Sérgio Machado atendeu ao telefone, na hora marcada para o nosso bate-papo, com um ar de apreensão. Ele explicou que os pugilistas Reginaldo Holyfield e Luciano Todo Duro tinham acabado de “sair no soco” durante a entrevista a uma emissora de televisão sobre sua mais nova realização. O saldo foi confusão e, inclusive, material danificado. Troço sério. A Luta do Século dá conta justamente dessa que é uma das maiores rivalidades do esporte brasileiro. Logo, mais tranquilo, o cineasta baiano falou com entusiasmo acerca de seu documentário, relembrando episódios marcantes, como aquele que, no último dia de filmagem, alterou drasticamente os rumos do que deveria ser apenas um acompanhamento da vida atual desses dois ídolos nordestinos. Diretor de filmes como Cidade Baixa (2005) e Quincas Berro D’Água (2010), além de roteirista de produções que marcaram uma nova fase do cinema brasileiro, como Abril Despedaçado (2001) e Madame Satã (2002), ele gentilmente conversou conosco por cerca de 30 minutos. Confira o resultado desse nosso Papo de Cinema.
Como surgiu o seu interesse por essa rivalidade esportiva tão peculiar e até folclórica?
Começou de maneira curiosa. Tudo surgiu de um papo com Lázaro Ramos e Wagner Moura, acho que estávamos comemorando os dez anos de lançamento de Cidade Baixa. Lázaro disse que tinha vontade de interpretar no cinema o Reginaldo Holyfield, e o Wagner retrucou, de pronto, que então ele poderia viver o Luciano Todo Duro. Decidi começar a pesquisa e, no processo, achei os personagens importantes. Através deles dava para falar sobre o Brasil, de diversas maneiras. Durante a coleta de informações, o Lázaro falou que o perigo era eu me encantar pela possibilidade de realizar um documentário e esquecer da ficção. E foi o que aconteceu (risos).
O arranjo da nova luta mudou os rumos do filme. Qual era a sua pretensão inicial?
Ia fazer um documentário sobre o cotidiano desses homens nascidos na miséria, que chegaram a ocupar uma posição de destaque no mundo do esporte. Porém, por mais talento que eles tenham, acabam voltando à pobreza, em virtude de uma crueldade existente no Brasil. Se você for negro, analfabeto e nordestino as coisas ficam bem mais difíceis aqui. No último dia de filmagem o Holyfield disse que o Raimundão, o traficante amigo dele, tinha sido solto da cadeia e que gostaria de encontra-lo. Foi o Raimundão que teve a ideia de uma nova luta. Em princípio, achei que era uma bravata, que isso nunca aconteceria. Mas, então, como aconteceu, o filme acabou sendo sobre essa luta que marcava o retorno deles ao ringue.
Como baiano, como você encarava o Todo Duro antes, vide as provocações ao povo da Bahia?
A rivalidade entre Bahia e Pernambuco é parecida com a que existe entre Rio de Janeiro e São Paulo. Holyfield e Todo Duro levaram às ultimas consequências essa animosidade. Eles eram os atletas mais populares de seus estados. Particularmente, nunca fui fã do esporte, não conhecia boxe direito. Curiosamente, a única luta que tinha visto na minha vida foi a mais sangrenta deles na Bahia. Todo Duro provocou demais os baianos. Tinha 10 mil pessoas dentro e 20 mil fora do ginásio. Eles queriam linchar Todo Duro quando a luta terminou. Tentei ser o mais isento possível, tanto que tínhamos duas equipes, uma baiana e outra pernambucana. Holyfield estava ontem, inclusive, reclamando que eu gosto mais do Todo Duro (risos).
E as equipes distintas?
Por incrível que pareça, quando chegou a hora da briga, os pernambucanos torceram por Holyfield e os baianos por Todo Duro (risos). Ambos são personagens tão carismáticos. Posso dizer que sofri muito, pois não queria que houvesse a luta. Fiquei realmente com medo deles se machucarem. Também tive receio de alguém pensar que tudo foi arranjado pelo filme. Não foi. Como já tínhamos gastado todo o dinheiro quando surgiu a ideia do combate, inclusive usamos equipamento emprestado, fomos fazendo na raça. Pedi que não se agredissem nas filmagens e eles respeitaram isso, até aquele momento em que dão a entrevista de divulgação. Passei mal com o registro da luta. Para você ter uma ideia, depois dela eu tinha viagem marcada para Locarno, na Suíça, onde iria apresentar um filme. Fui vomitando até chegar à Suíça de tão mal que fiquei. Me afeiçoei verdadeiramente por eles.
O documentário tem um olhar ora folclórico, ora melancólico, isto em virtude do destino dos dois pugilistas. Esse tom era intencional ou surgiu na feitura do filme?
O documentário era inicialmente para falar absolutamente disso. A falta de oportunidade, o quanto o Brasil é perverso com as pessoas de um modo geral, mas, sobretudo, com quem é negro e/ou nasce em condições desfavoráveis, sem oportunidades imediatas. Um cara negro, analfabeto, nordestino e que passou por uma infância dura, por mais que tenha talento, consegue avançar, mas apenas até determinado lugar. Parece que existe um imã neste país puxando as pessoas marginalizadas, embora excepcionais, sempre para essa miserabilidade.
Você menciona no filme que eles não têm noção se o ódio nutrido mutuamente é verdadeiro ou uma resposta à dinâmica de promoção das lutas…
Não tenho ideia disso, talvez nem eles tenham, mesmo. Estou fazendo uma série de ficção sobre o Popó – olha só, outro produto a ver com o boxe – e resolvi homenagear Holyfield e Todo Duro, mostrando o protagonista sendo levado por eles ao ringue para lutar pelo título mundial. Era um plano super complicado tecnicamente. A câmera foi percorrendo o ginásio, e quando me dei conta os dois já estavam embolados. Eles realmente não têm limite. Todo Duro é um provocador nato, um exuzinho, e o Holyfield leva absolutamente tudo a sério. Durante a filmagem pedi para eles prometerem não se agredir na minha presença.
O Brasil realmente é um país que não valoriza os seus ídolos?
Existe isso, sim, mas é pior para quem veio de baixo. Popó e Guga, por exemplo, não são analfabetos. O Popó estudou um pouco, já o Guga partiu de uma situação financeira mais confortável. Holyfield e Todo Duro são analfabetos e negros, ou seja, é mais difícil ainda para eles. A perversidade é multiplicada e determina os destinos, vide o que aconteceu com o Maguila, também. Por mais talento e brilho que tenham, é improvável manter-se no topo. E isso ocorre com o brasileiro de um modo em geral, não necessariamente apenas no esporte.
Você não acha que, por baixo de toda essa agressividade, Holyfield e Todo Duro têm afeto um pelo outro?
Acredito que de alguma maneira, sim. O Raimundão estudou filosofia na cadeia. Em dado momento das gravações, ele mencionou justamente isso, que no fundo eles se gostam. Na verdade, acredito que ambos têm a consciência de que um não existiria sem o outro, que a rivalidade os alimenta. Tanto que a ideia da nova luta, que não me agrava em princípio, justamente por eu não querer vê-los se machucando, meio que os trouxe de volta, os rejuvenesceu. É só prestar atenção na aparência deles. Holyfield e Todo Duro foram se renovando na medida em que a luta se aproximava, isso lhes deu novamente vida.
(Entrevista concedida por telefone, numa conexão Rio de Janeiro/São Paulo, em março de 2018)