Um dos atores mais interessantes a terem surgido no cenário cultural brasileiro nos últimos anos, o pernambucano Renato Góes deixa claro que não tem medo de desafios. E mesmo que nem todos saiam de acordo com o esperado, sempre há uma lição a ser aprendida. Essa é a impressão que o ator transmite em conversa a respeito do thriller Macabro (2019), longa que teve suas primeiras exibições na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no último ano, e que após ter sido premiado no Brooklyn Film Festival, em Nova Iorque, no início desse ano, está conseguindo chegar agora ao grande público não nas salas de cinema, que continuam fechadas graças à pandemia do coronavírus, nem nas plataformas de streaming ou vod. A solução encontrada foi mais tradicional e, ao mesmo tempo, inovadora: no circuito de drive-ins, que se espalharam por todo o país como uma febre! Aproveitando essa oportunidade, nós conversamos com o astro, que falou ainda de outros projetos, como o lírico Por Trás do Céu (2016), pelo qual foi premiado no Cine PE, e Legalize Já (2017), em que interpreta o músico Marcelo D2. Confira!
Qual foi o seu primeiro contato com o caso dos irmãos necrófilos e como reagiu ao ser convidado para participar de Macabro?
Eu estava num movimento contrário enquanto artista. Estava no set do Legalize Já, vivendo um cara que passou a vida ao lado do oprimido. No meio das filmagens, um dia desses, na hora do almoço, o Johnny Araújo, um dos diretores do filme, me passou o telefone, dizendo que tinha alguém que queria falar comigo. Era o Marcos Prado, que tinha esse projeto e queria me convidar para fazer parte. Quando li o roteiro, foi um impacto. Vinha de um mergulho longo como o Marcelo D2, e a proposta dele iria me levar para o outro lado. E de uma maneira ainda mais radical. O Teo, meu personagem, é um anti-herói, e isso era algo que não passava pela minha cabeça.
O que o motivou a aceitar esse convite, então?
Tem uma série de fatores no filme que talvez não contribuam para muitas causas, mas, ao mesmo tempo, há o mérito de levantar essas discussões. Além disso, eu, enquanto ator, teria a oportunidade de expor minha opinião diante tudo isso. Havia chegado até mim o convite para viver um sargento do BOPE, em uma história que virou quase um conto popular. Estaria ali, no meio de uma caçada de assassinos, que é muito eletrizante. Mas era mais do que isso. Afinal, quem eram esses criminosos? Eram culpados mesmo, ou teriam sido vítimas também? Será que não eram todos vítimas, de um modo ou de outro? E os pais dos meninos, qual a parcela de envolvimento e culpa deles? Será que não estavam apenas reagindo ao que lhes havia sido imposto? Ou seja, de cara, assim que li o roteiro, percebi que uma discussão muito grande estava se impondo. Até por isso, decidi que não leria mais, só quando encerrasse meu trabalho no Legalize Já. Para preservar a integridade daquele outro personagem, pois o Teo era muito forte. Mas fiz isso depois, e mergulhei de cabeça nele.
O que mais te atraiu no Teobaldo, protagonista de Macabro?
O que o Teobaldo tinha que mexeu comigo não foi uma questão psicológica, ou alguma virtude dele. Foi o roteiro no qual ele estava inserido, e o discurso que poderia ser debatido. O meu ofício do ator é isso, ser aquilo que não sou, e que talvez nunca seria. No momento em que você está no palco, você se transforma. Quando me deparei com aquele thriller, com as possibilidades envolvidas, com as cenas de ação, que eram algo que nunca havia feito, foi esse conjunto que me despertou. Estaria com uma arma na mão, entende? Isso não tinha me acontecido ainda. Agora, além dessa questão mais prática, também me perguntei: o que isso justificaria na minha caminhada? Até o mau exemplo do personagem me interessava. Será que ele era apenas isso? Tinha que ter mais ali, pois o que eu fosse falar, o que o personagem estaria colocando para fora, tudo seria muito forte e teria uma repercussão. Foi essa atividade toda que me atraiu.
Teobaldo é uma figura polêmica e controversa. Como você trabalhou essa dualidade dele?
Ele identifica mais ou menos o certo e o errado. Esses conceitos são meio confusos para ele. Um cara muito mais consciente, por exemplo, é o cabo Everson, personagem do Guilherme Ferraz, que está sempre ao lado dele, e dá o exemplo. É ele quem diz: “só tem eu e os meninos de pretos aqui”. São gatilhos como esse que fazem o Téo perceber as coisas. Ele não estava nem se importando com aquela comunidade, queria apenas fazer o que havia sido mandado, e se livrar, ir embora. Agora, o personagem é pura ficção, foi inventado para o filme, não existiu de verdade. Esse cara não foi o que subiu até Nova Friburgo, por exemplo, é alguém criado especialmente para essa história que estamos contando. Não sei se você sabe, mas não existiu nem o padre, ao menos não como figura tão presente. A grande figura para eles, que teria feito esse papel protetor, teria sido o pai dos meninos. Mas como colocar isso no filme, ao mesmo tempo em que ele era também vítima? Esse pai oprimido e opressor está presente, ao lado de uma figura branca, o padre. Os dois mostram dois lados. Diversos fatores podem ser somados nessa situação. Mas não tinha como colocar a responsabilidade apenas num deles, representando a figura branca opressora. Você divide algo que a própria história real não fez questão de separar.
Como foi a sua pesquisa? Optou por se basear apenas no roteiro, ou chegou a ir além e buscar outras fontes para construir o personagem?
O papo para a construção desse personagem foi outro. Assim que o Marcos me ligou, tinha apenas um tratamento do roteiro, e foi o que me mandou. Quando sentei pela primeira vez para darmos início aos trabalhos, já tendo lido essa versão inicial, pois era suficiente para uma conversa. No sentido de preparação, que foi algo que veio depois, o texto mudou muito. Eu pude dar minha opinião, claro. Mas foi uma troca passiva, de um ator colocando seu ponto de vista. O meu lugar era de demonstrar essa vontade de melhorar, de buscar consistência e explorar as motivações. E o que provocamos mostrando isso? Se pensar que temos hoje um filme mais popular, penso que foi um golaço. Macabro é um suspense psicológico muito bem feito. Por outro lado, de uma percepção mais social, tenho que colocar minha voz, e o meu ponto de vista, para que tudo fique muito claro.
Quais foram as tuas referências nesse processo?
Assisti a filmes como o A 13ª Emenda (2016), que são muito fortes nesse discurso. Esse é um episódio que está no imaginário popular. O que a História impôs para gente sobre essa questão não pode ser ignorado. Esse lugar do preconceito racial ainda é muito vivo na nossa sociedade. E me pergunto: o que vale mais a pena, se calar e não se mostrar, ou se arriscar e colaborar com essa discussão, gerando um canal de voz? Todo o espaço que nós, atores, conseguirmos gerar com o nosso trabalho, talvez alcance mais gente do que o próprio filme. O ator não é o roteirista – ao menos nesse caso – e não era esse o meu trabalho. Mas compartilhava, sempre que possível, as minhas opiniões, que eram aceitas ou não. Fiz pesquisa própria, assisti às matérias de televisão da época, tem uma série de reportagens que falavam sobre o assunto. E cada uma delas tinha uma visão diferente. Depois fui entender melhor o quão amplo era toda essa discussão, quando cheguei para filmar. Se fôssemos mudar o filme por cada versão que nos passavam, não seria concluído nunca. Filmamos no mesmo lugar onde os episódios aconteceram, por exemplo, e foi muito tenso ter passado por tudo isso.
Renato, como você vê filmes como O Corpo é Nosso (2019), seu longa anterior, ou Macabro, que discutem temas como feminismo e racismo, mas sob a ótica de um protagonista masculino e branco?
São filmes que falam de dois fatos diferentes. No Macabro, como é um caso em aberto, e o filme não faz juízo de valor nesse sentido. Afinal, seria difícil contar a partir do ponto de vista dos meninos. No filme da Theresa Jessouroun, também falamos a respeito de algo urgente, mas a abordagem é outra. O Corpo é Nosso é metade documentário, metade ficção. Essa parte ficcional, da qual participo, não mostra esse exemplo, não era para ter um modelo. Nossa ideia era que fosse um cara que também era machista, que veio de família machista, mas que se transforma. Como seria essa integração? A minha mudança no processo daquele filme foi muito similar à do personagem. As mudanças de um foram as minhas também. Nos depoimentos dos entrevistados do filme, tinha uma ativista que vinha e falava, outra logo em seguida, e tudo isso independente da cor da pele delas. Quem vinha depois, ia encadeando a seguinte. Há um processo natural e constante de evolução e de aprendizado entre todos.
Você acredita que ter participado de filmes como esses mudou o seu ponto de vista sobre estes temas?
Eu e Thaila, em casa, tratamos o machismo o tempo todo, um cobrando do outro. Somos todos um pouco machistas, em diferentes níveis, e precisamos mudar. É preciso uma porrada grande pra gente se dar conta de que havia algo errado e tinha que começar a fazer diferente. A balança foi contrária por muito tempo, e agora temos que sentir na pele o grito do outro lado. A conscientização é o branco que tem que buscar, é preciso ser humilde e ter empatia para entender o que se pode fazer, no mínimo. Temos que mudar o nosso discurso, e os dos nossos amigos. Esses dois filmes me trouxeram esse lado. Hoje, vendo, nem concordo muito com aquele final do O Corpo é Nosso, por exemplo. Já faria diferente. Mas não basta apenas se desculpar, a mudança tem que ser mais profunda. E constante, o tempo todo. O serviço apresentado pelo filme, no entanto, é muito maior do que qualquer coisa. Tentei rebater algumas críticas, aprendi com várias outras. Precisamos falar mais a nossa opinião. São duas posições difíceis de estar, mas eu estava lá, nesse momento, e acredito que a discussão é válida. Todos esses trabalhos me deram conhecimento e voz.
Você é um ator premiado no cinema – ganhou o calunga no Cine PE pelo Por Trás do Céu (2016) – e viveu nas telas ninguém menos do que Marcelo D2 em Legalize Já (2017) – um filme que, particularmente, gosto muito. Como essas experiências, assim como a vivida em Macabro, tem influenciado a sua forma de fazer cinema?
Achei que o Macabro tinha um lugar muito bom enquanto escolha, do ponto de vista dos caminhos do personagem, que partia do nada. Tenho uma composição de corpo e de voz no Legalize Já, e também no Por Trás do Céu, que foram muito interessantes. Mas no Macabro estava mais perto do nada, no exercício do natural. Como fiz na televisão, nas novelas Órfãos da Terra (2019), ou Velho Chico (2016), ou na minissérie Os Dias eram Assim (2017). Era o lugar de fazer render aquela não-exposição. Não faço stories, sou muito discreto nas minhas redes sociais, nem participo de tantos programas de entrevistas. Gosto de me preservar. No Macabro, portanto, era um lugar diferente. Gosto da composição, e esse filme me proporcionou um balanço em relação à televisão, que sempre busca algo próximo de quem você é de verdade. Então, foi um filme que faz parte desse mesmo traçado artístico.
Macabro é um suspense policial, com elementos de terror. Esses são gêneros que lhe agradam?
O gênero de terror não curto muito, não. Gosto mais do suspense psicológico, como os filmes do Jordan Peele, como Nós (2019), o Corra! (2017). Essa coisa que te assusta e comove, ao mesmo tempo em que você não acredita no que tá rolando em cena. Isso me deixa muito instigado. Gosto do gênero, mas do creme do gênero, a meu ver.
Como você tem percebido as reações do público ao seu trabalho?
O que pude sentir mais do público foram as exibições que tivemos no Festival do Brooklyn, que foi todo online. Tenho grupos de amigos no whatsapp, colegas de escola ainda, de diferentes fases da minha vida. Pude passar o link para eles, e muitos assistiram ao filme. A discussão foi grande, com uma série de questões que pudemos debates. Fizemos uma live só entre nós, por exemplo. E conseguimos puxar o social que o assunto envolve. Com uma baita de discussão, abordamos todos os lados. Sem o preconceito do brasileiro, que acha que a gente faz só o mesmo tipo de filme. Era algo diferente, que tem surpreendido as pessoas. Talvez pudesse ser diferente, mas é um filme que, com certeza, vai gerar discussões, e um bom alcance. Estou bastante feliz. Os finais das sessões eram sempre com todo mundo muito impactado.
O que você achou da iniciativa de exibir Macabro num lançamento em drive-in?
É tudo uma expectativa. Vai pro drive-in, e vamos ver como será. Se durar, ótimo. Mas é unânime que não queremos ir para os cinemas antes de ter uma real solução para essa pandemia que estamos todos enfrentando, mesmo que os protocolos permitam. Colocar pessoas fechadas numa sala sem estarem quarentenadas juntas, sem uma vacina real? Acho melhor não. E depois é possível que vá para VoD, streaming… ou seja, todo mundo vai poder assistir ao Macabro, de um jeito ou de outro.
(Entrevista feita por telefone em julho de 2020)
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