Allan Ribeiro é um veterano do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Como ele mesmo afirma na conversa abaixo, apesar de já ter participado de diversos eventos do gênero pelo Brasil e também no exterior, guarda um carinho especial pela mostra que ocorre no Distrito Federal. Realizador premiado nos festivais de Tiradentes, Amazônia, Vitória e pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), há mais de uma década vem levando às telas um cinema muito pessoal, que frequentemente trafega pelos limites entre o documental e a ficção. Exatamente o que acontece com Mais Um Dia, Zona Norte, seu mais recente trabalho, exibido pela primeira vez na mostra competitiva do 56º Festival de Brasília. No dia seguinte à sessão, o Papo de Cinema se sentou com o cineasta em torno da piscina de um dos hotéis da capital para falar sobre o que o motiva enquanto contador de histórias, sua relação com os personagens retratados e como tem sido fazer cinema independente no Brasil. Confira!
O nome do filme é Mais Um Dia, Zona Norte. Queria que falasse sobre a tua familiaridade com essa região do Rio de Janeiro.
A Zona Norte é onde nasci e onde vivi a maior parte da minha vida, até os meus 26 anos. Depois, acabei voltando, para passar um tempo com meus pais. É um lugar onde me sinto em casa, do qual fico muito à vontade para falar. Apesar de que o Rio de Janeiro, como qualquer cidade grande, vive sofrendo mudanças, então ao mergulhar em uma pesquisa você irá descobrir coisas novas. Esse título veio no processo. O filme falava, independente do local, sobre pessoas, trabalhadores que desfrutavam de um momento de prazer, em estar em um grupo que lhes desse algum tipo de conforto, de felicidade. A gente escolheu a Escola de Samba, o stand up comedy, que é o artista de rua, os grupos transformistas e o Baile Charme. São lugares de resistência, que estão no subúrbio, na Zona Norte do Rio. Tem escola de samba na Zona Sul, mas o grosso tá na Vila Isabel, Mangueira, Madureira, Engenho da Rainha, que é onde a gente filmou.
Primeiro definiram os lugares para depois encontrar os personagens?
Não, primeiro foram os personagens. No começo, se chamaria O Brilho dos Meus Olhos, que era inspirado no meu curta-metragem de 2006, de mesmo nome, que estreou no Festival de Brasília e circulou bastante. Mas, enfim, esses lugares e essas pessoas estão na Zona Norte. Conforme fomos fazendo, percebemos que precisávamos chamar atenção a esse recorte. O que teriam em comum esses personagens? Foi além da revelação desse grande momento – o curta era sobre isso, com um só personagem, que aparecia trabalhando, e depois cantando em um videokê. Depois do filme pronto é que bati o martelo: precisamos mudar esse título. Queria orientar essa leitura sobre um olhar meio que documental sobre a Zona Norte e os personagens que estão por lá.
No material de apresentação, o filme se define como “docuficção”. Onde estão os limites entre o que é real e o que é ficção?
Essa é uma pergunta muito difícil, porque, originalmente, trata-se de um documentário. Digo na burocracia, inscrições e tal. O curta, por sua vez, é uma ficção. Mas tinha um pouco de documentário também, havia coisas ensaiadas, atuações. O protagonista foi escolhido por ter o perfil e o histórico que estava procurando. Agora, no entanto, filmamos muito de forma ficcional. Tem cenas marcadas, plano e contraplano, tem uma sequência musical.
Mas tudo é colocado de forma subliminar. Era uma intenção disfarçar esse lado ficcional?
A intenção era contar a história da melhor maneira possível. Como tem esses momentos de fantasia, de sonho, é difícil só documentar e criar o clima que, cinematograficamente, a gente queria. Mesmo que o público-comum considere um documentário, há cenas que dá pra perceber, de forma nítida, essa interferência fugindo da realidade. Como, por exemplo, quando o trabalhador da rua começa a olhar para a câmera e cantar enquanto caminha. Não tem como imaginar que isso seja um documentário. Mas, na real, não me preocupo com isso. Há um tempo venho trabalhando nessa forma híbrida, como a gente chama, focado nas emoções que quero atingir. Há também uma parceria com os personagens, até que limite eles nos permitem avançar e propor essa fantasia dentro da vida deles. Estou mais preocupado com o que quero contar e em como eles que serão representados na tela, do que em ficar pensando se é um documentário ou uma ficção, puramente.
Como você chegou a esses quatro personagens?
Trabalho sempre com pessoas que me são próximas. A ponto do meu filme anterior ter sido com o meu companheiro (O Dia da Posse, 2021) na época, ex-companheiro agora, antes desse ter sido com um artista plástico que era meu amigo (Mais do que eu possa me reconhecer, 2015), e o primeiro com uma companhia de dança com a qual a gente tinha uma relação forte de trabalho e amizade (Esse amor que nos consome, 2012). Dessa vez, por acaso, alguns já conhecia, mas outros descobri durante a pesquisa. Me aproximei muito de todos durante o processo. O Silvio conhecia da turma OK e do Seven Bar, que é um lugar que frequento. A Valéria veio do Baile Charme, que tinha alguma familiaridade, mas foi durante a pesquisa que nos aproximamos. Assim foi também o processo da Lara. E o Victor foi indicação do Carlos Maia, que é um ator coadjuvante nesse filme e participou também do meu primeiro longa. Ele começou a fazer stand up recentemente e sonha em ter sucesso com isso. Gostaria de fazer um curta com eles. Acontece que estava pesquisando por alguém nesse perfil, quando me apresentou o Victor e o achei fantástico. Por isso o trouxe para o longa. Como fazer humor com temas tão sérios me interessava ter no filme.
E a menina?
Ela não é uma passista de verdade. Ela é bailarina, na época estava em formação ainda, e se formou em Dança e como Atriz, no segundo grau técnico. Conheci numa noite, no baile charme, e fiquei encantado. Disse na ocasião: “se tivesse te conhecido uma semana antes, te faria um convite”, pois já tinha fechado com a Valéria. Mas trocamos contato, a mãe dela foi muito simpática. A garota e o namorado formavam uma dupla boa, seria uma pena deixá-los de fora. Quem sabe num outro filme? Mas como era dançarina, pensei: “quem sabe topa em ir na escola de samba?”, pois ainda não havia encontrado a sambista. E foi assim que tudo acabou se encaixando.
O que estas figuras precisavam ter de especial para estarem no filme?
Eu buscava o brilho no olhar – que era o título anterior. Se visse a Valéria dançando, só essa imagem me seria suficiente para imaginar toda a história dela. Mesmo sem mostrá-la varrendo ou fazendo qualquer tipo de trabalho. Saberia que aquele era o momento que o olho dela brilha. Isso era o principal. A partir daí, tentar entender como seria o roteiro dessa personagem. O essencial seria isso.
O teu cinema volta e meia aborda a questão LGBTQIAPN+. Essa é uma decisão consciente, é também uma forma de militância?
Não que seja intencional, mas é natural. Como filmo pessoas que me são próximas, frequento esses lugares, me orgulho ter virado cineasta e poder estar falando sobre isso. Mas não é sempre. Meu segundo longa, com o Darel Valença Lins, não tem nada de temática queer. Apenas me encantei com o trabalho dele, ficamos amigos e tive portas abertas para filmar aquele artista dentro de casa, em uma solidão de 800 m2, como ele dizia. Mas claro que, dentro desse brilho do olhar que buscava, certos lugares de acolhimento gay, dessa possibilidade de brilhar no palco, do Silvio se transformar e cantar as músicas que ele gosta, isso me interessava muito. Tenho vontade de fazer um longa inteiro sobre a turma OK. Tenho orgulho de falar sobre isso, mas não é pensado, no tipo “vou fazer um cinema LGBTQIAPN+”.
Com exceção do Silvio, um elemento forte em cena é a negritude. Isso, de alguma forma, direcionou as tuas escolhas?
Cresci nesse espaço. E o subúrbio, majoritariamente, é repleto de pessoas negras. Assim como o Brasil, onde mais da metade da população é negra. Foi meio que natural, portanto. Embora, quando falei de escola de samba e do baile charme, o ideal seria chamar uma pessoa negra, claro. Afinal, 90% dos frequentadores desses espaços são negros. Se tivesse que escolher um branco, até poderia ser, só que não seria muito fiel ao que aquele espaço representa. Considero uma escola de samba um quilombo contemporâneo, pois conseguem manter sua cultura, religiosidade. E tem muita importância nas comunidades, apesar dos ataques evangélicos e cristãos. O carnaval é o símbolo total desse filme. Afinal, é conhecido pelo grande público como esse grande momento quanto o cara pobre consegue brilhar na Sapucaí. Não poderia faltar.
Como foi essa decisão de vir para o Festival de Brasília? O que você achou da sessão?
Gostei muito. O filme passou bem, tem tido boas respostas, foi uma excelente estreia. Essa é a impressão que tenho. Brasília, afinal, é onde sempre quis estrear meus filmes. Sempre os guardei para cá. Já passei quase dez filmes no festival. Meus dois primeiros longas, um em competição e o outro fora, e esse agora estreou também na competitiva. Os curtas passaram por aqui. Embora a data desse ano, já em dezembro, não seja propícia para ninguém, final do ano, acabei fazendo isso. Foi pensado. Por outro lado, se a gente quisesse ter estreado antes, teria sido muito corrido.
E os próximos passos? Qual o caminho a ser percorrido por Mais Um Dia, Zona Norte?
O filme, desde a sua raiz, é do canal CineBrasilTV, que é coprodutor. Então pretendemos circular um pouco por festivais, e talvez entrar em circuito nos cinemas. Não sabemos ainda. Isso tem que ser uma negociação com o canal. E seria um circuito pequeno, não acredito que seja um filme que vá atingir tanta gente assim. Mas tem seu público, sim. Depois, claro, será exibido pelo CineBrasilTV e colocado em streaming, vamos ver.
Para encerrar, é tão bonito O Brilho dos meus Olhos. Por que não ficou esse título?
O título O Brilho dos meus Olhos é muito bonito, mesmo. E chama atenção para esse momento tão importante. Outra coisa: importante dizer que esse título veio antes do argentino O Segredo dos seus Olhos (2009), pois o curta é de 2006. Ele veio da música do Gonzaguinha, “Sangrando”. “Veja o brilho nos meus olhos e o tremor nas minhas mãos, e o meu corpo tão suado, transbordando toda raça e emoção”. Acho que para o curta funcionava melhor. Para o longa, como são quatro personagens, é muito grandioso quando eles estão brilhando. Mas não achava ruim, até poderia ter sido. Por outro lado, esse guia no olhar das pessoas em relação ao local era importante. Engraçado, pois teve um momento em que achávamos que estava muito ficcional. Aqueles inserts, com os offs deles, olhando para câmera, e com os registros do celular, vieram depois. Não filmamos isso nos vinte dias de filmagem. Então, esses acréscimos, assim como o título, trazem um pouco mais para o documental. Gosto do jogo, que não se entenda se o personagem é real ou não. Acho o maior barato quando isso fica confuso. Isso é muito legal. Acho que é uma riqueza da linguagem cinematográfica, e que fala muito com o cinema contemporâneo.
Entrevista feita em Brasília em dezembro de 2023