Pâmela Yulle não é atriz. Ou melhor, é atriz e muito mais. Apesar de ter feito alguns trabalhos em atuação antes, sua maior experiência na área veio da época do ensino médio, quando participou de algumas peças no âmbito escolar. Ou seja, nunca havia sido seu foco investir na formação de atriz. Até ficar sabendo que uma produção em sua cidade, Campo Grande, estava a procura de artistas trans. Pensou que talvez ali houvesse uma oportunidade interessante, e foi atrás. O resultado é Madalena, seu primeiro longa como intérprete. Professora de formação e produtora cultural, a artista nascida e criada na capital do Mato Grosso do Sul se sentiu em casa durante as filmagens. Não tanto pelas locações serem em Dourados, interior do estado e região que conhece bem, mas também pela proximidade que tem com o tema abordado na história. Hoje ela está com 34 anos (mas pode colocar 28, afirmou nessa entrevista), dá aula em escola de ensino técnico de áreas adjacentes, é DJ, fotógrafa, videomaker, editora de vídeo… como ela mesma diz, “não sei se faço bem, mas faço de tudo um pouco”. E agora é também atriz, e de reconhecimento internacional! Por sua atuação como Bianca, ganhou o prêmio de melhor interpretação no Festival de Lima, no Peru. Tá bom ou quer mais? Confira a seguir como foi nosso bate-papo sobre o filme exibido na mostra competitiva do 16º Fest Aruanda, em João Pessoa, Paraíba:
Olá, Pâmela. Como surgiu o convite para participar de Madalena?
Fiquei sabendo através de uma postagem nas redes sociais de uma pessoa próxima, no meio artístico, que estavam procurando por pessoas trans para participar de um filme. Entrei em contato, marcamos um primeiro encontro no Centro Cultural da cidade. Daí acabou rolando o convite para participar da seleção. Foram três semanas de testes e dinâmicas. Primeiro conversava com o diretor, que ficava me perguntando um monte sobre a nossa história. No início, não entendi por que estava tão demorado. Afinal, por que não faziam um teste logo? Depois descobri que esses encontros serviram para a gente meio que ajudar a construir a história do filme. O Madiano Marcheti, o diretor, queria fazer essa última parte da trama a mais verossímil possível, sem estereótipos ou visões pré-concebidas. Sabe aquilo que estamos acostumados de ver? Não era nada disso. Ele pegou a nossa vivência e a partir disso construiu os personagens. Com isso, acabou se tornando mais sensível.
Madalena é um filme sobre a ausência. Como debater algo – ou sobre alguém – que nunca é visto em cena?
Olha, acho até lisonjeiro estar participando de uma obra desse cunho artístico. É um filme que você precisa prestar atenção, estar em silêncio, dar uma refletida. Alguém pode ver e achar que nada acontece. Mas é que demanda um pouco de sensibilidade para conseguir fluir melhor. A linguagem tem muito a ver com o lugar. Fala de uma cidade do interior do Mato Grosso do Sul, e também do Mato Grosso, de onde o diretor vem. Esse cenário da soja, da plantação, das grandes monoculturas. Reflexo do que já acontece. A arrogância das pessoas mais abastadas financeiramente, o apagamento das coisas que acontecem. Esse falar de alguém ausente é só o reflexo do que já acontece na nossa sociedade, principalmente nesses lugares, cidades pequenas onde existe essa população trans e a sociedade não se choca com o que acontece, a mídia parece não se importar. Faz como a personagem da Luziane, que nem se importa. O que você faz quando uma pessoa conhecida sua, que é trans, desaparece? Nada.
O filme possui três protagonistas. Como foi o seu contato com Rafael de Bona e Natália Mazarim?
Pela agenda de filmagens, a gente não se encontrou muito. Nem chegamos a contracenar no filme. Quando as locações eram as mesmas, acabamos nos encontrando, mas sempre rapidamente. Mas estivemos todos juntos antes, nas leituras de roteiro. Foi quando conheci o Rafael, principalmente. Depois, quando o filme estava pronto, é que nos sentamos e conversamos mais entre nós. Só agora, no lançamento nos cinemas, pude trocar com a Natália, por exemplo. Durante o processo, ela, que é atriz, formada em Artes Cênicas, me ajudou bastante. Trocamos figurinhas, foi muito querida, sempre solícita. Foi muito generosa.
Quais foram as orientações do diretor Madiano Marchetti para a construção da Bianca, tua personagem?
Talvez seja arrogância da minha parte, mas tenho a impressão de que o Madiano escreveu a Bianca para mim. Quando participamos das primeiras leituras do roteiro, o texto só ia até a parte do Rafael, personagem do Cristiano. E acabava antes de eu entrar em cena. A gente não sabia o que iria acontecer dali em diante. Foi a partir das nossas conversas que ele foi entendendo as histórias de cada uma de nós. Tanto que a Bianca tem um noivo, e eu também tenho um noivo. A Bianca é cuidadora de idosos, que é a profissão de uma das meninas que estava conosco na dinâmica, e isso acabou entrando no roteiro. A Francine, personagem da Mariane Cáceres, é prostituta, desacreditada do amor, que também foi um assunto muito debatido entre nós, a questão da prostituição, o afeto amoroso com outros homens. Quando o Madi escreveu os personagens dessa última parte do filme, já sabia o que queria. As únicas indicações que fez é que era um momento meio que de resolução, seria o respiro do filme. De uma talvez felicidade. E que eu devia ser bastante espontânea.
Madalena fala de um problema grave que atinge a sociedade brasileira como um todo. Como abordar uma questão tão séria através da ficção?
Eu vivo essa realidade no meu dia a dia. Essa pergunta seria mais impactante vendo a resposta do Rafael ou da Natalia. Eles contaram um pouco sobre a relação dos personagens deles com o tema. Mas eu passo por isso todos os dias. Saio de casa sem saber se vou voltar. Pra mim, é só relatando um pouco do que já conheço. Felizmente, nunca perdi uma amiga trans para a transfobia. Conheço pessoas da noite, sou dj, também. Mas não tenho um círculo tão grande assim. Talvez me relacione com pessoas com o poder aquisitivo maior, com educação. Isso aumenta nossa expectativa de vida. Mas conheço essa realidade, e é bem como o filme aborda. A indiferença das pessoas para com esse tema, o assassinato das pessoas trans. A transfobia é crime, assim como o racismo. Não só o assassinato, mas a própria discriminação. Ainda não vimos essa mudança. É importante estar atento, é um assunto que precisa ser debatido e combatido, com políticas públicas, educação.
Como você vê a representação de artistas e personagens trans no cinema brasileiro?
Acho legal que estão usando pessoas trans para contar histórias de personagens trans. Mas não sou tão contra quando não acontece. O personagem é o personagem, e isso vai do ator. Claro que está tirando o emprego de uma pessoa trans. Mas não seria tão problemático se artistas trans estivessem mais inseridos no mercado como um todo, e representando pessoas cis também. Se tivéssemos essa cultura, não teria problema algum. Mas é importante estarem falando sobre a gente, e estarmos nós falando sobre isso. Veja o Alice Junior (2019), não faria sentido se fosse uma menina cis fazendo aquele filme. O tempero é aquela atriz, com aquelas características, com aquela voz, aquele corpo, aquela personalidade. Como eu fui no Madalena. É ela, muito mais a atriz do que a personagem. É bonito estarmos vendo esse movimento, e que estejam aparecendo cada vez mais esses filmes. Com exemplos para serem representados. Temos muitas histórias para contar.
Madalena estreou na última semana nos cinemas. Como você tem percebido a recepção do público?
O retorno que tive, por enquanto, veio das exibições presenciais que participei. Aqui na minha cidade o filme não está em cartaz. Mas tenho recebido muito retorno positivo, as pessoas têm gostado. Não é um filme óbvio. Tem muitas camadas de leitura. Muitos me falaram que gostaram, que queriam ver de novo. É uma história muito fotográfica, com imagens bonitas. É bom pra viajar no tema, com outros planos pra contar a trama. A imagem é muito importante. A minha preocupação é que é um filme que não agradaria as massas. Não tem maniqueísmo, não tem vilão, nem mocinho. Estamos acostumados com essa visão hollywoodiana. Mas é bonito, tenho orgulho de ter feito parte.
Entrevista feita em 15 de dezembro de 2021, durante o 16º Fest Aruanda, em João Pessoa, Paraíba
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