcelo D2. Depois dirigimos alguns juntos. Acompanhei o processo do filme desde o início, até a produção dar uma congelada. Quando ela voltou à tona, tempos depois, eu e o Johnny estávamos com uma parceria bem sólida. Ele disse que o longa precisava de sangue novo, e, como a nossa trajetória conjunta estava caminhando para uma direção compartilhada, achamos que era a hora. Topei imediatamente, além de tudo, porque adoro Planet Hemp.

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Gustavo Bonafé e Johnny Araújo

E como se deu a dinâmica do trabalho com o Johnny Araújo?
Nossa direção é bem conjunta. Ambos presentes no set, opinando efetivamente como diretores e trocando figurinhas. Você tem o rebote da ideia, uma coisa muito legal nesse tipo de parceria. Um vai jogando para o outro e a coisa vai crescendo. Basicamente como acontecia entre o Marcelo D2 e o Skunk. Tenho uma participação maior em fotografia, no que diz respeito a lentes, enquadramentos. O Johnny é mais inclinado a estar perto do elenco. Mas nesse filme isso se misturou bastante. Como tínhamos uma parceria boa, foi bem fácil dividir a direção, pois nos conhecemos e chegamos facilmente aos consensos. Existe uma afinidade até nas referências musicais e cinematográficas.

 

Há a fotografia dessaturada, a direção de arte que ressalta um Rio de Janeiro não turístico. Não faria sentido fazer um filme bem comportado sobre o Planet Hemp, certo?
Não faria sentido, mesmo. Para conceber a fotografia, emulamos algo das antigas. Na época do negativo, ele poderia ser lavado várias vezes para perder saturação. Mas, em compensação, ganhava contraste e textura. Pensamos nisso para desenhar o Rio de Janeiro do D2 e do Skunk. O Planet Hemp é uma banda do asfalto. Brincávamos que faríamos o nosso “Rio Leste Europeu”, meio Sarajevo, uma cidade crua, exatamente a fim de transmitir a dureza da realidade deles pela fotografia. A direção de arte trabalhou em cima disso. Tanto que quando era necessário mostrar cor, as coisas tinham matizes bem gritantes que, ao vivo, não eram necessariamente bonitos ou naturais (risos). 

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Vocês tiveram de brigar para manter essa visão artística?
Cara, foi muito tranquilo. O filme era bastante autoral, então fizemos basicamente o que acreditamos. Acabamos conseguindo ter tudo o que imaginávamos, seguindo o caminho dos nossos desejos enquanto diretores.

 

Há o desenho de uma dureza cotidiana, de abismos sociais diversos. Deflagrar essa realidade era, de certa forma, uma intenção de vocês ao largo da gênese do Planet Hemp?
Por que escolhemos esse retrato? Um dia, o Marcelo D2 falou para a gente que vivia um sonho que não era o dele. Marcelo era camelô, tinha uma vida dura, mas ele e o Skunk se divertiam, não deixavam de dar risada, de um sacanear o outro. Uma das coisas mais interessantes dessa história é entender de onde ele saiu e como conquistou um lugar de destaque. Virou um baita artista. Nossa intenção era dizer que a vida deles estava longe de estar ganha. Eles viviam bem à margem, convivendo com repressão policial, especialmente o Skunk, por ser negro. 

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O Planet Hemp sacudiu um cenário musicalmente dominado por letras de duplo sentido, ou seja, foi resistência. Como entende o legado deles, hoje, em meio a essa onda conservadora?
Eles foram ousados, botaram o pé na porta e falaram de assuntos que ninguém tinha coragem de falar. Foram presos, inclusive, por conta disso. Depois do Planet Hemp ninguém mais precisou ter papas na língua. As pessoas tinham mais liberdade de cantar o que quisessem. Por falar em liberdade, estamos à beira de perder alguns direitos, inclusive a liberdade de expressão. Faz tão pouco tempo que conquistamos essas coisas essenciais. Estamos a ponto de regredir totalmente. Esperamos que não. Voltando ao Planet, acredito que se surpreenderam, porque muita gente queria ouvir o que eles tinham a dizer.

(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Rio de Janeiro/São Paulo, em outubro de 2018)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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