Com o lançamento de Intocáveis (2011) nos cinemas, os diretores Olivier Nakache e Éric Toledano conquistaram um dos maiores sucessos de bilheteria da história do cinema francês. Depois dos 19 milhões de espectadores em seu país, e dos resultados expressivos no mundo inteiro – inclusive no Brasil -, a dupla continuou a investir nas comédias dramáticas de teor social. Vieram então Samba (2014) e Assim É a Vida (2017), dois projetos que, embora não tenham reprisado os números de Intocáveis, ainda conquistaram forte popularidade.
Agora, eles apresentam Mais que Especiais (2019), baseado na história real de dois educadores, o judeu Bruno (Vincent Cassel) e o muçulmano Malik (Reda Kateb), amigos especializados nos cuidados de crianças autistas. Diariamente, lidam com um número de crianças e adolescentes muito superior à capacidade da pequena instituição onde trabalham. Quando o Estado vira as costas aos jovens com necessidades especiais, eles burlam as regras do sistema para continuar o atendimento, correndo o risco de terem a instituição fechada.
Estrelado em partes por jovens autistas, o filme foi exibido no encerramento do Festival de Cannes, e chega ao público brasileiro através do Festival Varilux de Cinema Francês 2020. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com Olivier Nakache sobre o projeto:
Que tipo de organizações lidam com jovens autistas na França?
Havia um vazio a este respeito, sobretudo para os jovens com caso de autismo grave. O espectro autista é muito vasto, existem diversos tipos dentro do mesmo diagnóstico. Justamente para os casos mais graves, não existem setores preparados para lidar com estas pessoas. A ironia do autismo é que, quanto mais sério for o caso, menos ajuda você encontra, sendo obrigado a ficar em casa, o que gera um grande problema para as famílias. Hoje dispomos de meios suficientes para fazer um diagnóstico precoce, e este investimento deveria ser voltado principalmente aos jovens. Quando não nos dedicamos às crianças e adolescentes, a dificuldade será muito maior quando chegarem aos 30 anos de idade. Havia uma falta evidente de instituições capazes de receber os jovens, e muitas famílias eram obrigadas a enviá-los à Bélgica, onde existem mais recursos. Espero que a situação mude agora. De qualquer modo, estamos num caminho melhor.
Por que decidiu trabalhar com jovens autistas de verdade?
Foi um grande desafio. Ficamos com medo, mas acredito que seja bom sentir medo antes de começar uma filmagem – este é um sentimento saudável, na verdade. Neste caso a gente se foca mais, evita os clichês e outras facilidades. Como a nossa principal motivação era incluir estes jovens na sociedade, era necessário aplicar esta premissa ao próprio filme, trabalhando com autistas reais. Esse processo exigiu certo tempo, especialmente para que eles se acostumassem com a nossa presença e nos aceitassem. Essa aproximação foi um passo importante, porque a gente queria que eles participassem de fato da filmagem.
Vincent Cassel e Reda Kateb foram preparados para lidar com imprevistos nas filmagens?
Primeiro, tivemos que ligar para Vincent Cassel e pedir que ele voltasse do Rio de Janeiro, porque ele está o tempo inteiro lá! Foram eles, na verdade, que nos encorajaram a fazer o filme. Nós ainda não tínhamos as autorizações, nem um roteiro pronto. Mas os dois disseram: “Vamos fazer, estamos com vocês”. Depois, cada um a seu modo, seguiu os personagens reais: Vincent acompanhou Stéphane Benhamou [educador real que inspirou o personagem Bruno], e Kateb acompanhou Daoud Tatou [educador que inspirou Malik]. Eles fizeram um trabalho de observação amparado pelo roteiro. Os dois também se dedicaram ao laboratório de imersão, porque é preciso estar pronto para este cotidiano: quando se entra na casa de um jovem autista, você pode ser confrontado ao medo, à apreensão, ao riso, à dor. Os atores precisavam viver isso para demonstrarem naturalidade em cena. Estava fora de questão que eles demonstrassem qualquer tipo de desconforto em relação a estes jovens. Foi preciso bastante tempo para desenvolver a preparação.
Qual é a importância de manter um protagonista judeu, e o outro, muçulmano?
Essa era a realidade. Nós nunca teríamos pensado em criar isso por conta própria, mas os educadores reais eram assim. Este filme tem diversas camadas, vários temas ao mesmo tempo. A questão da religião é apenas uma delas, mas quisemos abordar da mesma maneira que ela se manifesta na associação, ou seja, sem se tornar um motor de conflito. Cada um vive a sua fé como preferir, em sua intimidade. A questão principal seria: o fato de serem dois homens religiosos foi fundamental para cuidarem dos jovens autistas? Afinal, a palavra “religião” vem do termo “religar”, conectar. A base da religião diz respeito a cuidar do outro, então neste aspecto original, as crenças religiosas pertencem de fato àquele meio. Mas não podemos resumir os personagens à fé: eles desempenham esta função porque são pessoas boas, e bons profissionais nesta área. Estes educadores desenvolveram um método que ninguém mais teve a coragem de fazer, suprindo uma lacuna fundamental nos cuidados em casos graves de autismo.
Em Intocáveis e Je Prefère qu’on Reste Ensemble (2005), você já aborda a conciliação entre as diferenças.
É verdade. Nunca soube muito bem de onde vem a vontade de tratar desta questão, mas você tem razão. Existe algo romanesco, em termos dramatúrgicos, de reunir duas pessoas aparentemente opostas, que no fundo não têm nada de diferente entre si. Isso transmite uma força. Eu ainda me lembro do momento em que cheguei na verdadeira associação para jovens autistas, assim como Bruno faz no filme, e me deparei com uma jovem usando o véu, e um garotinho que agredia a si mesmo, e fiquei pensando: “Onde eu vim parar”? Visualmente, a imagem é muito forte, e o trabalho que esta dupla faz é ainda mais forte.
Várias sequências remetem ao cinema de ação e suspense. Talvez este seja o seu filme mais ágil em termos de narrativa, não?
Este é o filme em que precisamos ser mais flexíveis. Assim como Malick e Bruno, era preciso ter olhos por todas as partes, estar atento a qualquer coisa que pudesse acontecer. A câmera precisava ficar próxima dos rostos e corpos, porque a gente queria colocar um nome nesses jovens autistas e nos educadores, para não serem apenas personagens. Ficamos com muita dor muscular, porque usamos a câmera no ombro o filme inteiro! Mas era isso que nos interessava: caso tivesse algum imprevisto em cena, a imagem estaria pronta e capaz de se adaptar. De fato, este é o nosso filme mais leve – não em termos de temática, longe disso, mas de estrutura. Conseguimos ser leves graças à iluminação natural e à câmera móvel.
Estes heróis cometem infrações para protegerem os jovens autistas. Podemos dizer neste caso que os fins justificam os meios?
Sim. Quando não existe outra alternativa, quando ninguém mais se preocupa com estas pessoas, os fins justificam os meios. Aprendemos isso no próprio ato de fazer este filme, que teve um processo completamente atípico. Para você ter uma ideia, o governo francês fez questão de assistir ao resultado antes do lançamento. Muitas coisas fugiam ao nosso controle. Às vezes, é preciso driblar as regras para descobrir regras melhores. Estes personagens adorariam seguir as regras, mas não existiam possibilidades oferecidas pelo Estado de proteger estas crianças. Por isso, eles precisaram criar as suas próprias normas, e tomarem a iniciativa neste processo. Não defendo a desobediência civil, porque os atos desta dupla constituem um serviço de utilidade pública. Neste caso, sem dúvida, os fins justificam os meios.
Você e Toledano têm conquistado uma sequência impressionante de sucessos tanto de crítica quanto de público. Qual seria o pressuposto deste cinema popular?
Não tenho a menor ideia! Temos uma sorte muito grande de ter feito um filme cuja carreira se expandiu para o mundo inteiro, para além do que a gente jamais imaginaria. Intocáveis nos deu a liberdade de fazer o filme que quisermos, sobre o tema que quisermos. Desde então, nossos parceiros de produção, Gaumont e TF1, continuam nos acompanhando. Esta é uma oportunidade incrível, e uma abertura à liberdade de criação. Ao mesmo tempo, não ficamos pensando na crítica quando fazemos um projeto, e sim no espectador dentro da sala de cinema. A cada história que escrevemos, debatemos sobre o efeito que cada cena pode provocar no espectador. Sou grato de ver que nossos filmes conquistaram um grande sucesso na televisão, mas fazemos cinema para passar dentro da sala de cinema, e nosso objetivo é conquistar boa comunicação com o público.
Mas vocês leem as críticas de cinema?
Sim, com certeza. A crítica me interessa bastante, porque compreendo que ela faz parte do jogo, a partir do momento que Toledano e eu nos expomos. Quando oferecemos um filme à opinião pública, precisamos estar cientes de que vamos receber algo em troca. Parte da crítica gosta da gente, e a outra parte, não. É assim mesmo, aceito isso totalmente. Alguns críticos dizem que o filme é ótimo, outros dizem que é muito ruim, e estas opiniões estão ao alcance de todos. É claro que fico contente com alguns textos, e menos alegre com outros. Aliás, a França mantém programas de debate na televisão com críticos de cinema, e eu assisto a estas emissões com frequência.
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