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Lufe Steffen possui uma trajetória ampla dentro do audiovisual brasileiro. Além de ator e cantor, dirigiu dez curtas-metragens de temática LGBT e dois longas-metragens documentários: A Volta da Paulicéia Desvairada (2012) e São Paulo em Hi-Fi (2016). Em paralelo, realizou a minissérie documental Cinema Diversidade e escreveu o livro O Cinema que Ousa Dizer Seu Nome (2016). Nos últimos anos, tem ministrado cursos de cinema queer e organizado workshops de capacitação cinematográfica voltados ao público transexual.

Em pleno mês do Orgulho LGBTQI+, o Papo de Cinema conversou com o autor e cineasta sobre a evolução do nosso cinema em termos de representatividade, refletindo sobre os passos que ainda nos falta tomar dentro da cinematografia nacional.

 

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Lufe Steffen

 

Quais foram os primeiros filmes LGBT brasileiros?
Esses parâmetros são relativos. Cada pesquisador parte de um critério diferente e chega a títulos distintos. De modo geral, um consenso aponta para O Menino e o Vento (1967), de Carlos Hugo Christensen, como primeiro longa-metragem. Ironicamente, o primeiro longa LGBT brasileiro foi dirigido por um argentino, como se o nosso cinema precisasse de alguém de fora para ter a coragem de introduzir esse tema. O Menino e o Vento tem até certo atrevimento na questão LGBT, porque o conto original, O Iniciado do Vento, de Aníbal Machado, não deixa nada muito claro. O texto sugere que a homofobia da cidadezinha possa ser uma paranoia, sem corresponder à realidade. Ou seja, os personagens masculinos podem não ter tido nenhum relacionamento de fato. No filme, o teor homoerótico é reforçado, optando por sublinhar a relação gay. Mas não podemos afirmar que o autor do conto tenha descrito um relacionamento gay. Foi Christensen quem preferiu essa interpretação, ainda que sem acentuar o tom, por ser um filme dos anos 1960, lançado em plena ditadura militar.

 

Em que contexto estes primeiros filmes chegaram aos cinemas?
Essa informação é difícil de obter. A obra do Christensen é obscura, ele é um diretor pouco lembrado. Participei de um seminário sobre ele no Rio de Janeiro, há cinco anos, e mesmo neste evento, se percebia o quanto o diretor era underground. Mas posso supor que este filme não tenha sido bloqueado nem censurado pela ditadura militar porque as pessoas da época não perceberam a insinuação temática. O Menino e o Vento foi interpretado como obra de realismo fantástico ao invés de um drama social. A censura não era algo organizado: havia censores diferentes, de diversos graus. Hoje a gente fica surpreso que algum filme tenha passado pela análise, sem ser censurado, enquanto outros que pareciam muito mais leves sofreram censura.

 

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Imagem promocional de O Menino e o Vento. “Que estranha fascinação exercia aquele menino sobre um homem adulto?”.

 

Houve outros filmes LGBT censurados de maneira mais explícita pela ditadura?
Era uma loteria: os censores às vezes se detinham sobre detalhes sem importância, mas não percebiam coisas muitos mais evidentes. O Menino e o Vento não teve seu potencial subversivo percebido nem pelos censores, nem pelo público da época. As pessoas não foram aos cinemas cientes de verem um “filme gay”, como fazem hoje quando compram um ingresso para Me Chame Pelo Seu Nome (2017), por exemplo. Nem o público da época tinha essa consciência. A visão que temos deste filme enquanto LGBT veio com o distanciamento, porque ele não foi percebido como pioneiro do cinema gay na época. Apenas cinquenta anos depois formou-se o consenso em torno dessa obra tendo a homossexualidade como tema central. Antes disso, vale lembrar que existiam vários personagens LGBT em filmes brasileiros, mas não constituíam o foco da trama.

 

Os longas-metragens LGBT surgiram quase em paralelo com os curtas, certo?
Sim. Um ano depois de O Menino e o Vento veio o curta Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora (1968), do Djalma Limongi Batista. Foi o primeiro curta registrado da ECA – USP, porque o Djalma era aluno da universidade na época. Este primeiro curta gay brasileiro nos permite ter um contexto melhor sobre a recepção, porque o próximo Djalma narra isso na autobiografia dele. Ele disse que fez o curta de maneira inocente, baseado em sua história de vida. O filme narra a história de dois garotos que vieram a São Paulo de outras partes do país para estudar, e acabam desenvolvendo um romance. O curta tinha relações com o Cinema Marginal e a Nouvelle Vague, mas no fundo o Djalma apenas queria falar sobre o que sentia, sem ter a noção de ser um curta subversivo ou perigoso. O filme foi premiado no festival do Jornal do Brasil, que era bastante importante para jovens curta-metragistas.
O resultado foi um escândalo: saiu no jornal a notícia de um que um filme sobre a paixão entre dois garotos tinha sido premiado. A família do Djalma veio de Manaus para São Paulo para conversar com o filho – ele praticamente saiu do armário através do filme. Ele alega no livro ter sofrido perseguição dentro da própria ECA. Os professores ficaram perplexos com o curta, mesmo alguns professores famosos da universidade. Ainda segundo o Djalma, disseram que o filme não poderia ser exibido para os alunos, e montaram uma comissão de inquérito para decidir se poderia ser exibido ou não. O Paulo Emílio Salles Gomes acabou pressionando pela liberação do curta, mas a relação do Djalma com os professores nunca mais foi a mesma. Ele passou a ser evitado dentro da ECA. Houve então muito preconceito: os alunos eram bastante pressionados para fazerem documentários, ou filmes de ficção realistas, refletindo a realidade brasileira. Mas o Djalma era lúdico, e preferia flertar com o fantástico, o mitológico. Depois de formado, ele ficou dez anos trabalhando como fotógrafo e demorou muito para fazer o primeiro longa-metragem. Ele credita isso à homofobia e ao preconceito.

 

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Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora

 

Hoje se fala em cinema queer, cinema LGBT, cinema gay. Mas essas nomenclaturas não existiam na época. Como essas produções eram consideradas?
Na época do nascimento deste cinema no Brasil, já se usava o termo gay, com a escrita em inglês mesmo. Era algo menos frequente do que hoje, mas já se conhecia. Também se falava em “temática homossexual”. Quando se referiam de forma pejorativa às obras, falavam em “filme sobre pederastas”, ou sobre “pederastia”, reforçando a noção de alguém doente, perigoso. Usavam muito o termo “desviado”, ainda em foco depreciativo. Quando surge o jornal Lampião da Esquina, o gay é aportuguesado pelo João Silvério Trevisan, que gostava de “guei”, para as pessoas lerem como se falava.
Nos anos 1990 surge a expressão GLS, nascida em São Paulo, nos bastidores do Festival Mix Brasil. Por volta da segunda ou terceira edição do evento alguém inventou a sigla que significava Gays, Lésbicas e Simpatizantes. Os “simpatizantes” incluíam heterossexuais sem preconceitos e bissexuais, enquanto os transexuais ficavam de fora. Era uma sigla incompleta. O próprio festival se autodenominava GLS, falava-se em festas GLS, revistas GLS, baladas GLS. No começo dos anos 2000, aposentaram o termo para adotar com mais frequência o LGBT. Inicialmente, propuseram GLBT, mas as lésbicas norte-americanas exigiram que o L viesse na frente, para não ter mais uma vez o protagonismo do homem cisgênero. O LGBT se popularizou, aumentando atualmente para LGBTQIA+, até onde eu saiba.

 

Já o queer segue um caminho diferente.
O queer tem sido usado há pouco tempo no Brasil. Alguns filmes das primeiras edições do Mix Brasil chegavam com esse termo no título ou na descrição, mas isso não era algo recorrente. Existia o Queer Duck (2006), animação sobre um pato gay. Mesmo assim, ninguém saía da projeção falando utilizando o termo. Depois vieram as séries Queer Eye For the Straight Guy (2003) e Queer as Folk, tanto na edição britânica (1999) quanto americana (2000). Eles tiveram sucesso no Brasil no ano 2000. De uns dez anos pra cá, o queer tem se popularizado com o meio acadêmico, através dos cultural and gender studies. A Judith Butler e outros filósofos se debruçaram sobre o tema, e isso se propagou para as áreas artísticas e culturais. Hoje, a expressão queer é mais frequente, ainda que gere confusões: muitas pessoas usam sem saber exatamente os limites do conceito, que é bastante complexo. Ainda existe uma disputa, às vezes de ego, por pessoas que se consideram detentoras dos limites da expressão. Na língua inglesa, original, o queer significava estranho, esquisito.

 

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Jornal Lampião da Esquina

 

Quando transexuais e travestis começaram a ser representados no cinema brasileiro? O cinema LGBT brasileiro ainda é muito associado a gays e lésbicas.
Se a gente determinar que a representação trans consiste na simples aparição de um personagem trans em algum filme, então isso começou no cinema mudo, no famoso curta-metragem mudo Augusto Aníbal Quer Casar (1923). É um filme famoso que ninguém viu, porque a película não foi preservada e se perdeu. Este título é sempre citado por causa da pesquisa retratada no livro A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro, do Antônio Moreno. Talvez a obra esteja desatualizada, mas foi o primeiro livro pioneiro a listar personagens gays. O autor narra este curta-metragem como a primeira aparição de uma personagem travestida, no caso, a esposa com quem o Augusto Aníbal se casa. Mas não temos como vê-lo hoje.
Depois disso aparecem diversos personagens travestis. Havia vários casos de personagens travestidos na chanchada, mas é importante lembrar que não se tratava de personagens trans enquanto identidade de gênero. Nestes filmes, homens se vestiam de mulher para fazer graça, para fugir da polícia ou enganar alguém, por exemplo. Havia a representação visual de travestis, mas não da identidade de gênero. Eram travestimentos como aqueles do Pica-Pau ou do Pernalonga. O filme Uma Mulher de Verdade (1954), com a Inezita Barroso, mostra uma travesti portuguesa, a Ivaná, que tem uma ponta cantando uma música. Este foi um ponto cardeal, mas depois são os anos 1970 em que travestis aparecem com frequência, sobretudo nas pornochanchadas.

 

Podemos falar de avanço em relação à imagem de travestis e transgêneros nessa época?
É complicado. Eram aparições degradantes, sobretudo para travestis e trans, pela comicidade e ridicularização. Ao menos se propunha uma identidade diferente da heteronormatividade. Por exemplo, no caso de Sábado Alucinante (1979), a personagens trans – na verdade, descrita como travesti na época – possui uma representação digna. O filme é trash, mas existe uma boa intenção no que diz respeito a essa personagem humana, dotada de desejos e vontade de encontrar um amor. Pelo menos existe a busca por retratar uma travesti de maneira tridimensional, sem ser a louca do prédio ou a montada da vizinhança. É diferente daquele humor de A Praça é Nossa, com a Vera Verão, por exemplo. Então havia filmes que buscavam uma representação mais digna, ainda que a qualidade variasse bastante.
No final dos anos 1970 e no começo dos anos 1980 apareceram representações muito melhores, como no filme República dos Assassinos (1979), Pixote: a Lei do Mais Fraco (1980) e Vera (1986). Hoje estes filmes seriam criticados porque as personagens trans eram interpretadas por atores cisgênero. Mas na época não havia a preocupação de convidar atores transexuais para interpretarem personagens transexuais. Independente da questão do elenco, são representações válidas. República dos Assassinos e Pixote: A Lei do Mais Fraco trazem uma mulher trans, enquanto Vera traz um homem trans, sendo um dos primeiros filmes brasileiros a retratar a transexualidade masculina. Os anos 1990 praticamente somem com a questão trans, mas isso retorna nos anos 2000 de modo crescente, até chegar aos dias de hoje.

 

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República dos Assassinos

 

Como acredita que as primeiras produções LGBT brasileiras se relacionam com as obras que produzimos atualmente?
No geral, o que vimos nos últimos 52, 53 anos, é a presença muito mais forte do personagem gay e cisgênero. Muitos diretores desses projetos eram homens gays e cisgênero, que buscavam retratar a si mesmos. Os filmes que eu faço têm lésbicas, transexuais e travestis, mas o foco sempre fica com o gay masculino. Isso é automático para mim, porque esta é a realidade que eu vivo, e minhas histórias têm um componente autobiográfico. Eu poderia fazer um filme sobre uma personagem trans, me dedicando a esse universo, fazendo pesquisas e afins, mas até agora isso não aconteceu. Naturalmente, puxo uma força maior para o que eu vivo e sou. Isso é comum para homens cis gays. Por isso, a maior parte dos filmes que falamos giram em torno de personagens gays. Eventualmente, temos projetos sobre questões lésbicas.
A questão trans começa a aparecer, mas esbarra no lugar de fala: no começo, eram pessoas cisgênero escrevendo, dirigindo e atuando em projetos sobre a transexualidade. Hoje exigimos que a direção, o roteiro e a voz pertençam às pessoas trans. Começamos agora a ter diretores e roteiristas transexuais. Ainda são poucos, dá para contar nos dedos, mesmo assim esta nova década vai trazer novos profissionais trans do audiovisual. Precisamos fortalecer o cinema de temática trans, e com vozes travestis, por uma tomada de poder das próprias trans e travestis. Por isso, eu organizei um workshop de roteiro exclusivamente para pessoas trans, para capacitá-las a escreverem seus próprios projetos e inscreverem em editais. A questão G e L está longe de ser resolvida, mas tem um avanço maior, uma representatividade boa. O mais importante é lutar pela manutenção disso, porque o caminho está alicerçado.

 

A questão trans constitui o principal espaço que o nosso cinema LGBT ainda precisa explorar, na sua opinião?
Com certeza. Além disso, existe um recorte de idade a superar. Quando falamos sobre cinema LGBT, quase sempre os personagens têm entre 15 e 60 anos. Essa é considerada a “vida útil”, a vida de consumo do indivíduo. Mas o que acontece com as pessoas após os 60 anos? Não existem mais? E o que dizer das crianças com menos de 15 anos? Um desafio para o cinema brasileiro, que já vem sido superado pelo cinema norte-americano e europeu, é falar de crianças e idosos LGBT. Poucos filmes brasileiros abordam a velhice LGBT. Quando existem, estes projetos são documentários, caso do meu São Paulo em Hi-Fi (2016), e de Divinas Divas (2016). Mas onde estão os personagens LGBT com 70, 75, 80 anos? E as crianças de 10, 11, 13 anos, com cuja formação de sexualidade e identidade de gênero não é retratada?
Esses polos são hipocritamente ignorados, porque supomos que idosos não têm mais sexualidade, e por isso “não existem mais”. São segmentos invisibilizados. Quanto à criança, a situação é ainda mais cruel: não podemos falar no assunto porque os moralistas de plantão tratam de confundir isso com pedofilia, o que está longe de ser verdade. A Europa tem vários filmes sobre crianças trans, os Estados Unidos fizeram diversos filmes sobre crianças gays. Mas o Brasil ainda precisa superar isso. Meu próximo filme, Nós Somos o Amanhã (2020), fala exatamente da pré-adolescência LGBT. É inspirado na minha infância. Os personagens têm doze anos de idade, a última idade antes de entrarem na adolescência. Estou em busca de recursos para finalizar o projeto, que já foi filmado. Idosos e crianças LGBT ainda são tabus no cinema brasileiro, mas precisamos falar disso, obviamente com respeito e sensibilidade. Essas pessoas existem e fazem parte da sociedade.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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