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Na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, a romena Alina Grigore apresenta seu primeiro trabalho como diretora, o drama Lua Azul (2021), grande vencedor do Festival de San Sebastián. A história parte de um contexto de violência familiar no interior do país, focada na adolescente Irina (Ioana Chitu), oprimida pelo primo e pelos pais que desejam mantê-la na fazenda local, cuidando dos negócios, ao invés de viver em Bucareste.
Entre chantagens, manipulações e agressões físicas, ela conhece Tudor (Emil Mandanac), professor universitário com quem inicia um relacionamento abusivo. Aos poucos, a garota descobre sua força para romper com os ciclos de opressão. A cineasta conversou em exclusividade com o Papo de Cinema sobre o cuidado no desenvolvimento do tema e na proteção dos atores em cenas desgastantes psicologicamente. Grigore se posiciona de modo firme contra os “gênios” que torturam seu elenco em nome de atuação mais fortes para as câmeras:

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A diretora Alina Grigore com o prêmio principal do Festival de San Sebastián

Que familiaridade você tinha com esse cenário burguês e rural da Romênia?
Esses núcleos familiares são bastante comuns na Romênia, e não necessariamente são considerados ricos. São vistos apenas como estáveis, por se tratar de um negócio familiar. Normalmente, uma família dotada de amplos recursos financeiros distribui esta renda entre diversos membros. Este é um dos principais motivos pelos quais essas manipulações psicológicas acontecem. Eles preferem que os filhos fiquem no local e sejam os próximos gestores da empresa familiar nos próximos anos. 

A família é tão opressora que me senti diante de um filme de máfia.
Essa é uma história que observei na comunidade quando era criança. Não diria exatamente que se trata de uma configuração mafiosa, mas é uma família bastante tradicional, obcecada com a posse das terras e o controle das atitudes desses parentes-funcionários. Então de fato, os laços estão repletos de abusos.

A relação de Irina com o professor remete à Síndrome de Estocolmo. Como enxerga o envolvimento entre eles?
Essa foi uma longa história. Na hora de desenvolver os personagens, eu entrego o roteiro aos atores e desenvolvemos as personalidades juntos. Era muito importante para mim ver como eles e elas conceberiam os personagens em colaboração. No início, o relacionamento seria basicamente provocado pela família, e Irina tiraria forças deste romance. Mas percebi que, seguindo a lógica da trajetória emocional de uma vítima no triângulo agressor-vítima-protetor, era mais plausível que ela se tornasse a vítima nesse triângulo, mas depois transformasse seu papel. Eu estava obcecada pela maneira como ela é vista inicialmente como vítima, mas depois se converte em agressora. Esse me parecia um caminho natural. Estudei muito a psicologia em casos de abuso doméstico. O fato de Irina ter uma história com o primo, que a salvou na infância, porém de maneira violenta, reverbera na impressão que ela tem do amor, e no que isso significa para ela. Isso reflete inclusive na sexualidade da personagem. O fato de Irina pensar inconscientemente que o amor equivale à violência se traduz no relacionamento dela com Tudor, o professor. Esse laço começa de maneira agressiva, e de certo modo ele abusa dela. Irina confunde, mais uma vez, o afeto e a violência. O sangue reverbera quando ela se torna a agressora. Queria desenvolver estes laços de maneira sutil, sem julgamentos morais. No começo, chegamos a filmar a cena do afogamento, quando o primo a salva. Mas depois percebi que não era necessário incluir isso na trama. O trauma não precisa estar presente visualmente. 

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Sim, é possível compreender o peso deste episódio traumático pelo comportamento impulsivo de Liviu.
É verdade. Participei de um workshop de roteiro onde discutimos se ele deveria ser o irmão ou o pai de Irina. Então percebi que esses laços seriam próximos demais. Eu precisava atribuir a violência num vínculo mais distante, para provar como ela pode ser normalizada na Romênia, mesmo longe da figura paterna e fraterna. É comum em outros países que a agressão se restrinja ao núcleo próximo, mas na Romênia, acredito que a família ampla, enquanto entidade, se torna um elemento opressor em si mesma. Por isso, transformamos Liviu num primo de Irina. Assim, a história não seria apenas sobre violência física, mas sobretudo psicológica.

Como filmar a violência sem ser, você mesma, violenta com os atores e os personagens?
Isso é bem importante. Todos me perguntam por que eu não fiz um filme sobre violência doméstica, que é um problema muito mais grave na Romênia contemporânea – apenas 2% das meninas romenas em meios rurais cursam o Ensino Superior, por exemplo. Esse é um tema gigantesco, e eu precisaria ser muito estável e experiente enquanto contadora de histórias para tratar de algo dessa magnitude. Talvez eu consiga abordar este tema quando eu crescer como cineasta, porque Lua Azul foi a minha estreia. Quando filmamos as cenas de violência, era fundamental para mim que Irina não sofresse nenhuma agressão real. A atriz nunca recebeu tapas, nem simulados – dá para perceber que isso é sugerido pela montagem. Foi uma cena difícil de filmar, e também para os atores. Mircea Postelnicu, que interpreta Liviu, é muito centrado e calmo. Ele me disse desde o princípio que se sentia inseguro com essa cena. Ioana Chitu, ironicamente, era a pessoa mais tranquila a respeito, ela apenas me dizia “Vamos lá, vamos filmar”.
Eu não acredito na necessidade de reproduzir a violência nas filmagens. Nunca acreditei nisso. Detesto os gênios abusivos no set; essas figuras são superestimadas. Não acredito em desconforto ou maus-tratos como parte do processo de criação artística. Ensaiamos muito, e foi uma sequência difícil para mim. Depois de terminarmos a cena de agressão, paramos de filmar aquele dia. Nós três estávamos sob forte impacto deste momento para seguir filmando. Por isso, fomos passo a passo, de maneira técnica. Falei: “Vamos esquecer o conceito de verdade em Tchekhov e Stanislavsky”. Trabalhei com o diretor de fotografia para garantir que a sequência fosse possível sem qualquer agressão efetiva. Também não gosto da ideia de method acting, que pode ser muito perigosa. Sou professora, e tenho noção da importância de valorizar o processo, ao invés de tentar reproduzir um resultado específico. Não queria que, cinco anos depois, eles passassem a consumir álcool ou drogas porque a filmagem serviu de gatilho para algum trauma interno. 

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A câmera ágil, mudando de um lado para o outro, com vários personagens em cena, também era bastante agressiva em si mesma.
Este processo de escolha foi colaborativo, desde que tivemos a ideia inicial. O roteiro resta aberto, porque acredito que todos estes artistas podem aportar muito em termos de criatividade. O diretor de fotografia chegou bastante cedo no processo, junto do trabalho com os atores. Enquanto desenvolvíamos os personagens, com suas motivações e histórias pregressas, decidimos que queríamos compartilhar uma jornada psicológica, mais do que fatos. O público precisaria se tornar Irina, se identificar com as emoções dela. Trabalhei muito com o diretor de fotografia para ele encontrar maneiras de representar isso visualmente. A profundidade de campo foi importante nesse sentido: sempre que tínhamos uma vítima, que nem precisava ser Irina, optamos por focar no rosto e deixar o resto desfocado, para representar a opressão. Já o ponto de vista do agressor é nítido, de fundo infinito. Quando Irina se torna a agressora de Liviu, decidimos colocá-lo no ponto de vista estético da vítima, com o desfoque ao redor e o rosto centrado no enquadramento.
Sempre quisemos um set com possibilidade de girar 360º, indo para qualquer canto. Escondemos toda a produção para permitir fazer isso. Ensaiamos posicionamento com os atores, mas eu acredito muito no conceito de verdade, sou obcecada com isso. Os atores não eram forçados a percorrer pontos específicos do cenário, nem parar sob um lugar específico da iluminação, ou se preocupar com a posição dos microfones e lapelas. Eles eram livres. Quando você oferece liberdade aos atores, eles reproduzem isso no vigor da atuação. Por isso, priorizamos as motivações, mas era a câmera que se adequava aos lugares para onde eles queriam ir. Fizemos cinco ou seis tomadas por vez, no máximo, porque a liberdade nos permite compreender o movimento dos personagens, então a direção de fotografia já antecipava o que fariam.

Gosto da metáfora do sangue constante em Liviu, mesmo quando ignoramos a origem do sangramento.
Como a violência começa de maneira sexual, pelo defloramento da garota, o sangue era fundamental como símbolo. Eu queria que este sangue seguisse os agressores ao longo da trama. Na terceira parte, quando ela se torna a abusadora e passa a praticar as agressões, acreditei que essa metáfora precisava se desenvolver, com o sangue presente de alguma forma. Ela coloca o sangue como um posicionamento. O sangue faz parte de todo o processo, quando ela é vítima, agressora ou salvadora.

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Como considera este recorte específico da Romênia sendo mostrado em países estrangeiros, caso do Brasil na Mostra de São Paulo?
A escola que fundei há dez anos tem um caráter de centro de pesquisa, ao invés de se focar apenas na produção. Pesquisamos muito, e eu queria sobretudo criar personagens e as relações entre eles – é isso que mais gosto fazer, debatendo o conceito de verdade. Lua Azul partiu de um projeto de pesquisa. Nunca pensei que chegaríamos tão longe com este filme. Sei que a Romênia tem conquistado uma visibilidade expressiva em festivais, e exatamente por isso, achei que nosso filme nunca conquistaria as mesmas oportunidades. Não sabia que existiria espaço para este projeto também. Fiquei surpresa de ser selecionada em grandes festivais, e San Sebastián foi uma notícia maravilhosa. A vitória nos surpreendeu totalmente, porque já tínhamos festejado com o anúncio da seleção! Eu não estava pronta para mais uma festa!
Não pensava que Lua Azul viajaria tão bem porque me parece que os festivais estão muito preocupados em encontrar novas histórias, mas nosso filme é focado na jornada psicológica em detrimento da história. Pensei que as pessoas não iam querer se dedicar a essa experiência. Escutei de diversos distribuidores que dificilmente as pessoas aceitariam o filme, porque a história era difícil de absorver e compreender. Teria sido fácil cortar algumas cenas e transformar o projeto numa trama mais fácil sobre uma garota tentando escapar dos abusos, mas eu queria ser fiel ao filme que fizemos. Eu poderia construir um final feliz artificial. Mas escolhemos não fazer isso, e fico contente por esta opção. Tenho plena consciência de que nem todos se conectaram com o projeto, mas caso ele tenha se comunicado com pessoas que tenham uma ligação direta com a jornada psicológica de Irina e esse tipo de agressão, já fico muito satisfeita. 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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