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Chega aos cinemas esta quinta-feira, dia 5, um potente filme para debater as crises políticas e as restrições à liberdade defendidas por governos autoritários. Liberdade É uma Grande Palavra (2018), documentário brasileiro-uruguaio dirigido por Guillermo Rocamora, aborda as restrições sofridas por um ex-prisioneiro de Guantánamo, Mohammad Abdallah, quando é libertado e acolhido pelo governo uruguaio.

Apesar da boa intenção do regime de Mujica, estes homens muçulmanos não conseguem se inserir no mercado profissional e se sustentarem no país latino-americano, além de enfrentarem sérias barreiras culturais. O projeto acompanha durante anos a difícil trajetória de Mohammad para reconquistar a liberdade, mesmo fora da prisão. O Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre o projeto:

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O diretor Guillermo Rocamora. Foto: Nicolás Der Agopián

Como descobriu a história de Mohammad?
Primeiro, descobrimos que vinham seis ex-prisioneiros de Guantánamo ao Uruguai, devido ao acordo entre Mujica e Obama. Esta notícia foi uma bomba, porque no Uruguai não acontecem muitos fatos de repercussão internacional. Quando eles estavam chegando, Santiago López, o produtor uruguaio, me disse: “Precisamos fazer um filme sobre estas pessoas”. Eu respondi que, na minha opinião, isso não era material para um filme. Mas ele insistiu que pelo menos fizéssemos uma pesquisa, investigássemos um pouco mais. Assim, passamos nove meses nos inteirando a respeito. Havia muita imprensa tentando falar com eles, muita pressão em cima dos dois, não era um momento fácil. Eu tinha dito não a Santiago porque sentia que ali existia uma notícia, não uma história de vida. Não queria falar das condições da prisão, da comida que comiam lá dentro… Faltava a história humana.
Depois de meses de investigação, começamos a ver a dificuldade que tinham para começar de novo a vida, e devido à diferença cultural. Dentro desse contexto, conversamos com o uruguaio encarregado de responder por ele, e dissemos: “Queremos fazer um filme sobre um, talvez dois deles. Mas tem que ser alguém disposto a ser acompanhado pela equipe durante dois, três anos”. Eles moravam em uma casa alugada pelo Estado. O interlocutor prometeu conversar com eles e ver quem estaria interessado no projeto. Duas semanas depois, me disse que Mohammad era um palestino casado com uma mulher uruguaia, e ele estaria interessado. Nós o conhecemos, fizemos uma reunião com o auxílio de um tradutor para podermos nos expressar, e deixar claro que não queríamos fazer um filme de Hollywood. Seria necessário mostrar a intimidade dele, dentro de casa, a família. Então ele aceitou.

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Guillermo Rocamora e Mohammad Abdallah. Foto: Miguel Rojo / AFP

Havia algum tipo de restrição da parte de Mohammad sobre o que poderia ou não filmar?
Não. Combinamos com ele que filmaríamos o máximo de tempo possível, e rapidamente identificamos que o que mais nos interessava era a segunda oportunidade de vida para Mohammad. Isso dizia respeito ao trabalho, à questão de documentação, à família. Até chegamos a filmar outras coisas, por exemplo o pai que veio visitá-lo. Mohammad foi muito generoso conosco. Obviamente, aconteciam algumas coisas e ele só nos avisava depois, mas isso é comum em todo personagem de documentário.

Como percebe a relação entre as barreiras culturais do personagem e as suas próprias diante de um homem palestino?
Esse foi um grande aprendizado para mim. No Ocidente, fazemos uma associação direta entre religião muçulmana e radicalidade, o que na verdade são casos muito raros. Fazemos uma associação com o terrorismo, e somos bombardeados por essa linha editorial. Eu queria fugir desse caminho, entender a religião. Mohammad foi muito respeitoso comigo, que venho de uma família católica, embora não seja praticante. Conversamos sobre religião com frequência. É claro que ele acredita na religião muçulmana como a mais correta entre todas, e tem seus argumentos para isso, mas dividia informações, e compartilhava o papel da religião para ele. Culturalmente, demorei para entender algumas regras implícitas. Por exemplo, sempre que Mohammad me enviava uma mensagem, a primeira coisa que perguntava era: “Como está a sua família, e os filhos?”. Só então partia para o tema da conversa, mas sempre a família vinha primeiro. Quando começamos a filmar, mantínhamos contato frequente com a esposa uruguaia dele, por causa da língua, mas Mohammad veio até mim e ao produtor para dizer: “Por favor, não falem mais com a minha esposa por mensagens, isso representa uma grande ofensa a mim”. Foi um longo processo de aprendizado.

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Guillermo Rocamora e Mohammad Abdallah. Foto: AFP

Por que decidiu não se aprofundar nos motivos da prisão de Mohammad?
Para mim, me aprofundar nisso significaria me posicionar enquanto juiz de Mohammad, o que implicaria justificar a inocência ou culpa dele. Queria justamente tirar o foco dessa questão, fugir ao preconceito óbvio. Ele me contou sobre tudo isso, e tivemos acesso aos documentos completos norte-americanos devido ao vazamento do WikiLeaks. Era um documento curioso, aliás, porque o descrevia como terrorista perigosíssimo, para então afirmar que não havia nenhuma prova concreta para determinar isso. Falar sobre este tema seria colocar-nos num lugar que não nos correspondia. Mohammad não tinha problemas em falar sobre isso, pelo contrário: ele defendia a própria inocência o tempo inteiro. No entanto, essa era uma questão ética nossa. Eu entendo que isso possa ser interessante ao espectador: sempre que apresentamos o filme, a pergunta inicial nos debates dizia respeito aos motivos da prisão. Mohammad foi capturado em 2002, no Paquistão. Essa era uma prática comum: os Estados Unidos compravam pessoas. Isso está provado, existem documentos demonstrando que pagavam entre 5 mil e 10 mil dólares por cabeça. Mohammad estava estudando religião, o que era perfeito para classificá-lo como terrorista. Desde 2001, os Estados Unidos têm capturado supostos terroristas para fazer número: 2 mil, 3 mil, 5 mil. Neste contexto, prenderam Mohammad.

Como avalia a forma com que o Uruguai tratou estes refugiados?
Acredito que Mujica teve ótima intenção, porém muito mal executada. Esta é a minha leitura de todo o processo. Ora, não basta tirar alguém da prisão para ela conquistar a liberdade – e daí vem o título do filme. A liberdade é algo muito mais complexo do que isso, mas o Uruguai não estava preparado para lidar com a complexidade do mundo muçulmano num país laico. Estas pessoas precisam trabalhar, até porque eles estão acostumados à cultura na qual o homem precisa ser o provedor e chefe da família. Mas também não podem trabalhar em qualquer coisa, de qualquer maneira. Mohammad não tinha formação alguma, o currículo dele tinha três linhas. Ele foi preso com 22 anos, quando era estudante, e libertado aos 37 anos. Obviamente, ele não tinha nenhuma experiência profissional. O governo se equivocou muito nesse processo: a pessoa encarregada de trazê-los, por exemplo, não se encontrou mais com os ex-presos; e depois deram algum financiamento, mas isso não era suficiente para se sustentarem. Foram pouco sensíveis à situação destes homens muçulmanos. Entendo que o Uruguai seja um país pobre, sem os mesmos recursos da Alemanha para acolher prisioneiros de Guantánamo. Mesmo assim, nem tudo é questão de dinheiro. Chegaram a criar um convênio com uma consultora que buscaria emprego para eles, mas este era um caminho errado. Era preciso estabelecer parcerias diretamente com empresas do Estado, dando benefícios a estas empresas ao contratá-los.

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De que maneira se relaciona a experiência da liberdade para os palestinos e para os sul-americanos, na sua opinião?
Mohammad sempre me dizia que o melhor aspecto de morar no Uruguai era que, desde que chegou, nunca lhe pediram o documento de identidade. Na cidade dele, ele apresentava documentos quando passava de uma cidade à outra, sem falar na parada nos checkpoints. Quando tinha oito anos de idade, Mohammad foi detido pelo exército israelense sob ordens da CIA, para aterrorizá-los. Ele e dezenas de outras crianças foram detidos, e depois os pais puderam buscá-los. Essa pressão tão grande era muito diferente do que ele conheceu no Uruguai. Ele se sentia mais seguro, podia ficar mais relaxado. Quanto aos latino-americanos, estamos cada vez mais próximos de Estados impunes no ato de controlar. Seja brasileiro ou uruguaio, o mais importante tem se tornado a sua classe social. Existe uma violência de Estado para nos controlar, e nesse sentido podemos traçar um paralelo entre o palestino e o sul-americano pobre.

Qual é a importância de mostrar este filme agora, na época de tantas insurgências populares contra os recentes governos de direita e extrema-direita?
O título do filme aponta a várias coisas, inclusive que o estado de liberdade, no qual supostamente vivemos nestas democracias mais ou menos estáveis, é falso. Mohammad e todos nós enfrentamos isso. A questão do capitalismo selvagem, que deixa cada vez menos espaço ao Estado, faz com que a liberdade seja mais difícil de obter. Nossa liberdade é limitada pela classe social, pela necessidade de trabalhar o dia inteiro para nos manter, pelo medo de dizer realmente o que pensamos. A liberdade está em risco. Vejo o caso do Chile, onde tenho muitos amigos, e percebo que o estado de bem-estar social em que os chilenos viviam era falso. Essa dita liberdade depende do nome que temos, do nosso trabalho, nosso sobrenome, do bairro em que moramos, que certamente dizem respeito a um número cada vez menor de pessoas, e estão ligados a aspectos econômicos. Acredito que o filme nos permite ver um caso aparentemente extremo, mas capaz de representar algo que todos nós vivemos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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