Em maio de 2010, a travesti Luana Muniz ficou conhecida nacionalmente ao dizer “travesti não é bagunça” no programa Profissão Repórter da Rede Globo de Televisão. Rapidamente, a frase se alastrou, caiu na boca do povo, o que tornou Luana célebre nacionalmente. Mas, quem já frequentava a Lapa, um dos bairros mais boêmios da cidade do Rio de Janeiro, conhecia a personagem principal de Luana Muniz: Filha da Lua (2017), documentário de Leonardo Menezes e Rian Córdoba que está chegando aos cinemas nesta quinta-feira, 12. Figura carismática, ela era a responsável pelo Casarão da Lapa, centro de acolhimento, abrigo e orientação de travestis e transgênero. Ativista pelos direitos humanos, ela intermediava diálogos frequentes entre as várias esferas do poder público com uma população frequentemente tornada quase invisível. Para nos aprofundar um pouco mais sobre no longa-metragem, tivemos um bate-papo remoto com Leonardo Menezes, um dos diretores responsáveis pelo trabalho que abriu a edição 2017 do Rio Festival de Gênero e Sexualidade. Confira abaixo mais este Papo de Cinema exclusivo.
Como funciona a sua parceria com o Rian Córdoba? Há uma divisão bem definida de quem faz o quê ou as decisões são todas conjuntas?
Existe uma parte mais técnica que acaba ficando comigo. Em termos da fotografia, da iluminação, do posicionamento da câmera, em suma, a parte visual acaba ficando mais comigo. Embora, evidentemente, a gente sempre converse sobre tudo. Enquanto isso o Rian fica mais com a parte do roteiro. Claro, varia de acordo com nossos projetos. Foi assim em Lorna Washington: Sobrevivendo a Supostas Perdas (2016), nosso filme anterior, e no Luana Muniz: Filha da Lua (2017) também. No nosso próximo projeto, que é sobre envelhecimento LGBT, estamos invertendo um pouco essa lógica. Mas isso vem muito de uma complementariedade de trabalho. Rian sempre tem esse olhar às redes e as instituições que lidam com a temática que abordamos. No caso, tivemos uma parceria muito legal com o Grupo Arco-íris, que fez toda a intermediação para que conseguíssemos gravar no Casarão da Lapa. Enquanto isso, eu ficava pensando na parte técnica do filme. Mas, claro que questões como a condução, as cenas e os entrevistados são decididoa em conversas. De fato é complementar.
Por que vocês acharam relevante fazer um filme sobre a Luana Muniz?
Conhecemos a Luana por meio da Lorna Washington. Já sabíamos quem ela era, até pelo sucesso do Profissão Repórter em 2010 com o episódio “travesti não é bagunça”. Mas, conhece-la pessoalmente foi durante as gravações do filme anterior. Vimos o quanto, além da personalidade forte dela, a Luana tinha diferentes camadas. Era muito próxima das meninas que acolhia no Casarão, mas também poderia ser dura com elas. Luana alugava quartos para várias travestis que vinham para o Rio de Janeiro, muitas delas expulsas de suas casas, procurando abrigo e auxílio. Luana tinha isso de prestar auxílio para coisas como documentos, funerais, toda a parte que em geral a sociedade machista e homofóbica do Brasil nega para essa parcela da população. A Luana orientava as travestis com as quais formava a rede dela, mas também era essencial observar sua representação política na região, não apenas na Lapa, mas às redes LGBT no Brasil inteiro. Ela intermediava com a prefeitura questões que visavam tornar melhores as condições de trabalho para profissionais do sexo. Também atuava junto às polícias civil e militar para garantir segurança na Lapa, organizava passeatas gays e ações em prol dos direitos humanos. Era formada enquanto agente de saúde, então se preocupava muito com testes e distribuição de preservativos. Ela era regida pelo respeito, costumava dizer que você não precisava gostar dela, mas ao menos respeitá-la. Isso é uma mensagem essencial.
E a Luana tinha uma rede de relacionamento com algumas pessoas célebres…
Sim, para além do que ela representa enquanto profissional do sexo, artista e ativista, tinha essa rede com diferentes celebridade e artistas. Alcione, Rosa Maria Colin, Luís Lobianco, o padre Fábio de Mello. Todas essas pessoas aparecem no filme testemunhando sobre o impacto da existência da Luana na vida delas. É um olhar diferente, que espero que nosso público tenha, sobre as travestis em geral. A Luana passou por todos os processos de opressão da sociedade e mesmo assim batalhou para que todos tivessem direitos e que fosse resguardada a dignidade na relação das travestis com os demais atores da sociedade.
E vocês não pretendem criar um filme chapa-branca, mas abordar virtudes e controvérsias. Me parece uma vontade de preservar a complexidade humana dela, certo?
Era imprescindível que fosse assim. A Luana era transparente. Ela tinha essa capacidade, que todos nós temos, de sermos ao mesmo tempo bons e severos. De certa forma isso também era uma lição de sobrevivência numa sociedade machista e homofóbica. Ela diz numa parte do filme que a travesti precisa se impor, senão a sociedade a engole. Infelizmente isso ainda é verdade. A Luana não aceitava ser desprezada ou considerada cidadã de segunda categoria. Mais do que normal, ela era normalíssima. Luana dizia que pagava impostos, seguia as regras, mas era produto da opressão que precisa ser discutida. Nosso retrato sem esse endeusamento vem também do fato de que ela própria não se colocava nesse espaço. Luana tinha uma personalidade forte, variava de humor, como todos nós, na verdade. Isso é verdadeiro nela e traz esse caráter marcante de personalidade. Luana tinha uma aura que atraía a atenção, mas também não era de levar desaforo para casa. Há uma mensagem importante aí, a da necessidade de ser verdadeiro.
Levando em consideração que a Luana era uma artista, em muitos momentos vocês a sentiam performando para a câmera?
Sim. A própria Luana era uma representação de quem gostaria de ser. Ela se reconstruiu, de corpo e alma, para vivenciar aquilo com que se identificava. Nesse sentido, acredito que queria aproveitar essa oportunidade para mandar recados, como, por exemplo, para que todas as travestis não se desmerecessem, que pudessem alcançar tudo o que desejarem. Me parece uma mensagem importante, especialmente nesse momento em que a gente testemunha um aumento de certos preconceitos na sociedade, que determinados grupos desejam tolher as vozes de alguns. Quanto mais plural a sociedade, mais potente ela é. No Brasil somos muito diversos, nos reconhecemos nesse lugar, mas é preciso questionar os espaços de privilégio. Especificamente quanto às travestis e aos transgêneros isso precisa avançar muito. Essa mensagem humanista prevalece no filme.
O documentário é de 2017, mas chega apenas agora aos cinemas. Muita coisa mudou no Brasil em quatro anos, inclusive o aumento de certas posturas públicas de discriminação à comunidade LGBTQIA+. Você acha que lançar o filme agora tem um peso diferente?
Tivemos eventos marcantes nos últimos quatro anos. Claro, enquanto cineastas, queremos que o filme chegue logo ao público. Mas, nesse período tivemos avanços e retrocessos. Avanços, como por exemplo, a Erika Hilton como a primeira vereadora trans de São Paulo. Aumentou a participação trans e travesti no cenário político. Retrocessos, como o completo desmerecimento das instituições que lutam pela preservação da memória audiovisual do Brasil, incluindo a LGBT. Se você for pensar que o recente incêndio na Cinemateca Brasileira, e que mostra esse descaso especialmente do governo federal às instituições culturais, ele traz à tona a necessidade de avançar também quanto à preservação da memória LGBT. Temos pouquíssimos centros de pesquisa guardando acervos dessas personalidades. Fotografias, documentos e filmes ficam geralmente nas mãos das famílias que, por conta de preconceito, não as preservam. É uma memória relegada ao esquecimento. Estrear o filme em 2021 faz com que a história da Luana ganhe uma representatividade ainda maior. Mesmo nos momentos de repressão política a nossa resiliência se mostra ainda mais forte. Nesse sentido é importante entender que esse filme é fruto do esforço de vários grupos.
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