Chega nesta quinta-feira, 03, aos cinemas brasileiros o filme M-8: Quando a Morte Socorre a Vida (2019). Depois de ter feito carreira por alguns festivais, a adaptação do livro homônimo de Salomão Polakiewicz, protagonizada por Juan Paiva, vai encarar a dura realidade dos cinemas abertos em tempos de pandemia. Na trama, um jovem negro ingressa na faculdade de medicina por meio das cotas raciais. Além de sofrer toda sorte de discriminações – das escancaradas às veladas – ele começa a se sentir incomodado com o fato de que na sala de anatomia apenas ele e os cadáveres indigentes possuem pele negra. Amparado por uma rede invisível de proteção, Maurício vai tentar encontrar seu lugar nesse mundo racista e inclinado a segregar. Para destrinchar alguns aspectos da concepção do filme, conversamos remotamente com o cineasta Jeferson De, um dos entrevistados mais generosos e entusiasmados com os quais tivemos contato recentemente. Depois de se dizer fã do trabalho do Papo de Cinema, o que nos envaidece, ele foi extremamente solícito com as perguntas e demonstrou uma desafetação incomum para revolver suas intenções e obstáculos dentro do processo criativo. Com vocês, o Papo de Cinema com o cineasta Jeferson De.

 

Tudo bem, Jeferson? Como está a expectativa para o lançamento do filme?
Ah, cara, estou feliz e ansioso nesse momento de lançar o filme. Claro, levando em consideração o instante que a gente vive no Brasil e no mundo, até por causa da pandemia. Mas, para mim tem sido um ano de muita dedicação. Estou trabalhando para caramba, em casa, mas trabalhando demais. Estou feliz e na expectativa, com todo aquele sentimento que você conhece muito bem.

Obrigado por tirar um tempinho para falar com a gente
Eu que agradeço. Estou em casa. O Papo de Cinema é onde debato, onde aprendo também.

 

Nem fala, senão a gente acaba se achando (risos)…
É para se achar mesmo. Vocês têm uma história de escrita, de reflexão. Uma coisa é fazer, a outra é debater, dialogar sobre cinema. Não existe apenas um caminho, um tipo cinema brasileiro. Nossa cinematografia contempla de José Padilha a Eduardo Nunes. Isso é lindo demais. É maravilhoso. É possível. Por isso, quando o cinema não acontece, a gente fica frustrado. Saber que, por exemplo, o presidente do Brasil não gosta de cinema brasileiro é frustrante. Há esse pensamento colonial, derrotado. O cinema é um lugar de reflexão. Se trata de uma ferramenta política foda.

 

Sobre o M-8, gostaria de saber como foi teu primeiro contato com o livro?
Ao ler o livro, tive a sensação de já ter vivido várias daquelas histórias. Quando a produtora Iafa Britz ligou para mim, tomei um susto. Minha última referência dela tinha sido Minha Mãe é uma Peça 3 (2019). Pensei que viria o convite para fazer o Minha Mãe é uma Peça 4 (risos).


Seria maravilhoso…
Claro que seria, com Paulo Gustavo, esse grande comediante. Seria diversão total. Mas não era a proposta (risos). Estou aqui plantando, jogando umas sementes, vai rola que no futuro (risos). Agora, sério. Quando ela me mandou o livro, fiquei tocado. Tinha a questão do estudante no primeiro ano de faculdade, um estudante bolsista das classes populares. E esse cadáver. Acho que os nossos mortos têm muito a contar. O convite veio muito a calhar, porque eu queria falar sobre tudo isso. O Salomão cria o protagonista como bolsista, mas eu o via enquanto cotista. Uma vez colocando-o como cotista, também teria a possibilidade de fazer uma reflexão sobre o movimento negro, que lutou para existirem as cotas. Eu poderia ampliar discurso que o Salomão colocava no livro. Troquei também o elemento da religião católica pelo da matriz africana, para que o contato se desse também de uma maneira forte à comunidade negra. É um filme que nasce como exemplar de produtor, claro. Mas, fui me apropriando e ele acabou se transformando. Quem me conhece, especificamente quem sabe da minha história, vai achar que é um filme autoral.

E quem pode ser dar ao luxo de ter Lázaro Ramos fazendo figuração?
É mesmo (risos). Ele é um figurante tão importante que quando aparece a gente percebe uma mudança quase radical no tom do filme. Até ali tudo ia numa toada meio mágica, religiosa, de suspense, às vezes flertando com terror. O conjunto acaba indo para universo muito real. Não tem nenhuma novidade nisso que fiz. Os teatros grego e africano falam dos mortos, de como espíritos estão presentes. Porém, para gente isso tudo ganha uma leitura contemporânea.

 

Ao fazer o M-8, você tinha uma preocupação de que o filme se comunicasse com o maior número de pessoas possível, de que ele tivesse a capacidade de dialogar amplamente?
Confesso que sempre tenho essa preocupação. Seja por meio da inclusão de muitos elementos das culturas pop e das ruas ou até mesmo em virtude da escalação de atores conhecidos, mas que são grandes nomes do cinema brasileiro. Zezé Motta, por exemplo, é uma espécie de madrinha da minha história. Mas, é alguém também conhecida. Sei que o filme não é feito para mim. Toda obra de arte se realiza ao encontrar o público. Nesse lugar, me sinto muito um griot (nota da redação: o contador de histórias em várias culturas africanas). Era uma vez um garoto que entrou por meio de cotas numa universidade federal e aí percebeu que apenas ele e os cadáveres eram negros. Tem um pouco disso do Era Uma Vez. Desejo sensibilizar o público, até porque estou falando de um problema que não é meu. O genocídio da juventude negra é um problema da sociedade brasileira. O racismo estrutural não é um problema dos negros. Zumbi não é um herói apenas dos negros. É de todos os brasileiros. Deveríamos aprender sobre ele na escola. E, tem outra: se trata de dinheiro público. Tenho a obrigação de me comunicar com a população brasileira. Quero também que minha mãe assista ao filme, uma senhora que estudou somente até a sexta série. Desejo que a favela assista. Não adianta ficar naquela de inventar um público. O público está lá e é com ele que quero me comunicar.

 

Você falou antes de apadrinhamento. Sinto que o personagem do Juan vai ser atravessado por figuras emblemáticas que, de alguma maneira, também o apadrinham…
Total. Quando vejo, por exemplo, a Mariana Nunes contracenando com o Juan, é lindo. Presenciei isso, eu estava lá. Cara, é uma delícia ver tanta generosidade. A forma como o Aílton Graça trata o Juan, como um filho. Você tem toda razão quanto à questão do apadrinhamento, ela aparece no filme. Para nós, que conhecemos a história do cinema brasileiro, quando olhamos para Zezé Motta a gente vê a Xica da Silva. Dona Léa Garcia remete a Ganga Zumba, filme de 1964. Já o Juan é um cara de cinema, tem precisão e uma síntese de interpretação impressionantes. É muito bonita a generosidade que o elenco teve com ele e comigo também.

 

O protagonista vai sendo transformado à medida que interage com a cidade. Essa colocação do lugar como um personagem te pareceu essencial?
Admiro vários cineastas. Mas, o Spike Lee e o Martin Scorsese são dois grandes responsáveis por parte do meu aprendizado. E a locação para eles é determinante, pode notar. De algum modo, os personagens contracenam com a cidade o tempo inteiro. No M-8 isso também acontece, como acontecia no Bróder (2010) com relação ao Capão Redondo; no O Amuleto quanto à Florianólolis; (2015); o bairro de Bonsucesso em relação à novela homônima que dirigi para a Rede Globo. Em suma, para mim é imprescindível fazer um retrato da cidade. Quando Mauricio passa para aqueles tanque de guerra, é algo que quero pontuar. Olha a presença militar numa cidade como Rio de Janeiro. Isso faz parte da paisagem. Você tem o Corcovado, a praia e um tanque de guerra. Essa sinalização não estava no roteiro. Queria que o Maurício fosse trocado por essa normalidade perversa em que homens e mulheres negros estão sempre vigiados, ameaçados e tensos.

Gostaria de falar um pouco da cena com o Rocco Pitanga. Ele vive um policial negro que agride um jovem negro, expressando a agressividade do Estado fardado. Mas há uma nuance entre agressividade e o cuidado…
Aqui você foi no ponto, até porque o policial explicita esse lugar que eu queria debater. Há uma rede de proteção entre nós, negros. A personagem da Zezé, por exemplo, acolhe o protagonista na universidade de uma maneira especial. Tem um momento em que o Aílton Graça e o Alan Rocha, intérpretes dos funcionários, acalentam o protagonista. Existe a mãe dele, sua maior e mais zelosa protetora. Há a mãe de santo, a guardiã espiritual. Mas, e aí repito, você foi muito no ponto, surge o policial. Esse cara protege o menino. Acho que todo mundo que coloca uma farda não “tem mais cor”. Você assume a instituição. Mas, naquele instante, por mais que o policial cumpra sua missão, acaba participando dessa rede de proteção. Esse lugar eu queria problematizar. No Brasil, diferentemente do que acontece nos Estados Unidos, a gente precisa lidar com o racismo silencioso, o tal do racismo “cordial”.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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